Natasha e Leonor

Natasha (� direita) descobriu o c�ncer de mama aos 27 anos e, com acompanhamento m�dico, paralisou a horm�nioterapia para ter a filha Leonor

Arquivo pessoal

A administradora Natasha Vilhena tomava um banho quando passou o sabonete no peito e sentiu um caro�o na mama.

O epis�dio aconteceu em novembro de 2015. Ela tinha 27 anos de idade e havia casado h� dois meses.

Preocupada com a descoberta inesperada, Vilhena resolveu investigar e, ap�s uma batelada de exames, recebeu o diagn�stico em dezembro daquele mesmo ano: ela estava com c�ncer de mama.

"Eu queria resolver logo essa situa��o. Falei com o mastologista e, uma semana depois, j� tinha feito a cirurgia para retirar o tumor", lembra.

Mas o tratamento n�o parou por a�: ela ainda passou por sess�es de quimioterapia e radioterapia antes de iniciar a horm�nioterapia, um comprimido tomado diariamente para regular a a��o de horm�nios que estimulam o crescimento das c�lulas tumorais e o reaparecimento da doen�a.

Geralmente, essa etapa terap�utica (a hormonioterapia) se estende por cinco a dez anos.

S� que antes mesmo de come�ar a quimioterapia, Vilhena precisava tomar uma decis�o de vida muito importante. "Eu queria ser m�e."

Aconselhada pelos m�dicos, a administradora adicionou uma nova etapa antes de continuar a cuidar do c�ncer. Ela fez um congelamento de �vulos — as c�lulas reprodutivas podem ser afetadas pelas subst�ncias qu�micas ou pela radia��o aplicadas para destruir as c�lulas tumorais remanescentes.

Com os gametas assegurados, Vilhena fez as sess�es de qu�mio e radioterapia. Depois, como planejado, come�ou a tomar o comprimido di�rio de tamoxifeno, o rem�dio que bloqueia a a��o de alguns horm�nios.

"Quando completei tr�s anos de tamoxifeno, os m�dicos disseram que eu poderia ter um filho", conta ela.

Ap�s dois meses sem a hormonioterapia, Vilhena foi orientada a buscar a gesta��o por meios naturais, sem recorrer ainda aos �vulos congelados. E, depois de cinco meses de tentativas, veio a not�cia: ela estava gr�vida.

"Minha gesta��o foi �tima e correu bem, apesar de tudo ter acontecido em 2020, durante a pandemia de covid-19", diz Vilhena.

A beb� Leonor nasceu saud�vel no in�cio de 2021 — e, ap�s tr�s meses de amamenta��o, a nova mam�e retomou a hormonioterapia contra o c�ncer de mama.

"Lembro que, logo ap�s o diagn�stico, a primeira coisa que o oncologista me disse foi: 'Natasha, com certeza voc� vai morrer algum dia, porque essa � a �nica certeza que a gente tem na vida. Mas eu posso te garantir que voc� n�o vai morrer por causa deste tumor'", recorda Vilhena, hoje aos 35 anos.

"Essa frase parece simples, mas para mim foi muito importante ouvi-la."

Hist�rias como a de Vilhena revelam uma face recente e ainda pouco conhecida do c�ncer de mama.

Segundo m�dicos ouvidos pela BBC News Brasil, o avan�o no tratamento permite colocar a paciente — e n�o o tumor — no centro dos cuidados, de modo que outros aspectos da vida (como o desejo de formar uma fam�lia) passam a ser decisivos at� nas escolhas terap�uticas.

Pr�tica e teoria

O oncologista Ricardo Caponero, diretor cient�fico da Federa��o Brasileira de Institui��es Filantr�picas de Apoio � Sa�de da Mama (Femama), destaca dois movimentos antag�nicos que afetam o cen�rio relacionado a esse tipo de tumor.

"Primeiro, percebemos que as mulheres est�o apresentando c�ncer de mama cada vez mais cedo", observa o m�dico.

Antes, a esmagadora maioria dos casos era diagnosticado ap�s os 50 anos de idade. Agora, por motivos que ainda n�o foram 100% elucidados, a doen�a aparece com frequ�ncia crescente entre as mais jovens. Para ter ideia, 20% dos tumores de mama s�o detectados atualmente em brasileiras com menos de 40 anos.

"Em segundo lugar, o projeto de maternidade � deixado para cada vez mais tarde. A mulher faz faculdade, p�s-gradua��o e quer progredir na carreira antes de ter um filho", acrescenta Caponero.

O oncologista se lembra que, no passado, era comum gerar descendentes na casa dos 18 aos 25 anos. Um levantamento realizado no Estado de S�o Paulo revelou que, em 2019, 39% das novas mam�es possu�am entre 30 e 39 anos.

Esses dois fen�menos causam um choque: cada vez mais mulheres s�o diagnosticadas com o tumor nas mamas justamente no momento da vida em que planejavam uma gesta��o.

E, por causa da doen�a em si e dos poss�veis efeitos colaterais do tratamento, o sonho de ser m�e entrava em xeque.

"H� 25 anos, quando comecei na Oncologia, conversar com a paciente sobre gravidez era praticamente um pecado", admite o m�dico Daniel Gimenes, da Oncocl�nicas.

"Por causa dos medos relacionados ao c�ncer, falar em m�todos de fertiliza��o, de congelamento de �vulos, era algo praticamente proibido. E acontecia muito de as mulheres dizerem: 'Engravidei. O que fa�o agora?'", relata o oncologista.

Embora muitas gesta��es acontecessem na pr�tica durante o tratamento do c�ncer de mama, esse tema ainda era cercado de tabus e mist�rios at� muito recentemente.

Havia um medo entre os especialistas de que o turbilh�o hormonal desencadeado pela forma��o do embri�o no �tero poderia engatilhar um novo crescimento do c�ncer na mama.

A coisa mudou completamente de figura em maio deste ano, com a divulga��o do estudo Positive, publicado no peri�dico The New England Journal of Medicine.

Liderado por cientistas do Instituto do C�ncer Dana-Farber, da Universidade Harvard, nos EUA, a pesquisa pretendia entender se a interrup��o da hormonioterapia contra o c�ncer de mama para tentar uma gravidez � de fato segura.

No total, 497 mulheres com c�ncer de mama que desejavam ter um filho foram acompanhadas. Dessas, 368 (ou 74%) engravidaram e 317 (63,8%) tiveram um beb�. Segundo os autores, os n�meros s�o bem parecidos � m�dia da popula��o.

Para completar, a interrup��o do tratamento e a gravidez em si n�o representaram uma amea�a � sa�de dessas mulheres. Entre aquelas que tentaram uma gesta��o, 8,9% tiveram algum evento relacionado ao c�ncer (como a reincid�ncia do tumor nas mamas), ante 9,2% no grupo controle (formado por volunt�rias que tinham a doen�a, mas n�o buscavam gerar um filho).

"Vivemos um momento extraordin�rio na Oncologia, particularmente no c�ncer de mama", comemora o m�dico Pedro Exman, do Centro Especializado em Oncologia do Hospital Alem�o Oswaldo Cruz, em S�o Paulo.

"O estudo Positive respondeu uma pergunta extremamente importante, que gerava ang�stia em pacientes e m�dicos", destaca ele.

A partir do trabalho, portanto, especialistas se sentem mais confort�veis e confiantes para inserir a maternidade — quando h� esse desejo da paciente — no planejamento terap�utico do c�ncer de mama.

Mas, � claro, a possibilidade de paralisar o tratamento depende de uma s�rie de etapas e crit�rios, como voc� confere a seguir.


Gestante fazendo autoexame na mama

Mulheres est�o descobrindo o c�ncer de mama mais cedo %u2014 e t�m filhos cada vez mais tarde

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Condi��es necess�rias

Para que a maternidade durante o intervalo no tratamento do c�ncer de mama seja poss�vel, � preciso em primeiro lugar que a mulher esteja em idade f�rtil (ou seja, ainda n�o tenha alcan�ado a menopausa) e re�na as condi��es de sa�de b�sicas para ter a gravidez.

Segundo ponto: existem diferentes tipos de c�ncer de mama. Eles s�o classificados segundo a gravidade e tamb�m de acordo com as caracter�sticas "comportamentais" e gen�ticas das c�lulas tumorais.

No estudo Positive, 93,4% das pacientes se encontravam no est�gio 1 ou 2, em que a doen�a est� em fase inicial e ainda n�o se espalhou para outros �rg�os ou tecidos (num processo conhecido como met�stase).

Todas as volunt�rias tamb�m apresentavam tumores com receptores para os horm�nios. Essas subst�ncias, produzidas pelo sistema end�crino do pr�prio corpo, estimulam a multiplica��o das c�lulas cancerosas.

Na contram�o, o uso do tamoxifeno e outros rem�dios dessa classe bloqueia a a��o desses horm�nios e, assim, ajuda a prevenir o reaparecimento do c�ncer.

A boa not�cia � que os c�nceres de mama com receptor hormonal positivo representam uma grande fatia dos casos — o que significa que a situa��o analisada no estudo Positive se assemelha � realidade de muitas pacientes.

"Tumores hormonais positivos englobam ao redor de 70% dos casos de c�ncer de mama", calcula a oncologista Solange Sanches, do A.C.Camargo Cancer Center, em S�o Paulo.

Mas como a interrup��o do tratamento funcionaria na pr�tica?

A exemplo da hist�ria de Natasha Vilhena, contada no in�cio desta reportagem, o primeiro passo ap�s o diagn�stico do c�ncer de mama costuma ser a cirurgia, que faz a retirada dos n�dulos principais.

Mas h� sempre o risco de sobrar algumas c�lulas tumorais microsc�picas, imposs�veis de ver a olho nu. Essas unidades podem se multiplicar e dar origem a novos caro�os.

� para evitar esse cen�rio, e fazer uma esp�cie de "pente-fino", que os especialistas indicam as sess�es de qu�mio e/ou radioterapia.

Antes que essa segunda leva terap�utica comece, por�m, � importante ter a conversa sobre maternidade e o eventual congelamento de �vulos (se a paciente tiver essa disponibilidade financeira): afinal, pode ser que as subst�ncias qu�micas e a radia��o afetem as c�lulas reprodutoras .

Ao preservar os gametas femininos, � poss�vel buscar uma fertiliza��o in vitro, caso o procedimento seja necess�rio no futuro.

Terminada a qu�mio e a r�dio, a mulher geralmente recebe a orienta��o de seguir com a hormonioterapia por anos — em alguns casos, o tamoxifeno precisa ser tomado por at� uma d�cada.

No estudo Positive, as mulheres "pausaram" o tratamento depois de 18 a 30 meses de comprimidos di�rios.

Elas foram orientadas a aguardar dois meses antes de iniciar as tentativas de engravidar, para dar tempo de o organismo se livrar totalmente do f�rmaco.

O tempo livre de tamoxifeno — que inclui as tentativas de engravidar, os nove meses de gesta��o e um per�odo de amamenta��o — se estende por cerca de dois anos.

A seguir, a mulher retoma a hormonioterapia, por meio dos comprimidos di�rios, at� completar o esquema terap�utico estabelecido pelos profissionais de sa�de.


Mulher segurando fita da campanha Outubro Rosa

Cuidados com a sa�de da mulher com c�ncer de mama v�o muito al�m da doen�a, apontam m�dicos

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A paciente no centro do cuidado

De acordo com os m�dicos ouvidos pela BBC News Brasil, os avan�os no conhecimento sobre o c�ncer de mama permitem que m�dico e paciente conversem mais e possam levar em conta outras quest�es que v�o al�m do tumor — como os sonhos e as aspira��es de vida.

"Logo na primeira consulta, precisamos entender o estilo de vida daquela paciente, o trabalho que ela faz e quais s�o as perspectivas dela. Isso tudo influencia no planejamento do tratamento", admite Sanches.

Nesse bate-papo inicial, os especialistas consultados consideram praticamente "obrigat�rio" falar sobre fertilidade e o sonho de ser m�e — na vis�o deles, mesmo que a mulher n�o pense em ter filhos agora, � importante saber os desejos dela para que a terapia se adeque aos sonhos futuros.

Gimenes destaca que, mais recentemente, alguns trabalhos passaram a sugerir que a gravidez pode promover algumas mudan�as hormonais que at� protegem as pacientes.

Uma dessas pesquisas, realizada na Universidade de G�nova, na It�lia, fez uma revis�o de 39 estudos j� publicados sobre o tema. Os autores observaram que as mulheres com c�ncer de mama que tiveram uma gravidez ap�s o tratamento tiveram um tempo de sobrevida maior quando comparadas �s pacientes que n�o gestaram um beb�.

Como conclus�o, os autores destacam que "os desejos de engravidar das pacientes devem ser considerados como um componente crucial dos planos de cuidados de sobreviv�ncia delas".

Importante: esses achados ainda precisam ser confirmados por outras investiga��es mais robustas, que utilizam outras metodologias.

Por fim, a psic�loga Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia, chama a aten��o para a desigualdade no tratamento do c�ncer de mama no Brasil.

"N�o h� d�vidas que a Oncologia tem utilizado um olhar cada vez mais amplo", admite ela.

"Mas a possibilidade de individualizar o tratamento ainda � desigual. Infelizmente, falar sobre temas como fertilidade e bem-estar durante o tratamento ainda est� restrito a um n�mero muito pequeno de mulheres", lamenta.

Para a especialista, o tratamento contra o c�ncer est� repleto de boas not�cias que s�o acess�veis a um n�mero limitado de pacientes.

"O congelamento de �vulos, por exemplo, � um procedimento caro para a maioria da popula��o", diz Holtz.

Para lidar com um desafio deste tamanho, a psic�loga aposta no trabalho da equipe multidisciplinar, constitu�da de profissionais com diferentes forma��es, que conseguem acompanhar a pessoa com c�ncer sob diferentes �ngulos e necessidades

"A gente sabe como esses olhares distintos, do oncologista, do psic�logo, do assistente social, do nutricionista, do preparador f�sico, podem fazer com que o paciente se sinta cuidado de forma integral", conclui Holtz.

Segundo o Instituto Nacional de C�ncer (Inca), 73,6 mil casos e 18 mil mortes por c�ncer de mama s�o esperados a cada ano no pa�s.