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Estado de Minas LEIA �NTEGRA

Ruy Castro critica 'boca imunda' de Bolsonaro em discurso na ABL

Novo imortal da ABL foi aplaudido quando citou a Lei Rouanet e fez cr�ticas a quem se opunha a ela, sobretudo os l�deres do governo de Jair Bolsonaro


05/03/2023 21:28 - atualizado 05/03/2023 23:32

Ruy Castro durante posse na ABL
Ruy Castro citou a Lei Rouanet e fez cr�ticas a quem se opunha a ela, durante posse na ABL, na sexta-feira (3) (foto: Reprodu��o/Youtube)
Um dos momentos de mais aplausos na cerim�nia de posse do escritor e jornalista Ruy Castro na ABL, a Academia Brasileira de Letras, na sexta-feira (3), foi quando o novo imortal da institui��o citou a Lei Rouanet e fez cr�ticas a quem se opunha a ela, sobretudo os l�deres do governo de Jair Bolsonaro.

 

"[A Lei Rouanet] foi usada como muni��o na pior guerra contra a cultura j� desfechada por um governo no Brasil", afirmou. "A boca imunda desses agentes tentou fazer do nome Rouanet um palavr�o. Quando tiraram seu nome da lei, pensando que assim o humilhavam, n�o imaginavam o al�vio com que Rouanet recebeu a not�cia."

 

Sergio Paulo Rouanet, criador da Lei Rouanet, foi seu antecessor na cadeira de n�mero 13 da ABL. "� a este homem, que nos deixou em julho de 2022, que tenho a responsabilidade de suceder. Que eu me fa�a merecedor dessa sucess�o e honre sua cadeira.

 

"Aplaudida, a men��o de Ruy � Rouanet vai na dire��o contr�ria � grande onda de cr�ticas que esta lei vem sofrendo nos �ltimos anos. Tal pol�tica tamb�m � frequentemente alvo de fake news.

 

Al�m de celebrar a Rouanet, o jornalista homenageou outros antecessores de seu posto e mencionou detalhes de sua carreira em jornais como a Folha.

Bi�grafo celebrado de figuras como Garrincha, Carmem Miranda e Nelson Rodrigues, Ruy recebeu 32 votos entre os 35 acad�micos da ABL na elei��o realizada em outubro de 2022.

 

Confira a seguir o discurso completo de Ruy Castro ao tomar posse na ABL.

 

Uma das primeiras conquistas do homem, juntamente com o fogo e a roda, foi a palavra. Os tr�s permitiram ao homem ultrapassar seus limites, graduar-se acima de sua irrelev�ncia naquele cen�rio e avan�ar sobre as suas j� duas pernas. A diferen�a � que o fogo e a roda deram ao homem apenas o dom�nio sobre um meio hostil. Foi a palavra que conferiu ao homem o que lhe faltava: o significado --o entendimento de sua presen�a no mundo.

 

Al�m disso, naqueles prim�rdios, o fogo e a roda se combinaram muitas vezes para destruir e matar. J� a palavra quase sempre trouxe a luz. N�o quero dizer que a palavra fosse inocente --afinal, o primeiro instrumento da escrita pode ter sido um osso, n�o se sabe de qu� ou de quem. A primeira tinta foi o sangue. E, como bem sabemos, nada como a palavra para disseminar o preconceito, a mentira e o �dio. Mas estamos falando de origens, n�o de fins.

 

Em pouco tempo, o fogo e a roda foram assimilados como se sempre tivessem existido. Mas a palavra, n�o. Ela continua a ser uma grande e permanente descoberta. Uma descoberta pessoal, exclusiva de quem est� sendo ungido por ela, um Big Bang individual. Neste exato momento, em toda parte, h� algu�m descobrindo a palavra e a f�rmula secreta de que ela se comp�e --a soma do s�mbolo, do som e do significado.

 

E as palavras s�o muitas. A palavra dita, a palavra escrita, a palavra impressa. A palavra exata ou a palavra m�gica. A palavra aos gritos ou sussurrada; a palavra s� pensada, nunca pronunciada; ou a palavra � for�a silenciada. Tudo � a palavra e a palavra � tudo. �s vezes ouvimos que "uma imagem vale por mil palavras." Mas, como desafiou Mill�r Fernandes, tente dizer isso sem palavras.

 

� um privil�gio estar sendo aceito nesta institui��o, cuja mat�ria-prima � a palavra.

 

Senhoras e senhores,

 

A verdadeira trilha sonora da entrada de uma crian�a no mundo talvez n�o seja o seu choro ao nascer, mas o momento, muito mais feliz, alguns anos depois, em que, pela primeira vez, ela juntou duas s�labas escritas num caderno e produziu um singelo b�-�-b�. Ou quem sabe esse entendimento n�o dependeu da combina��o de s�labas. Veio-lhe de chofre, de uma s� vez, ao se ver diante de um texto escrito --digamos, uma manchete de jornal. E ela conseguiu l�-lo, sem entender como nem se perguntar por qu�. De tanto ver palavras impressas e ouvir o som delas, o entendimento do mecanismo lhe surgiu com a instantaneidade da luz � press�o de um interruptor. Posso garantir que isso acontece --porque aconteceu comigo.

 

N�o tive escolha. O jornal, a Ultima Hora, estava repetidamente aberto � minha frente nas m�os de minha m�e, cheio de palavras em corpo 48. Um dia, essas palavras se atiraram aos meus olhos, n�o silaba por silaba, mas de uma vez s�. Foi em 1952: um jato, um amor instant�neo, que se transformou em pris�o perp�tua. Pris�o da qual nunca tentei ou quis escapar.

 

O jornal como primeiro objeto de leitura, e n�o a cartilha, pode tamb�m ter definido o meu destino. O que eu via � minha frente era a palavra em a��o --a a��o que se passava nas suas primeiras p�ginas e nas capas das revistas. Foi nelas que, pouco depois, em 1953, aos cinco anos, fiquei sabendo de uma mulher chamada Marilyn Monroe; em 1954, do suic�dio de Getulio; em 1955, da morte de Carmen Miranda; em 1956, dos discos voadores que n�o paravam de pousar. E da� por diante. Tudo era a extens�o por escrito do que os adultos estavam falando na vida real ao meu redor. S� que a Hist�ria na p�gina impressa parecia mais real do que a vida.

 

Nesses 70 anos que se sucederam, provavelmente n�o se passou um dia em que eu n�o abrisse um jornal, aqui ou em qualquer pa�s em que estivesse e cuja l�ngua entendesse. N�o se passou um dia em que eu n�o respirasse pela palavra.

 

Senhoras e senhores,

 

A ideia do jornalismo como profiss�o me veio quase simultaneamente a aprender a ler e escrever nunca mais olhei para tr�s. Era o que eu queria e foi o que fiz, com o desplante de faz�-lo exatamente no jornal com que eu sonhava: o Correio da Manh�, do Rio, jornal que meu av� lia desde sua funda��o por Edmundo Bittencourt em 1901 e a que sempre foi fiel. Fidelidade que ele transferiu a meu pai nos anos 30 e este a mim nos anos 50. Aprendi a ler pela �ltima Hora, mas minha b�blia era o Correio da Manh.

 

A primeira vez em que entrei na reda��o do Correio, em fins de 1965 --a convite do articulista Jos� Lino Gr�newald, que eu lia com avidez e de quem ficara amigo--, apenas confirmou o que eu imaginava.

 

Ao subir dois andares e transpor aquela porta na avenida Gomes Freire, na Lapa, �s seis horas da noite de um dia de semana, e ao ver o enorme sal�o iluminado, sob a metralha de dezenas de m�quinas de escrever, telefones tocando e gente �s pressas de uma mesa � outra com uma folha de papel na m�o, n�o pude deixar de pensar: "� isso que eu queria dizer!". Um ano e meio depois, aos 19 anos, tamb�m a convite de Jos� Lino Gr�newald, que me levou ao diretor de reda��o Newton Rodrigues, eu seria um deles.

 

Entre os jornais onde trabalhei, tr�s me deram a oportunidade de viver momentos hist�ricos: o bravo Correio da Manh� de 1967-68, ferido de morte na noite do Ato Institucional nº 5, 13 de dezembro de 1968, em que o jornal foi invadido pelos coron�is; o Jornal do Brasil de 1976-77, no come�o da abertura democr�tica, cujos segredos s� os seus rep�rteres pareciam saber; e a Folha de S. Paulo, que, em 1984-85, praticamente sozinha fez o Brasil sair �s ruas pelas elei��es diretas. Em revistas, passei pela Manchete, Sele��es, Isto�, Playboy, Veja e muitas mais, cada qual com seu universo e seu estilo, como se escritas em l�nguas diferentes. O jornalista precisa aprender todas essas l�nguas.

 

E a mat�ria-prima de todas elas � a palavra. A palavra, para o jornalista, n�o � a mesma que para os escritores. Para o jornalista, ela cabe num len�o molhado. Para os escritores, ela pode exigir o Oceano Atl�ntico. Mas, ao contr�rio dos escritores, que, se quiserem, podem se deixar levar pela palavra, o jornalista tem de subjug�-la e submet�-la aos torniquetes fundamentais de seu of�cio: a objetividade, a clareza e a verdade.

 

Foi essa pr�tica, exercida diariamente em Reda��es por mais de 20 anos, que levei para o outro ve�culo a que, de surpresa at� para mim mesmo, me entreguei : o livro. E nunca mais voltei para as Reda��es.

 

Mas as Reda��es nunca se afastaram de mim. Desde o primeiro livro, publicado em 1989, at� hoje, quarenta livros depois, igualmente nunca passei um dia sem estar associado, como colaborador fixo, a um jornal ou revista. � mais forte do que eu. H� dezesseis anos, por exemplo, desde 2007, minha tribuna � a p�gina 2 da Folha de S. Paulo --quatro vezes por semana.

 

Senhoras e senhores,

 

Conto isto apenas para tentar demonstrar que minha entrada nesta casa segue uma tradi��o de 125 anos. A Academia Brasileira de Letras sempre foi tamb�m a casa dos oper�rios da palavra, n�o apenas dos seus artistas. Por aqui, desde a sua funda��o, passaram muitos jornalistas. N�o me refiro somente aos in�meros membros que, algum dia, tiveram artigos e poemas eventualmente publicados em jornais. Os que vou citar entraram aqui como escritores, mas foram tamb�m homens de Reda��o, n�o importa que como simples focas, como j� fui um dia, ou estrelas da profiss�o. Todos foram veteranos da reportagem de rua ou das madrugadas de fechamento da edi��o. Homens e mulheres que nunca vacilaram diante do papel em branco.

 

Entre os jornalistas patronos e fundadores das cadeiras da Academia, tivemos Hypollito Jos� da Costa, Evaristo da Veiga, Manuel Antonio de Almeida, Francisco Otaviano, Rui Barbosa, Alcindo Guanabara, Joaquim Nabuco, Jos� do Patroc�nio e Carlos de Laet. Sem contar um jovem que come�ou pelos postos mais humildes de um jornal, nos fundos da oficina: o tip�grafo e revisor Machado de Assis.

 

Entre os herdeiros de suas cadeiras e que n�o est�o mais entre n�s: Euclydes da Cunha, Jo�o do Rio, Barbosa Lima Sobrinho, Austregesilo de Athayde, Assis Chateaubriand, Alvaro Lins, Alvaro Moreyra, Rachel de Queiroz, Raimundo Magalh�es Jr., Francisco de Assis Barbosa, Murilo Melo Filho, Roberto Marinho, Carlos Castello Branco, Otto Lara Resende, Antonio Callado, Jo�o Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar e Carlos Heitor Cony.

 

E entre os que, h� n�o tanto tempo, ainda est�vamos nas bancadas, com os lay-outs � nossa frente, Arnaldo Niskier, Cicero Sandroni, Zuenir Ventura, Ana Maria Machado, Rosiska Darcy de Oliveira, Ign�cio de Loyola Brand�o, o presidente Merval Pereira e eu pr�prio. Em �pocas e lugares diferentes, trabalhei com quase todos e � inacredit�vel nos vermos aqui hoje, juntos --ainda a servi�o da palavra, mas, agora, dispensados da corrida contra o rel�gio.

 

A Cadeira 13, que, gra�as � vossa confian�a, tenho a honra de ocupar a partir de hoje, se caracteriza por acolher personalidades para quem a palavra era este instrumento de a��o. Homens como seu patrono Francisco Otaviano e, entre outros, o Visconde de Taunay, Augusto Meyer, Francisco de Assis Barbosa e Sergio Paulo Rouanet.

 

N�o � pequena a responsabilidade de suced�-los. E haja palavras para fazer jus a esta tarefa.

 

Senhoras e senhores,

 

A hist�ria sempre conheceu o jornalista, pol�tico e diplomata Francisco Otaviano de Almeida Rosa. O homem que deu particular dignidade ao Segundo Reinado. O amigo de D. Pedro II --os dois, nascidos no mesmo ano, 1825-- e que D. Pedro admirava inclusive por Otaviano recusar os t�tulos de nobreza que o Imperador lhe oferecia. Otaviano n�o queria se confundir com aqueles que o pr�prio D. Pedro chamava de seus "nobres de marmelada".

 

Sabe-se tudo sobre o Otaviano liberal, maduro, imperturb�vel e atento �s quest�es nacionais, das quais participou com seu equil�brio e coragem --principalmente o Tratado da Tr�plice Alian�a, que definiu nossa participa��o na Guerra do Paraguai. Mas Otaviano ter� sido sempre assim, quase incorp�reo? Ou quem sabe s� se tornou quem era porque, um dia, foi t�o diferente?

 

Quantos saber�o do jovem, ardente e atormentado Otaviano? O Otaviano que, aos 20 anos, em 1845, era um disc�pulo tardio de Byron e, assim como seu contempor�neo Baudelaire, torturado por contradi��es: sincero e c�nico, m�stico e sat�nico, sensualista e aspirando � pureza, tudo ao mesmo tempo.

Vide esta carta de Otaviano a seu amigo Jos� Carlos Ar�as, de 1845, a respeito de uma poss�vel sua namorada, chamada Ol�mpia.

 

"Ol�mpia", escreveu Otaviano, "� um tipo especial: g�nio de poeta em corpo delicado. Mas n�o � a mulher dos meus sonhos, nem o belo ideal da minha imagina��o. Ser� porque sou materialista? Ser� porque sou espiritualista? A mulher deve reunir ao angelicismo, que resolve nossas aspira��es celestes, formas terrestres que falem aos nossos frenesis, aos estremecimentos do afrodisismo. A mulher deve ter o cora��o e o �ntimo sentir da virgem, e a lasc�via e o apetite da cortes�. Se eu fora poeta da palavra, como sou de pensamento, havia de fazer uma epop�ia satanicamente divina da mulher dos meus sonhos."

 

Como ser� recebida essa carta em 2023? Sexista, preconceituosa, machista? Talvez. E com que espanto n�o teria sido recebida naquele t�mido 1845, se viesse a p�blico? Ao escrev�-la, Otaviano mal tinha idade para usar a navalha de seu pai. Mas este era o Otaviano de antes de se tornar o busto de si mesmo em que a vida o converteu.

 

Ele poderia ter transformado suas contradi��es em literatura ou poesia, mas n�o o fez. Os cr�ticos nunca se digladiaram pelo poeta que ele foi. Jos� Verissimo, Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira foram alguns que o classificaram como um "poeta menor". O pr�prio Otaviano talvez concordasse com isso, da� talvez sua produ��o po�tica ser t�o esparsa.

 

Mas o poeta menor foi bafejado pela gl�ria maior. Um de seus poemas, "Ilus�o da vida", estava fadado a viver para sempre: "Quem passou pela vida em branca nuvem/ E em pl�cido repouso adormeceu;/ Quem n�o sentiu o frio da desgra�a,/ Quem passou pela vida e n�o sofreu;/ Foi espectro de homem, n�o foi homem,/ S� passou pela vida, n�o viveu."

 

Haver� um poeta brasileiro que n�o o inveje por "Ilus�o da vida"? Quantos poetas maiores tiveram um poema como este que, adotado pelo povo, tem sido recitado h� 170 anos, desde 1853, at� por quem n�o sabe o nome do autor? Quantos poetas legaram uma express�o que se incorporou � l�ngua a ponto de tornar-se um clich�, como "passar pela vida em branca nuvem"?

 

E quem n�o gostaria de ser um inventa-l�nguas, como Otaviano foi? Em outra carta, de 1848, Otaviano tomou emprestado aos franceses o verbo "fl�ner" e o transformou em "flanar", no mesmo sentido de passear, andar ao l�u --quase 60 anos antes de a express�o se consagrar na pena do grande Jo�o do Rio. Em 1847, Otaviano j� usara em carta outro verbo in�dito, talvez de sua lavra: "balzaquear", no sentido de entregar-se � imagina��o, escrever em pensamento, ser um Balzac sem compromisso. E aventuro-me a dizer que Otaviano � merecedor de outra l�urea t�o importante quanto pouco conhecida: a de ter sido o pioneiro da cr�nica no Brasil.

 

O que � a cr�nica? Um misto de pe�a liter�ria, artigo de opini�o, pequena reportagem, confiss�o pessoal, fofoca pol�tica, registro mundano, tudo ou quase tudo no espa�o de cerca de 50 linhas. A cr�nica � um minijornal feito por uma s� pessoa. Seu assunto pode ser tanto o cotidiano quanto a eternidade --o que o cronista preferir. � um texto que se escreve com as pernas e, �s vezes, em cima da perna, de t�o � vontade. Digo com as pernas porque os personagens de que trata uma cr�nica n�o precisam parar para pensar --pensam andando mesmo. A cr�nica pode ser tudo, menos um texto de gabinete. O cronista � um fl�neur que � pago para escrever. Da� o Rio, que sempre foi a cidade perfeita para flanar, ser historicamente o cen�rio natural da cr�nica.

 

Quando se diz que Otaviano pode ter sido o pioneiro desse g�nero t�o brasileiro � porque n�o h� registros de cr�nica anteriores a 1852, quando ele come�ou. Fala-se de tr�s textos de Joaquim Manuel de Macedo na revista Guanabara em 1851, mas a defini��o deles como cr�nica � discut�vel. Com Otaviano, n�o se discute: de dezembro de 1852 a julho de 1854, ele publicou no Jornal do Com�rcio uma s�rie de cr�nicas sob a rubrica "A Semana", livres de qualquer d�vida quanto �s suas caracter�sticas.

 

Com ele come�ou uma das linhagens mais ilustres do jornalismo e da literatura brasileira, a da cr�nica, com seus grandes praticantes como Jos� de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Julia Lopes de Almeida, Jo�o do Rio, Alvaro Moreyra, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Antonio Maria, Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony.

 

Da� chego a supor que o fundador desta Cadeira 13, o Visconde de Taunay, tenha escolhido Otaviano como patrono por admir�-lo at� mais como homem de letras do que como homem p�blico. E quem sabe n�o seria esse lado da produ��o de Otaviano que daria mais propriedade ao seu nome na Academia do que suas fa�anhas no mundo profano, principalmente a pol�tica, que ele definia como uma "infecunda Messalina"?

 

Mas, querendo Otaviano ou n�o, Messalina fecundou-o em administrador, Conselheiro do Imp�rio e diplomata. E foi nesta �ltima condi��o que, em 1864, a Hist�ria o encontrou em Buenos Aires, como ministro plenipotenci�rio do Imp�rio do Brasil na miss�o do Rio da Prata --- articulando com a Argentina e o Uruguai a alian�a para deter as investidas expansionistas do paraguaio Solano L�pez. Era a Guerra do Paraguai.

 

Senhoras e senhores,

 

Se Francisco Otaviano foi o art�fice desta guerra, o escritor, engenheiro e soldado Alfredo d'Escragnolle Taunay, neto de bar�es, foi al�m: ele lutou nela --- e com suas pr�prias armas: as palavras.

 

Taunay tinha 21 anos quando a guerra estourou. Alistou-se no Ex�rcito e foi para o teatro de batalha. E viveu em tr�s anos o equivalente � vida inteira de muitos.

 

� prov�vel que o jovem Alfredo, segundo-tenente da Artilharia do Ex�rcito, n�o tenha disparado um tiro no conflito. Seu lugar na expedi��o era a retaguarda, como engenheiro militar. Engenheiros numa guerra s�o os que calculam os quil�metros a vencer, abrem estradas, constr�em pontes. Mas isso n�o os livra dos horrores de qualquer guerra, e Taunay viu seus companheiros, t�o jovens quanto ele, mortos ou agonizantes ao seu lado, estra�alhados pelas armas ent�o dispon�veis: fac�es, baionetas, pistolas, mosquetes e canh�es.

 

Taunay condensou tudo num livro extraordin�rio que escreveu aos 28 anos, em 1871, A retirada da Laguna. � a hist�ria do seu contingente: uma tropa de 3.000 homens e setenta e uma mulheres, todos a p�, muitas das mulheres com beb�s de colo. Partindo do Rio em mar�o de 1865, eles levaram quase dois anos atravessando 2.000 quil�metros at� a fronteira do atual Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Nesse percurso, enfrentaram rios que enchiam e alagavam tudo, p�ntanos que lhes iam at� o pesco�o, a lama em que seus canh�es se afundavam, gram�neas que cortavam como l�minas, os bois que fugiam assustados, as deser��es em massa, r�pteis, insetos, cansa�o, fome e as epidemias de c�lera, tifo, mal�ria e berib�ri. Quase mil homens morreram.

 

A retirada da Laguna descreve o avan�o quase suicida dessa expedi��o por territ�rio paraguaio at� o confronto com o inimigo --- este, a cavalo, em muito maior n�mero, com uniformes impec�veis, alimento de sobra e muito mais poder de fogo --- e o recuo for�ado dos nossos soldados, de volta ao lado brasileiro a partir da fazenda Laguna, com os paraguaios no seu encal�o. O livro � um relato metro a metro, com absurda capacidade de descri��o. � como se Taunay escrevesse com uma c�mera e um microfone, n�o com um l�pis. Eis um trecho: "Fomos assim todo o dia, caminhando com grande estr�pito, no meio das aclama��es dos nossos, dos gritos agudos e ferozes do inimigo, dos mugidos do gado, das explos�es de p�lvora, numa confus�o de homens e coisas, um caos de fumo e p�."

 

Taunay falou do frio noturno e das carro�as que eles tinham de incendiar para aquecer os soldados esfarrapados. Dos col�ricos j� moribundos implorando em coro por �gua e tendo de ser abandonados para n�o contaminar o resto da tropa. Dos soldados que preferiam se matar. Poderia ter sido um rep�rter de farda. Seus conhecimentos gerais, no entanto, e seu universo verbal fizeram dele um escritor.

 

Mas Taunay passou � posteridade n�o pela Retirada da Laguna, e sim por seu romance, Inoc�ncia, de 1872. Uma hist�ria de amor, em que a natureza e o ambiente �s vezes se sobrep�em aos personagens e � pr�pria trama, e assumem o primeiro plano. Era como se, em Taunay, o ficcionista vivesse em luta contra o n�o-ficcionista. Isso n�o impediu o triunfo de Inoc�ncia, at� outro dia o romance brasileiro mais traduzido no mundo.

 

E, como talvez fosse inevit�vel, Taunay tamb�m ingressou na pol�tica. Ocupou todos os cargos e, em setembro de 1889, apenas dois meses antes da Rep�blica, o Imperador concedeu-lhe o t�tulo de visconde. Rep�blica a que Taunay, ao contr�rio de muitos de seus pares, nunca aderiu. E, a 20 de julho de 1897, foi um dos 40 fundadores da Academia Brasileira de Letras e o primeiro a assumir esta Cadeira 13. Mas s� a ocupou por um ano e meio, pois morreu em 25 de janeiro de 1899.

 

Cadeira que n�o chegou a abrigar fisicamente seus dois titulares seguintes, o m�dico baiano Francisco de Castro e o jurista pernambucano Martins Junior. Francisco de Castro foi eleito em 1901, mas n�o tomou posse. A peste bub�nica vitimou-o pouco antes, logo ele, que era sanitarista. J� Martins Junior foi eleito em 1902 e tomou posse por carta, mas a morte tamb�m o levou, em 1904, antes de ele assumir o lugar.

 

Como m�dico, Francisco de Castro deixou muitos artigos sobre sua especialidade, a sa�de p�blica, reunidos num livro p�stumo com pref�cio de Rui Barbosa. E era tamb�m poeta, autor de um livro de versos, Harmonias errantes, prefaciado por Machado de Assis.

 

Quanto a Martins Junior, era advogado, fundador de jornais e autor de uma hist�ria do Direito no Brasil. Mas, assim como Francisco de Castro, sua identidade secreta tamb�m era a poesia. Ou talvez nem t�o secreta, porque Martins Junior teve certa voga no fim do s�culo XIX por sua defesa de uma poesia inspirada nas conquistas da ci�ncia, uma poesia "cient�fica", como ele dizia, em oposi��o ao "ouvir estrelas" de Olavo Bilac. Bilac, naturalmente, n�o tomou conhecimento da provoca��o e Martins Junior morreu sem saber que, em poucos anos, teria uma esp�cie de reden��o p�stuma, na figura de um poeta que parecia adepto da sua poesia "cient�fica": Augusto dos Anjos.

 

E ent�o surgiu a lenda maldita da Cadeira 13. Devido ao curto mandato do Visconde de Taunay, � morte prematura de seus dois sucessores e ao fato de ser a de n�mero 13, tornou-se a cadeira fatal, sobre a qual parecia pender uma guilhotina.

 

Mas a elei��o seguinte, a do tamb�m jurista pernambucano Souza Bandeira, em 1905, a reabilitou, porque ela foi dele pelos doze anos seguintes, at� 1917. E com m�rito, pela sua participa��o como ensa�sta na Revista Brasileira, ao lado de Machado, Nabuco e Taunay, e por ele ser, tamb�m em 1905, um dos escritores que Jo�o do Rio entrevistou para seu livro O momento liter�rio. Souza Bandeira, ali�s, era tio de Manuel Bandeira.

 

A dissipar de vez o estigma da Cadeira 13, Souza Bandeira foi sucedido pelo diplomata mineiro Helio Lobo, que a ocupou desde sua posse, em 1919, at� sua morte, em 1960 --- por 41 anos! � verdade que, como o ativo diplomata que era, Helio Lobo n�o teve muito tempo para sentar-se na cadeira. Passou boa parte da vida em outras cadeiras, principalmente no Exterior: secret�rio-geral do Brasil na Confer�ncia de Versalhes, em 1919, c�nsul geral em Londres e Nova York nos anos 20, delegado � Confer�ncia para a Manuten��o da Paz, em Buenos Aires, em 1936, e cargos no Uruguai, na Su��a e na Holanda.

 

Helio Lobo pode ter sido um membro ausente, mas foi sempre fiel � Academia. Em 1922, o jovem rep�rter Peregrino Junior, futuro Acad�mico, mas, ent�o, ainda deslumbrado com o Futurismo ent�o em voga, fez tudo para arrancar de Helio Lobo uma ades�o da Academia �quele movimento. Em v�o. Inconformado, Peregrino perguntou-lhe: "Ent�o, se n�o aprova o Futurismo, a Academia � passadista?". E Helio Lobo respondeu: "N�o. A Academia � presentista".

 

Senhoras e senhores.

 

Pergunto eu: e se a cria��o art�stica puder ser julgada por esse presente perene, alheio � Hist�ria e ao tempo? E se a cria��o art�stica contiver em si o tempo de que necessita e todos os tempos? Esta poderia ser uma das defini��es do trabalho do ga�cho Augusto Meyer, o ensa�sta, poeta e agente da cultura que sucedeu a Helio Lobo em 1960.

 

Segundo outro escritor ga�cho, Luiz Augusto Fischer, em comunica��o aqui mesmo nesta sala, em 2002, a leitura liter�ria para Augusto Meyer oferecia "a possibilidade de viver a vida dos s�culos atrav�s de algumas horas de concentra��o sobre as p�ginas de um livro". Ou seja, o livro como motor do conhecimento, n�o como seu reboque. N�o � uma id�ia muito popular hoje, em que a literatura parece ter se reduzido a um ap�ndice da Hist�ria. Isso n�o tornar� Augusto Meyer um pouco antigo? N�o. Para Fischer, ele era apenas "pr�-moderno".

 

Ou, pelo menos, tornou-se isso porque, em jovem, Augusto Meyer tentou, por algum tempo, ser "moderno". Em 1922, aos 20 anos, ele era um dos muitos de sua gera��o que buscavam a modernidade.

 

Busca que acontecia em toda parte. Um mundo acabara de morrer, sepultado pela Grande Guerra e pela Gripe Espanhola, e outro come�ava a nascer, ao embalo da velocidade, da psican�lise, do autom�vel, do cinema e da revolu��o nas artes pl�sticas e gr�ficas. A poesia n�o podia ficar parada. Da� haver uma sede pela sua renova��o nos garotos do Rio, S�o Paulo, Belo Horizonte, Recife, Natal --- e Porto Alegre.

 

No come�o, quase todos eles imitavam o poeta franc�s Paul Fort, criador de pequenos poemas quase prosa, de enganadora simplicidade; imitavam o belga �mile Verhaeren, o primeiro a cantar as "cidades tentaculares"; e imitavam principalmente o su��o Blaise Cendrars, inventor do poema-piada. Depois, passaram a se imitar uns aos outros, at� que, livrando-se dos clich�s e dos cacoetes, alguns conquistaram linguagem pr�pria.

 

Augusto Meyer foi dos primeiros a encontrar a sua, e sem precisar fazer, de Porto Alegre, Paris. Na verdade, esta linguagem estava �s suas portas, l� mesmo nos pampas. O Sul foi a sua natural inspira��o, e que bom que tenha sido, mas isso lhe custou passar aos comp�ndios como algu�m que "trabalhou" o regionalismo ga�cho --- como se isso fosse uma limita��o. Como se, ent�o, todos aqueles poetas de toda parte do Brasil n�o praticassem cada qual o seu regionalismo, provinciano e dialetal, alguns at� desvairados.

 

Mas Augusto Meyer n�o estava fadado � prov�ncia e aos dialetos. Ao se voltar para o mundo, foi como o ensa�sta de livros como � sombra da estante, A chave e a m�scara e A forma secreta que ele se fez ao mar. A trama de sua rede era para os peixes grandes --- Dante, Cam�es, Shakespeare, Dostoievski, Machado, Rimbaud, Borges ---, mas ele os fazia caber num artigo de jornal ou em cinco ou seis p�ginas de livro. Era o de que seus ensaios precisavam para nos desvelar mundos. Abundantes provas disso se encontram na antologia Augusto Meyer --- Ensaios escolhidos, de 2007, organizada e prefaciada pelo Acad�mico Alberto da Costa e Silva.

 

Em cada texto v�-se o rigoroso "pr�-moderno", avesso a concess�es formalistas. Ao analisar a postura dos tradutores diante dos poetas, Augusto Meyer n�o admitia que eles subvertessem o sentido do poema para faz�-lo rimar como o original. E dizia, daquele seu jeito insuper�vel: "A rima, essa f�mea l�brica e devassa, que anda sempre aos beijos amancebada no fim dos versos, obriga o melhor tradutor a inevit�veis trai��es do sentido po�tico. Para saltar o obst�culo, ele n�o hesita em alijar a carga; tudo ser� esquecido em benef�cio da rima."

 

E Augusto Meyer tinha autoridade para denunciar isto. Assim como seus contempor�neos Agrippino Grieco, Manuel Bandeira e Alvaro Lins, sua erudi��o era de assustar --- com Agrippino, ali�s, travou memor�vel batalha sobre as influ�ncias e cita��es secretas no Br�s Cubas. Era uma erudi��o que lhe permitia descobrir g�rias pleb�ias nos cl�ssicos mais engomados, o tr�nsito clandestino de longos textos entre um livro e outro e express�es que j� eram arca�smos quando usadas por um poeta, digamos, do s�culo XIII. � verdade tamb�m que, �s vezes, ele se esquecia do leitor e lhe servia par�grafos inteiros em alem�o ou italiano, sem traduzi-los, como se o leitor fosse �ntimo dessas l�nguas.

 

Mas, ao mesmo tempo em que era um homem-estante, Augusto Meyer podia ser um homem-cora��o, um homem-mem�ria. Ningu�m mais l�rico do que ele quando, esquecendo momentaneamente as prateleiras, olhava pela janela. Por ela, via n�o s� a paisagem, mas tamb�m o seu passado.

 

Como quando descreveu sua paix�o pela enseada de Botafogo, aqui no Rio, aonde chegou nos anos 30 e da qual nunca mais saiu. "O meu namoro com esta enseada", escreveu ele, "come�ou h� muitos anos, no tempo do era uma vez. Era uma vez um menino cheio de bolhas de sab�o na cabe�a e uns cart�es postais selados com o retrato de Pedro �lvares Cabral, que o pai lhe mandava de uma distante Babil�nia chamada Rio de Janeiro." Augusto Meyer dizia de muitos cariocas que eram "forasteiros distra�dos --- chegaram, gostaram e ficaram", e se inclu�a neles.

 

Meyer veio para o Rio em 1937, a convite de Getulio Vargas, seu ex-colega de porta de livraria em Porto Alegre e ent�o presidente da Rep�blica. Vargas o chamou para executar um projeto merit�rio: a cria��o do Instituto Nacional do Livro --- um organismo para p�r mais livros na m�o dos brasileiros. Isso significava tornar o livro um objeto de amplo alcance, com a cria��o de bibliotecas, em parceria com as prefeituras. Destas, o Instituto Nacional do Livro s� exigia que providenciassem um im�vel, com estantes, fich�rios e pessoal capacitado. O Instituto se encarregaria de abastec�-las de livros.

� not�vel como Augusto Meyer praticou as duas �guas. Era capaz de alternar a an�lise de um verso de Dante no suplemento liter�rio do Correio da Manh� com a fiscaliza��o de almoxarifados nas bibliotecas dos grot�es. E logo ele, talvez o n�o-administrador por excel�ncia. Que for�a estranha o fez enfrentar a burocracia, a m� vontade das prefeituras, a falta de papel pelo racionamento da Segunda Guerra e a precariedade dos meios de transporte no pa�s? O que o moveu e o fez superar tudo isso? Talvez a consci�ncia de uma voca��o m�gica: a de fazer do Brasil uma extens�o das suas estantes. E de cada brasileiro um leitor.

 

Para mim, esta foi a sua grandeza. Quantas bibliotecas Augusto Meyer n�o ter� plantado em seus 25 anos � frente do Instituto Nacional do Livro? Fala-se em doze mil. Quantos leitores n�o ter� formado? Talvez milh�es. E quanto de conhecimento isso n�o gerou? � incalcul�vel.

 

Ao morrer, em 1970, Augusto Meyer deixou estantes abarrotadas pelo pa�s. Mas o que ser� que fizemos delas?

 

E, senhoras e senhores, quanto o Brasil n�o deve a seu sucessor na Cadeira 13, o jornalista e bi�grafo Francisco de Assis Barbosa? Paulista de Guaratinguet�, de 1914, carioca desde 1931, Acad�mico de 1970 a 1991, e, para resumir sua vertiginosa carreira, um funcion�rio da cultura, em todos os n�veis e dimens�es.

 

Com carteira assinada e mesa na Reda��o, Francisco de Assis Barbosa trabalhou nos principais jornais, redigiu in�meros verbetes de enciclop�dias como a Brit�nica, a Barsa e a Mirador, foi membro de importantes institui��es culturais e, como escritor, produziu perfis e ensaios sobre Evaristo da Veiga, Machado de Assis, o esquecido Bethencourt da Silva, Roquette-Pinto, Juscelino Kubitschek. Mas at� esse curr�culo empalidece diante do que Chico Barbosa, como todos o chamavam, fez por Lima Barreto.

 

Ele nada menos que resgatou Lima Barreto da obscuridade a que ele parecia condenado desde sua morte, em 1922, quando, alvejado pela pecha de "escritor de bairro", deu-se in�cio ao seu esquecimento.

 

Ser esquecido � o destino natural de todo brasileiro que comete o equ�voco de morrer. Mas, no caso de Lima Barreto, esqueceu-se tamb�m a obra. Nos trinta anos de obl�vio que se seguiram, Lima pareceu viver apenas na mem�ria de seus contempor�neos sobreviventes, como Astrojildo Pereira e Agrippino Grieco, e na dos poucos que se consideravam seus disc�pulos, como Marques Rebelo. Seus romances estavam virtualmente fora de cat�logo --- n�o mais que uma ou duas reedi��es nesse per�odo, em apressados livros de bolso.

 

A cr�tica tamb�m o deixara de lado. Numa consulta � primeira edi��o, de 1951, da Pequena Bibliografia Cr�tica da Literatura Brasileira, de Otto Maria Carpeaux, a soma de artigos publicados sobre Lima Barreto, de sua morte at� aquele ano, coube em meia p�gina do livro. Fez-se com Lima Barreto o mesmo que com Adelino Magalh�es, que tem meras cinco refer�ncias no livro de Carpeaux; com Jo�o do Rio, com uma �nica refer�ncia; e com Gilka Machado, simplesmente ausente do livro. Eles foram abandonados. Que literatura � esta, t�o rica que pode se dar ao luxo de cancelar escritores de tal porte?

 

Francisco de Assis Barbosa, desde meados dos anos 40, prop�s-se a ressuscitar Lima Barreto. Dedicou-se a recuperar tudo que ele escrevera, os pap�is que deixara inconclusos, seus di�rios e cartas e as colabora��es em jornais h� muito desaparecidos. Chico Barbosa cuidou de tudo isso, revirando at� o fundo dos arm�rios de comida na casa dos irm�os de Lima Barreto em Todos os Santos, na Zona Norte do Rio.

 

Teve uma ajuda preciosa: a do jornalista e futuro Acad�mico Raimundo Magalh�es Jr., �ntimo dos fich�rios da Biblioteca Nacional, e que levantou o que foi poss�vel da produ��o ef�mera de Lima Barreto. Duas tentativas de publicar sua obra completa fracassaram. Mas Chico Barbosa continuou a bater �s portas das editoras e, finalmente, em 1956, saiu a cole��o em dezessete volumes pela Editora Brasiliense --- encadernados e vendidos a presta��es pelos vendedores viajantes, de porta em porta, em todo o pa�s. Era a vit�ria. Lima Barreto estava de volta, maior do que nunca.

 

E n�o s� isso. Durante os anos em que lutou pela obra de Lima Barreto, Chico Barbosa foi seduzido pela vida do escritor. O acesso a velhos amigos de Lima, o conv�vio com seus pap�is �ntimos e um amplo conhecimento do Rio do come�o do s�culo tornaram inevit�vel que transformasse isso tudo numa biografia. E, assim, em 1952, quatro anos antes da obra completa, tivemos A vida de Lima Barreto, pela Editora Jos� Olympio.

 

Para mim, que d�cadas depois tamb�m me aventurei pelo g�nero da biografia, � particularmente honroso sentar-me � cadeira um dia ocupada por Francisco de Assis Barbosa. Sua import�ncia n�o est� apenas em ter resgatado Lima Barreto para a literatura brasileira, embora isto j� seja sem pre�o. Mas tamb�m em ter dado uma nova dimens�o � biografia no Brasil --- at� ent�o, quase sempre, uma narrativa � base de material de segunda m�o, j� publicado, mantendo-se todos os erros j� cristalizados, e de muita imagina��o por parte do bi�grafo. Chico Barbosa fez diferente: saiu � rua, foi �s fontes, fez-lhes perguntas, checou as respostas. Como deve ser.

A vida de Lima Barreto inspirou toda uma nova gera��o de bi�grafos, que levaria quase quarenta anos para aparecer, mas veio para ficar e da qual me orgulho de fazer parte.

 

Obrigado, Chico Barbosa, por nos ter aberto o caminho.

 

E tamb�m obrigado, Sergio Paulo Rouanet, por nos ter aberto tantos caminhos que nos permitiram entender o nosso tempo. Rouanet, que sucedeu Chico Barbosa na Academia em 1992, n�o se limitou a entender esse tempo, mas ajudou a transform�-lo. Fez isto em sua tr�plice atua��o: como diplomata --- ele foi o Brasil em Zurique, Copenhague, Berlim, Praga ---, como gestor p�blico e como pensador.

 

Em seus livros, principalmente As raz�es do Iluminismo, Rouanet alertou para a crise no pensamento mundial. Identificou os equ�vocos da modernidade, como o progresso t�cnico que desconsidera a justi�a, ignora a ecologia, rebaixa os patrim�nios culturais e contribui para a sua depreda��o. O futuro n�o � uma continuidade inevit�vel do passado e nem o presente � necessariamente prefer�vel a este, diz ele --- assim como o socialismo dos s�culos XIX e XX n�o � um guia obrigat�rio para o do s�culo XXI. Mas, ao mesmo tempo, n�o se pode parar a Hist�ria, nem ignorar as conquistas da Humanidade desde o Renascimento. A partir delas podemos pensar numa nova modernidade, ecologicamente sustent�vel, com racionalidade econ�mica, prop�sitos �ticos e respeito � vida.

 

Rouanet denunciou "a desraz�o travestida de raz�o" e as "posi��es de direita defendidas com um discurso de esquerda". Ensinou-nos que existe "uma raz�o louca e uma raz�o s�bia". Que "a intelig�ncia n�o tem p�tria" e que "as culturas s�o din�micas, h�bridas, sincr�ticas, internacionais --- viajam e se confundem entre as na��es". Rouanet sonhou com "um mundo melhor e mais belo, n�o apenas mais rico". Mas previu tamb�m "o advento de um novo irracionalismo" e que "o verde-amarelo � a cor do nosso irracionalismo". Talvez dev�ssemos t�-lo escutado com mais aten��o.

 

Hoje me dou conta de que, antes de admirar o fil�sofo Rouanet, eu j� fora bafejado por seu trabalho, ao ver na estante o volume das Obras escolhidas, de Walter Benjamin, que ele traduziu em 1985 e que comprei na primeira semana. E me lembro de, ao cobrir em Paris o bicenten�rio da Revolu��o Francesa para o jornal O Estado de S. Paulo, em 1989, descobri um revolucion�rio original e apaixonante, an�rquico e delirante, R�tif de La Bretonne. Por alguns dias, R�tif foi minha propriedade particular. Mas, ao voltar para o Brasil, constatei que um brasileiro j� escrevera um livro inteiro sobre ele: Sergio Paulo Rouanet, com O espectador noturno.

 

E o que dizer de seus estudos sobre Freud, Foucault e Habermass, este em parceria com Barbara Freitag, e sobre Machado de Assis, al�m de seu formid�vel levantamento da correspond�ncia de Machado, em cinco volumes, pela Academia Brasileira de Letras?

 

Certo dia, Rouanet declarou numa entrevista: "O grande complexo de inferioridade do intelectual � o de se sentir in�til. Quando um intelectual consegue fazer coisas �teis, e acho que consegui faz�-las, isso d� uma grande alegria." Rouanet disse isso em 2012, vinte anos depois da cria��o de uma lei de incentivo � cultura no Brasil, de sua autoria --- lei que autorizava os produtores a buscar investimento em empresas privadas para financiar projetos culturais, permitindo que essas empresas abatessem no imposto de renda uma parcela do valor investido.

 

Com isso, ele simplesmente despertou o empres�rio brasileiro do seu ego�smo e letargia, e o trouxe para o lado da cultura e da cria��o. Rouanet dissolveu tamb�m a hostilidade secular entre os artistas e os patr�es, e mostrou que eles podiam trabalhar juntos. Tudo isso com a lei que levou o seu nome.

 

Naqueles 20 anos, o nome de Sergio Paulo Rouanet esteve por tr�s de livros, salas de concerto, museus, exposi��es de arte. Em cada pe�a restaurada do patrim�nio hist�rico, cada biblioteca que sua lei impediu de fechar, cada ciclo de debates e confer�ncias e em incont�veis festivais de teatro, cinema, poesia, m�sica popular, folclore, dan�a. Como calcular o ganho da na��o com tudo isso? O ganho inclusive social e econ�mico, com os empregos gerados. E os talentos revelados, as carreiras despertadas, o p�blico conquistado?

 

Essa cicl�pica produ��o gerada pela Lei Rouanet continuou pelos anos seguintes, at� que novos tempos --- na verdade, velhos tempos que se faziam de novos, como ele antecipara --- dedicaram-se a corromp�-la com fake news. Ela foi usada como muni��o na pior guerra contra a cultura j� desfechada por um governo no Brasil. A boca imunda desses agentes tentou fazer do nome Rouanet um palavr�o. Quando tiraram o seu nome da lei, pensando que assim o humilhavam, n�o imaginavam o al�vio com que Rouanet recebeu a not�cia.

 

A Lei Rouanet, enquanto �ntegra, j� seria um consider�vel legado. Mas, maior ainda que a Lei Rouanet, como disse o educador e pol�tico Cristovam Buarque, foi a Li��o Rouanet. A li��o do pensador, e de um pensador brasileiro.

� a este homem, que nos deixou em julho de 2022, que tenho a responsabilidade de suceder. Que eu me fa�a merecedor dessa sucess�o e honre sua Cadeira. A fabulosa Cadeira 13.

 

Senhoras e senhores,

 

O aqui j� citado Agrippino Grieco disse certa vez: "A ci�ncia progride. A literatura, n�o. Cop�rnico destruiu Ptolomeu. Cam�es n�o destruiu Homero."

A literatura permanece. E a Academia que agora tenho a honra de integrar, gra�as � vossa benevol�ncia e a quem agrade�o, � uma prova dessa perman�ncia. Por suas cadeiras, nesses 125 anos, passaram brasileiros e brasileiras de todos os talentos e especialidades. � a institui��o mais representativa da nossa cultura. Cada um que nela ingressa traz a carga de sua experi�ncia.

 

Este � um momento especial para minha mulher, a escritora Heloisa Seixas, a quem submeto primeiro tudo que escrevo e secretamente me beneficio de suas id�ias, corre��es e sugest�es. Especial para minhas filhas Pilar e Bianca; para minha enteada Julia Romeu e para meus netos Isabel, Jo�o Ruy, Teresa, Olivia e Aurora, todos aqui presentes. Eles sabem que, em algum momento do passado, a vida poderia ter seguido outro curso --- um longo n�o-curso, levado por uma garrafa. Mas um "Sim" dito h� 35 anos, a favor da sobriedade, da lucidez e da vida, reverteu esse curso.

 

N�o por coincid�ncia, foi tamb�m h� 35 anos que passei a dedicar-me ao formato que se considera eterno: o livro. Devo isto ao editor Luiz Schwarcz, da nascente Companhia das Letras, de que sou hoje o autor mais antigo em atividade e com mais t�tulos publicados.

 

Como escritor, tenho falado de muitos homens e mulheres do s�culo XX, todos mestres em seus of�cios. Mestres de uma cultura ainda n�o de todo estudada, porque praticada em ve�culos populares: livros baratos, pe�as escandalosas de teatro, programas de r�dio cheios de ru�dos, filmes que se perderam, discos f�ceis de quebrar. Uma cultura talvez "alta" para ser considerada autenticamente "do povo" e, ao mesmo tempo, "baixa" para merecer ensaios profundos, com cita��es de p� de p�gina. Mas foi uma cultura que circulou pelo cora��o de milh�es de brasileiros --- ou pelo cora��o deste brasileiro.

 

Com a vossa permiss�o, entram comigo nesta Casa Nelson Rodrigues, Garrincha, Carmen Miranda, Orlando Silva, Lucio Alves, Jo�o Gilberto, Tom Jobim, Dolores Duran, Agrippino Grieco, Gilka Machado, Orestes Barbosa, Pixinguinha, Ary Barroso, Grande Otelo, Rubem Braga, Antonio Maria, Leila Diniz, Paulo Francis, Mill�r Fernandes, J. Carlos, Di Cavalcanti e muitos mais. E, por fim, inteiro, o Rio de Janeiro.

Muito obrigado.


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