
Andr� Biernath - @andre_biernath - Da BBC News Brasil em Londres

Os v�rus sempre foram encarados como grandes vil�es da sa�de - no��o que se fortalece ainda mais durante uma pandemia como a que vivemos, em que o causador da COVID esteve associado a 20 milh�es de mortes at� agora.
Mas, dentro da oncologia, especialidade da medicina que lida com o c�ncer, alguns desses agentes infecciosos passam a ser vistos cada vez mais como aliados: os v�rus podem se tornar uma ferramenta valiosa para tratar uma s�rie de tumores, apontam especialistas.
Atualmente, diversos grupos de pesquisa avaliam a possibilidade de usar os chamados v�rus oncol�ticos como uma maneira de atacar diretamente as c�lulas cancerosas ou de incentivar uma resposta mais robusta do sistema imunol�gico contra essas unidades doentes.
O exemplo mais recente desse empreendimento cient�fico � o CF33-hNIS Vaxinia, uma virusterapia desenvolvida pelo City of Hope, hospital localizado nos Estados Unidos, e pela farmac�utica australiana Imugene.
O produto traz agentes infecciosos da mesma fam�lia da var�ola que foram modificados em laborat�rio para atacar especificamente as c�lulas tumorais.
Em testes pr�-cl�nicos, feitos com amostras de c�lulas e cobaias, essa estrat�gia foi capaz de reduzir diversos tipos de tumores, como aqueles que aparecem no intestino grosso, nos pulm�es, nas mamas, nos ov�rios e no p�ncreas.
Resta saber se esse mesmo efeito acontece em seres humanos. No final de maio, os cientistas come�aram os testes cl�nicos, que envolvem volunt�rios.
Na primeira fase dos estudos, que envolver� 100 pacientes, a meta � conferir se o produto, injetado diretamente no tumor ou aplicado por meio de infus�es na veia, � realmente seguro e n�o provoca efeitos colaterais.
Os resultados do experimento devem sair em at� 24 meses.
"Esperamos aproveitar a promessa da virologia e da imunoterapia para o tratamento de uma ampla variedade de c�nceres que s�o mortais", antev� o cirurgi�o oncol�gico Yuman Fong, um dos criadores da virusterapia no City of Hope, em comunicado � imprensa.
A��o dupla
Para entender como a virusterapia funciona na pr�tica, precisamos antes saber como os v�rus atuam na natureza.
Os v�rus s�o pat�genos extremamente simples, cuja �nica fun��o se resume a invadir as c�lulas de um ser vivo e "sequestrar" aquele maquin�rio biol�gico para criar novas c�pias de si mesmo.
Essas novas c�pias, por sua vez, v�o repetir o processo enquanto durar a infec��o.
Nesse rito de invas�o, sequestro e replica��o, as c�lulas afetadas pelos v�rus n�o resistem e morrem.

A partir da observa��o desse mecanismo viral, alguns cientistas come�aram a especular: ser� que n�o � poss�vel utilizar o mesmo princ�pio para atacar somente as c�lulas que formam o tumor?
Essa � a premissa b�sica da virusterapia: encontrar na natureza, ou desenvolver em laborat�rio, pat�genos que mirem especificamente nas c�lulas cancerosas.
E, ao investir nesse tipo de tratamento, � poss�vel obter dois efeitos positivos diferentes.
"O primeiro deles � fazer com que o v�rus invada a c�lula doente e a mate", explica o imunologista Martin Bonamino, pesquisador do Instituto Nacional de C�ncer (Inca).
"O segundo � que alguns desses v�rus modificados carregam genes espec�ficos que geram anticorpos e estimulam o sistema imunol�gico do pr�prio paciente a reconhecer o tumor e passar a atac�-lo", complementa o especialista, que tamb�m trabalha na Funda��o Oswaldo Cruz (FioCruz).
Essa a��o dupla pode ser potencializada ainda mais com o uso de outros rem�dios em conjunto. Uma possibilidade � combinar os v�rus oncol�ticos com a imunoterapia, um tipo de tratamento que estimula o sistema imune a identificar e combater o c�ncer.
Mas como � poss�vel garantir que esses v�rus terap�uticos s� v�o infectar as c�lulas tumorais e poupar�o as unidades saud�veis do organismo? � a� que entram em cena a biotecnologia e a engenharia gen�tica.
"A ideia � encontrar pat�genos que t�m uma afinidade com as c�lulas cancerosas e atuem especificamente nelas", contextualiza o oncologista cl�nico Vladmir Cordeiro de Lima, do A.C. Camargo Cancer Center, em S�o Paulo.
D�cadas de trabalho
A primeira proposta bem-sucedida de virusterapia contra o c�ncer foi o T-VEC, um rem�dio aprovado pela ag�ncia regulat�ria dos Estados Unidos em 2015 (ele n�o est� dispon�vel no Brasil at� o momento).
Trata-se de um recurso terap�utico indicado para casos de melanoma, um tipo de c�ncer de pele que costuma ser agressivo.
De l� para c�, v�rios outros estudos nessa �rea foram iniciados. Alguns deles, inclusive, est�o em andamento no Brasil.
Dois grupos de pesquisa diferentes, um na Universidade de S�o Paulo (USP) e outro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, est�o estudando se o v�rus zika pode ser utilizado como tratamento para alguns tipos de c�ncer que afetam o sistema nervoso central.

A ideia surgiu a partir da observa��o de que esse pat�geno, por tr�s de um grave problema de sa�de p�blica no pa�s desde 2015, tem uma "prefer�ncia" por atacar as c�lulas que constituem o c�rebro e os nervos - isso, ali�s, explica o fato de ele estar por tr�s da microcefalia nos beb�s durante a gesta��o.
Os primeiros resultados, obtidos em 2018 a partir de experimentos com cobaias, foram encorajadores: o zika de fato reduziu o tamanho dos tumores no sistema nervoso numa parcela significativa dos animais.
Procurada pela BBC News Brasil, a geneticista Mayana Zatz, que lidera as pesquisas com o zika na USP, diz que as investiga��es sobre o potencial v�rus oncol�tico seguem em andamento.
"Estamos trabalhando em v�rias frentes. Buscamos, por exemplo, diferentes estrat�gias para conseguir um zika modificado em laborat�rio", explica.
A ideia � que essas altera��es gen�ticas feitas no v�rus "original" permitam intensificar a resposta ao tratamento, para obter resultados ainda superiores.
"Tamb�m estamos injetando o v�rus ainda n�o modificado em c�es diagnosticados com tumores cerebrais e acompanhando a evolu��o cl�nica e neurol�gica dos casos", completa a pesquisadora, que coordena o Centro de Estudos em Genoma Humano e C�lulas-Tronco da USP.
Enquanto o conhecimento na �rea avan�a aos poucos, Bonamino ressalta a import�ncia da pesquisa cient�fica b�sica para que inova��es como os v�rus oncol�ticos possam virar realidade.
"Esses tratamentos s�o resultado de muitos anos de estudo, que permitiram desvendar os mecanismos b�sicos dos v�rus e criar as t�cnicas de engenharia gen�tica", aponta.
Cordeiro de Lima, por sua vez, entende que a virusterapia pode se tornar, no futuro, uma ferramenta auxiliar no tratamento de muitos tumores.
"H� um grande potencial para que ela seja combinada e integrada com outras estrat�gias, como uma maneira de aumentar o espectro de pacientes que se beneficiam de tratamentos contra o c�ncer", conclui o m�dico.