Freud

Mesmo sem ser o primeiro a abordar a quest�o, Freud deu asas ao ego

Getty Images

Ego. Egoc�ntrico. Ego�sta. Palavras que fazem parte do nosso cotidiano.

Foi o criador da psican�lise, Sigmund Freud (1856-1939), quem deu asas � ideia do ego, 100 anos atr�s, com seu livro Das Ich und das Es (O Eu e o Id, Ed. Companhia das Letras, 2011).

Para Freud, "o ego representa o que pode ser chamado de raz�o e senso comum, em contraste com o id, que cont�m as paix�es".

Freud praticou o que chamou de psican�lise por quase 25 anos. O Ego e o Id foi sua tentativa de apresentar o que ele conseguiu entrever sobre o funcionamento interno da mente.

O m�dico vienense afirmou que, al�m de ser dividida entre o consciente e o inconsciente, a mente era impulsionada por for�as em conflito.

Ele descreveu um sistema tripartite, no qual o id exige satisfa��o para nossos impulsos naturais; o superego reage e decide como devemos nos comportar segundo nossas normas morais; e o ego seria a jun��o dos elementos no "eu".

"Uma forma de conceber o ego � como o lugar da negocia��o, onde promovemos ajustes, c�lculos psicol�gicos para encontrar uma forma de viver conosco mesmos e no mundo", segundo a escritora e psicanalista brit�nica Susie Orbach.

Um s�culo depois da publica��o do livro de Freud, o ego se transformou em uma ideia fundamental para entender quem n�s somos e o que faz com que n�s sejamos n�s mesmos e n�o outras pessoas.

Grande fraude?


capa original de O Eu e o Id

'O Eu e o Id' foi publicado em 1923 pela Imprensa Psicanal�tica Internacional

Reprodu��o

Na verdade, Freud n�o foi a primeira pessoa a propor essa ideia.

O fil�sofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) j� havia afirmado, 50 anos antes, que n�s temos um ego. Mas Freud desenvolveu o conceito de ego, quase lhe dando vida pr�pria.

"Ele elaborou o conceito, entendendo que uma rela��o de terapia poderia oferecer al�vio", explica Orbach. "E, nesse processo, ele conseguiu extrair ideias sobre a mente que eram totalmente revolucion�rias."

Mas nem todos est�o de acordo com esta afirma��o. Muitas pessoas consideraram que toda a no��o de Freud sobre o ego, o id e o superego estava errada.

Um dos seus cr�ticos mais ferrenhos foi o fil�sofo americano Frank Cioffi (1928-2012). Ele chamava Freud de pseudocientista, "pois fez afirma��es sobre as quais n�o tinha provas".

Questionado sobre os seus motivos, Cioffi afirmou � BBC em 2000 que elas "s�o t�o radicalmente inadequadas que n�o podemos dizer que seja apenas um erro; ele nos instiga a descrev�-lo como a maior fraude intelectual do s�culo 20".

"Cioffi tem raz�o: n�o � ci�ncia", reconheceu o psicanalista brit�nico Adam Phillips em um programa da BBC dedicado a Sigmund Freud.

"A ci�ncia precisa ser capaz de reproduzir experimentos e a psican�lise n�o pode ser reproduzida", explica Philips.

"Cada an�lise � diferente porque nunca h� uma terceira pessoa presente e cada pessoa tem uma hist�ria diferente (...). O �nico crit�rio que temos � o julgamento da pr�pria pessoa, se o tratamento foi uma total perda de tempo ou se, na verdade, foi de grande utilidade."

Mas, independentemente das controv�rsias sobre a psican�lise e seu criador, a no��o de ego ganhou vida pr�pria.

'O centro do centro de tudo'

Longe do ambiente acad�mico, o ego se popularizou. E, como costuma acontecer, seu significado se tornou um pouco mais vago e amb�guo.

Mas ele tamb�m assumiu um papel protagonista.

"Temos visto um enfoque cada vez maior no 'eu', como o foco na experi�ncia, como o lugar dos direitos pol�ticos, como realmente o centro do centro de tudo", explica � BBC o fil�sofo Julian Baggini, autor do livro The Ego Trick ("A armadilha do ego", em tradu��o livre).

Para Baggini, "a forma em que o pensamento se desenvolveu no Ocidente transformou o 'eu' na unidade b�sica da sociedade, no fundamento de onde brota todo o resto".

E isso, segundo ele, contribuiu para que o ego se separasse do seu lugar dentro do modelo da mente de Freud para se transformar em algo diferente.

"O que acreditamos que seja? Em grande parte, � senso comum que, dentro de cada um de n�s, existe um ego, um 'eu' singular, algo que cont�m todas as nossas diferentes experi�ncias, recorda��es, planos, projetos, rela��es..."

"N�o � uma alma imaterial, nem uma regi�o do c�rebro. Mas, como tantas coisas que existem, � uma cole��o de partes, todas essas coisas diferentes trabalhando em conjunto", conclui o fil�sofo.

E a m�sica, segundo o compositor e escritor Steven Johnson, ajuda a entender a forma em que o nosso ego pode se dividir em diversas formas quando trata de negociar a confusa realidade do mundo.

O ego no palco


capa do filme Psicose

A trilha sonora do filme 'Psicose' (1960), de Alfred Hitchcock, que aborda o ego e o id de forma similar �s �peras de Richard Wagner, no s�culo 19

Getty Images

Johnson estudou o sentido do ego na m�sica por muitos anos. Ele destaca a obra do compositor alem�o Richard Wagner (1813-1883), que explora a no��o do ego – especialmente sua rela��o com esse misterioso inconsciente que, segundo Freud, est� sempre � nossa espreita.

Wagner concluiu, muito antes de Freud, que temos uma mente consciente e inconsciente, que pode nos enganar durante a tomada de decis�es b�sicas da nossa vida.

Nas suas �peras, "existe uma rela��o extraordin�ria entre o que ocorre no palco e o que acontece no fosso orquestral", afirmou Johnson � BBC.

"O palco � a dimens�o do ego: os atores, o que eles dizem e suas a��es, est�o todos no cen�rio da mente consciente, racional, pensante, cotidiana."

"Mas a m�sica representa as ideias e sentimentos inconscientes... os impulsos. Por isso, os personagens podem dizer que est�o fazendo algo por alguma raz�o, ou que t�m algum sentimento, mas a m�sica pode nos dizer algo muito diferente", explica o compositor.

Essa no��o de que a m�sica pode destacar algo que o ego desconhece foi aproveitada por Hollywood na d�cada de 1930.

"Max Steiner, frequentemente descrito como o pai da m�sica de cinema de Hollywood, era vienense", destaca Johnson. "Ele certamente estava familiarizado com as ideias de Freud e as tinha em mente quando se dedicava a fazer a trilha sonora de um filme."

"Desde muito cedo, voc� v� que a rela��o entre a partitura e o que est� acontecendo na tela � muito similar � concebida por Wagner entre a orquestra e o palco", prossegue o compositor.

"Existe um exemplo muito famoso: o incr�vel som criado por Bernard Herrmann para a cena de esfaqueamento do filme Psicose, de Hitchcock. Esta � uma imagem de som incrivelmente deslumbrante que, de fato, nos conta o que n�o podemos ver na tela: a mulher sendo horrivelmente esfaqueada at� a morte."

"Mas, se voc� retroceder o filme, poder� ouvir como Hermann estabelece esta rela��o muito antes."

"Quando Janet Leigh est�, por exemplo, dirigindo o carro para sair da cidade, n�o h� motivo para que ela se sinta amea�ada, mas a m�sica j� faz, ao fundo, o mesmo tipo de ilustra��o da cena do seu esfaqueamento, mais tarde."

Esta t�cnica se baseia no desconhecimento pelo ego do que est� acontecendo abaixo da superf�cie. Atualmente, ela pode ser encontrada em toda parte, n�o s� no cinema, mas tamb�m na publicidade e na m�sica popular.

Terapia e pol�tica

A resposta � compreens�o de que o ego � inseguro, autoenganoso, cego ao que realmente est� acontecendo, naturalmente, � a terapia – aquela investiga��o profunda - e muitas vezes cara - sobre as nossas pr�prias mentes.

Sua vers�o alternativa, mais barata e acess�vel, � a autoajuda, um dos setores mais lucrativos nos meios de comunica��o e publica��es em todo o mundo.

A ideia de Freud de que podemos esquadrinhar e cuidar do funcionamento da nossa mente acabou gerando milh�es de livros, aplicativos e canais no YouTube, criados para nos ajudar a nos sentirmos melhor conosco mesmos.

Para Julian Baggini, esta �nfase em cuidar dos nossos egos talvez tenha nos afastado das outras pessoas.

Ele conta que, originalmente, a autoajuda tinha um objetivo espiritual ou religioso: cultivar os nossos egos para um prop�sito superior. Mas isso mudou nos �ltimos cerca de 50 anos.

Para ele, "a autoajuda parece ser muito mais voltada, agora, � simples melhoria da minha vida como indiv�duo, em uma esp�cie de senso de recompensa hedonista".

"N�o existem muitos livros de autoajuda que discutam como ser uma pessoa melhor no sentido moral. A quest�o � ser mais forte, mais saud�vel, mais produtivo."

"E, at� quando tocam em aspectos �ticos, eles s�o justificados por benef�cios pr�prios: abra�ar as pessoas e ser gentil far� voc� se sentir melhor e, por isso, voc� deve faz�-lo", explica Baggini.

Esta ideia de alimentar o nosso ego combina com o que promoveram, na d�cada de 1980, pol�ticos como a ex-primeira-ministra brit�nica Margaret Thatcher (1925-2013) e o ex-presidente americano Ronald Reagan (1911-2004): a no��o de que nossa verdadeira aten��o deveria ser dirigida �s nossas necessidades individuais.

Os defensores do neoliberalismo e do livre mercado, embora nunca tenham dito desta forma, incentivaram o fortalecimento do ego para poderem agir sobre os desejos vorazes desse furioso inconsciente do modelo tripartite de Freud.

"No final do s�culo 20, a ideia do 'eu' como o mais importante se tornou mais poderosa e exagerada, tendo sido levada a um novo extremo", destaca Baggini.

Thatcher, por exemplo, chegou a declarar: "acreditamos que todos devemos ser indiv�duos. Mas todos desiguais."

"Ningu�m, gra�as a Deus, � igual a nenhuma outra pessoa, por mais que os socialistas defendam o contr�rio. Acreditamos que todos t�m direito a serem desiguais. Mas, para n�s, cada ser humano � igualmente importante", acrescentou a ex-primeira-ministra.

Para Baggini, "algo mudou naquele momento, algo se inverteu. A balan�a se inclinou para o lado do indiv�duo e para longe da comunidade."

E esse afastamento da comunidade para uma esp�cie de ego�smo autorizado permanece muito presente nos dias de hoje.

Onde est� o ego?

Esta pergunta parece absurda. Afinal, o ego � uma ideia, n�o um objeto.

Mas, embora n�o possamos ver o ego, existe uma parte fundamental da atividade cerebral que trata de nos ajudar a entender o que n�s somos e o que � o mundo exterior, segundo Sophie Scott, diretora do Instituto de Neuroci�ncia Cognitiva do University College de Londres.

"Uma das propriedades b�sicas do c�rebro � que ele sabe quando voc� est� fazendo algo", segundo ela. "Por isso, se voc� tocar a sua m�o, obter� uma resposta cerebral diferente de que se outra pessoa fizer o mesmo gesto."

"O seu c�rebro acha normal o que vem de voc�, de forma que voc� tem um bom sentido do 'eu' e do outro", explica Scott.

"E faz isso com tudo: o seu c�rebro reage de forma diferente � sua pr�pria voz quando voc� est� falando. Ele suprime �reas do c�rebro que seriam usadas para ouvir outras pessoas, porque j� sabe o que voc� est� a ponto de dizer."

Esta no��o do ego como uma esp�cie de processo de pensamento, do produto de muitas mensagens diferentes que viajam entre os neur�nios cerebrais, leva a pensar na tecnologia e na complexa quest�o de como o nosso ego, agora, precisa subsistir online.

"Pense que, h� v�rios s�culos, os espelhos eram raros. As pessoas, na verdade, n�o tinham uma imagem clara de si pr�prias", explica � BBC o jornalista e comentarista de tecnologia Bill Thompson.

"Agora, vemos nossa imagem nos espelhos fragmentados das nossas publica��es nas redes sociais, nosso correio eletr�nico, nossos filtros no Snapchat, em toda parte." E isso afeta n�o s� a forma em que o mundo nos v�, segundo ele, mas tamb�m a forma em que n�s vemos a n�s mesmos.

"No passado, era poss�vel viver a sua vida sem questionar diariamente sua imagem de si pr�prio", prossegue Thompson. "Mas, agora, existem desafios. S�o pequenos, mas constantes."

"E, quando se trata especificamente das redes sociais, ocorre o chamado 'colapso de contexto' – voc� publica algo para que o que voc� acredita ser um p�blico que o entende e atinge uma audi�ncia muito diferente, que reage muito mal; isso � uma amea�a real para o seu senso de identidade."

"Repentinamente, outras pessoas veem voc� de forma muito diferente da sua percep��o de si pr�prio. Isso tem grande impacto quando tentamos construir um 'eu' unificado a partir dessa cacofonia de formas, imagens, ru�dos e pontos de vista sobre n�s mesmos", conclui o jornalista.

Este � um desafio para o estado atual do nosso ego, um s�culo depois de Freud tentar localiz�-lo na nossa cabe�a, enfrentando todas as for�as e ideias contradit�rias que giram na nossa mente.

De l� para c�, pudemos compreender que o ego � intang�vel e algo muito mais fascinante: ou seja, n�s mesmos.

*Ou�a o programa da BBC R�dio 4 "The Hundred Year Ego" (em ingl�s), que deu origem a esta reportagem, no site BBC Sounds.