
Mariama Correia, da Ag�ncia P�blica
“A viol�ncia que sofri gerou outros processos de viol�ncia. Por isso, fiquei anos em sil�ncio”, diz Bella Gon�alves, deputada estadual pelo PSOL em Minas Gerais. � a primeira vez que ela fala publicamente sobre ter sofrido ass�dios do professor Boaventura de Sousa Santos, quando ele era seu orientador de doutorado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em Portugal, de 2013 a 2014. O depoimento dela � Ag�ncia P�blica vem no rastro das acusa��es de ass�dio sexual de alunas contra o professor e soci�logo renomado, que vieram � tona recentemente, a partir de uma publica��o sobre m� conduta sexual no meio acad�mico.
No texto publicado em mar�o deste ano, tr�s ex-alunas relatam ass�dios de professores do mesmo centro da Universidade de Coimbra. Elas n�o citam nomes, mas narram abusos de poder contra “jovens pesquisadoras que dependem de aprova��o acad�mica para construir suas carreiras”, “extrativismo intelectual e sexual” e “impunidade”. H� refer�ncias de ass�dios sexuais praticados por um “professor-estrela” e seu auxiliar, descrito como “o aprendiz”. Um dos casos narrados � o de Bella Gon�alves, mas a identidade dela foi omitida no artigo. Com a repercuss�o do artigo — e surgimento de novas den�ncias de outras mulheres —, o pr�prio Boaventura assumiu ser o “professor-estrela”. O “aprendiz” seria Bruno Sena Martins. Boaventura classificou as den�ncias como “vingan�a” e prometeu apresentar queixa-crime contra as autoras.
A reportagem procurou Boaventura atrav�s de email e atrav�s da Universidade. Martins tamb�m foi procurado atrav�s da institui��o. At� o momento, ambos n�o haviam respondido.
“Decidi dar minha palavra pela postura de nega��o e descredibiliza��o dele”, disse Bella Gon�alves � P�blica. Ela relata que o ass�dio sexual aconteceu em 2014, quando tinha 26 anos. Boaventura j� estava com mais de 70. Gon�alves conheceu o professor durante a gradua��o na Universidade de Coimbra, quando era intercambista do Ci�ncia sem Fronteiras. Depois, veio o doutorado com bolsa da Capes. Boaventura era o orientador.
“Um dia, ele pediu para marcar uma reuni�o no apartamento dele. Colocou a m�o na minha perna. Falou que as pessoas pr�ximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a rela��o”. Ela relata que foi embora atordoada. No dia seguinte, ela conta que o professor a convidou para uma conversa junto com o ex-companheiro dela, que estudava no mesmo centro acad�mico. “Ele humilhou nossos trabalhos. Meu ex-companheiro chorava muito”, lembra. “Ali identifiquei que voc� poderia ter vantagens por estabelecer rela��es afetivas e sexuais com professores. Mas, se voc� se nega, � punida por isso.”
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Gon�alves rompeu a orienta��o. Em busca de acolhimento, procurou outros professores da universidade, inclusive professoras dedicadas a tem�ticas feministas. “Todos diziam que eu n�o era o primeiro caso. Lamentavam, mas n�o davam suporte ou sa�da”. Ela conta que chegou a pedir ajuda ao professor auxiliar, Bruno Sena, sem saber que tamb�m havia acusa��es de ass�dio contra ele. “Ele me orientou a n�o denunciar”.
Na �poca, a ex-aluna de Boaventura n�o encontrou um canal de acolhimento, de suporte psicol�gico ou mesmo para tratar den�ncias de ass�dio na universidade. “� uma estrutura muito hier�rquica, machista, patriarcal. Boaventura j� era conhecido por condutas abusivas. Humilhava estudantes em p�blico, xingava pesquisadoras, tinha posturas impr�prias nas festas. Mas era diretor do centro acad�mico. Eu sabia que nada aconteceria com ele”.
A P�blica questionou a assessoria da Universidade de Coimbra sobre a falta de canais de den�ncia para casos de ass�dio e sobre o fato da institui��o n�o ter tomado provid�ncias diante das den�ncias dos estudantes, ao longo dos anos. A reportagem ainda n�o obteve resposta.
Desistir no segundo ano de curso significava tanto perder o doutorado como ter que devolver a integralidade da bolsa de estudos. “Eram noites sem dormir pensando em quantos Euros precisaria pagar. Meu cabelo come�ou a cair. Minha m�e dizia que eu estava louca de abrir m�o de uma bolsa no exterior.”
Segundo a deputada, apesar do relato de ass�dio, a Capes n�o ofereceu alternativa para manuten��o da bolsa. Mesmo assim, ela decidiu voltar para o Brasil. Pagou do pr�prio bolso as viagens para prestar novo processo seletivo, mas terminou conseguindo manter a pesquisa vinculada � Universidade de Coimbra, com orienta��o na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ainda assim, arcou com os custos para o centro acad�mico portugu�s e perdeu a bolsa. Precisou voltar a trabalhar. A P�blica questionou a Capes, mas n�o recebeu respostas at� a publica��o da reportagem.
Por nota, a Capes informou que, em casos de ass�dio sexual, a ouvidoria da institui��o tem “procedimentos espec�ficos”, que incluem garantir o sigilo e a prote��o da identidade do denunciante, al�m de encaminhar den�ncias para �rg�os competentes. Tamb�m que, em casos ocorridos no exterior, “possibilita o retorno ao Brasil e o apoio � continuidade dos estudos em outra institui��o”, mas que se “o bolsista tiver recebido 48 meses de bolsa no exterior n�o � facultado receber bolsa para o mesmo objetivo.”
“Ele [Boaventura] fez uma reuni�o on-line comigo para pedir desculpas. Disse que se apaixonou, que era natural entre duas pessoas adultas. Quis manter a orienta��o da minha tese. “N�o topei”, conta. “Tive preju�zos psicol�gicos, emocionais e financeiros. Mudei de pa�s, larguei uma bolsa de estudos, os danos s�o irrepar�veis. N�o quero desculpas, quero que ningu�m mais passe por isso.”
Todo o processo atrasou a conclus�o do doutorado em dois anos. Em 2018, Bella Gon�alves foi aprovada com honra e louvor em ambas as universidades. Foi nesse mesmo ano que apareceram as primeiras picha��es contra Boaventura, nos muros da Universidade de Coimbra. O grafite dizia: “V� embora Boaventura. N�s todos sabemos disso”. Na �poca, o professor veio a Belo Horizonte. “Ele me mostrou as picha��es, insinuou se eu seria a pessoa por tr�s”, conta Gon�alves.
Bella Gon�alves, que � cientista pol�tica, foi eleita vereadora em Belo Horizonte e, em 2022, se tornou deputada estadual por Minas. “Sou uma mulher de movimentos sociais, que fa�o den�ncias de tudo quanto � jeito, mas n�o encontrei nenhuma sa�da para denunciar o ass�dio que sofri. Estava presa a uma teia de poder maior”. Ela diz que a “retalia��o sobre as mulheres no ambiente acad�mico � profunda”. “Professoras n�o podem falar porque v�o ser demitidas, alunas s�o silenciadas por medo de n�o conseguirem se formar”.
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A deputada prepara um Projeto de Lei para tornar obrigat�ria a constru��o de canais de suporte psicol�gico e den�ncias de ass�dio em universidades e institutos de pesquisa de Minas Gerais. Ela pretende levar a discuss�o ao Congresso Nacional, via bancada do PSOL. “A Capes e o CNPQ precisam ter esses canais. � inadmiss�vel a interrup��o de programas de pesquisa por situa��es de ass�dio. N�o � apenas sobre o caso de Boaventura. � sobre v�rios professores que mant�m a mesma conduta nos ambientes acad�micos”, diz.
A reportagem fez contato com a Universidade de Coimbra, por telefone e por e-mail, mas n�o recebeu respostas at� a publica��o. A P�blica tamb�m tentou contato com o professor Boaventura de Sousa Santos, mas ele n�o respondeu nossos e-mails. N�o conseguimos contato com o professor auxiliar Bruno Sena.