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Estado de Minas MEM�RIA

Rivalidade sufocada pela lei em Vespasiano

Com o objetivo de arrecadar fundos para reforma de uma escola, 30 garotas se uniram e formaram dois times de futebol em 1968, mas o sucesso acabou levando as autoridades a acabar com a alegria da torcida e das jogadoras


22/03/2019 05:08 - atualizado 10/07/2024 00:32
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Foto de Edna Malta, a Dininha
"Eu vejo a Marta jogando, eu jogava bola demais, tanto que eu saio na rua e o pessoal at� hoje lembra, por que voc� parou?" Edna de Aguiar Malta, de 62 anos, a Dininha, ex-jogadora do Vespasiano (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)



Uma imagem segue emoldurada na lembran�a de Edina de Aguiar Malta, a Dininha, h� mais de meio s�culo: aquele in�cio de tarde de domingo, julho de 1968, o gol, a vit�ria e aquela pequena garota, magrinha e de cabelo curto, mas valente nas quatro linhas, carregada nos ombros pelas companheiras no gramado desgastado do campo do Independente, em Vespasiano. A euforia sucedia � vit�ria do Vespasiano, time de Dininha, sobre o Oficina: uma rivalidade que se criou na cidade, � �poca com 7 mil habitantes, mas que poucos meses depois foi sufocada pelo decreto-lei que proibia as mulheres de jogar futebol de forma competitiva.

“Eu tenho uma vontade de ter idade para jogar....”, se emociona Dininha, hoje com 62 anos, que h� 14 sobreviveu a um AVC hemorr�gico. “Eu vejo a Marta jogando, eu jogava bola demais, tanto que eu saio na rua e o pessoal at� hoje lembra, por que voc� parou?”, conta Dininha, que, em 1968, tinha 12 anos rec�m-completados.

A hist�ria do futebol em Vespasiano durou pouco, mas o suficiente para marcar a vida de um grupo de 30 garotas que se reuniram para arrecadar fundos para uma escola e tomaram gosto pelo futebol. “O objetivo principal foi filantr�pico: ajudar a escola Padre Jos� Senabre. O muro tinha ca�do, necessitava reformar e est�vamos procurando o que fazer: baile, bazar e fomos fazer o futebol feminino”, conta Iolanda Maria Braga Viana, hoje com 74 anos, � �poca uma professora rec�m-formada.

A ideia foi bem aceita, mas faltava um detalhe: as jogadoras. Iolanda e uma amiga sa�ram pela Avenida Dr. Ari Teixeira, uma das principais da cidade, e ao final da rua j� haviam anotado o nome de 30 meninas interessadas, todas entre 12 e 20 anos. Dois times e ainda reservas! Coube ao folcl�rico Z� Fub�, um tipo conhecido de toda a cidade, dar instru��es aos dois times e apitar as partidas. Um dos uniformes foi cedido pelo Vespasiano Esporte Clube. O Independente, que tinha um campo bem-estruturado, com bilheteria, cedeu o espa�o. O outro uniforme foi cedido por uma oficina mec�nica da cidade – por isso o nome Oficina.

“A rivalidade era dentro de campo, depois comemorava, vibrava, mas na hora de vestir a camisa, fervia. Foi tudo na base do oba-oba. J� tinha algumas que jogavam com os irm�os, mas com t�cnica mesmo, eram cinco ou seis, como a Clarice, irm� de Bui�o”, conta Iolanda.

Jo�o Bosco dos Santos, o Bui�o, � um dos filhos ilustres de Vespasiano. O atacante chegou ao Atl�tico entre 1964 e 1968, quando foi vendido ao Corinthians, em uma das negocia��es mais caras da �poca. Passou por outros grandes clubes do futebol brasileiro, como Flamengo, Gr�mio e Atl�tico-PR, antes de se aposentar, em 1981. Em julho de 1968, coube a ele dar o pontap� inicial de um dos confrontos entre o Vespasiano e o Oficina

“N�o se falava jamais (em futebol para as mulheres), um preconceito grande, at� hoje ainda tem. Mulher jogando futebol ningu�m aceitava, os pais eram muito sistem�ticos. A� montaram o time. Eu estava no Corinthians e, coincidentemente, fiquei sabendo do jogo. A Clarice e a Dora, minhas irm�s, jogaram. Infelizmente, j� faleceram”, lembra Bui�o, hoje dono de uma empresa de �nibus na cidade.


O SUCESSO E O FIM

N�o demorou para que a rivalidade entre Vespasiano e Oficina chamasse a aten��o. “Vespasiano tem hoje uma grande atra��o tur�stica. � a �nica cidade do Brasil onde se pratica o futebol feminino, mesmo com a proibi��o da CND”, destacava o Estado de Minas de domingo, 28 de julho de 1968, lembrando do decreto do Conselho Nacional dos Desportos (CND).

“No Brasil, o CND proibiu as mulheres de jogar futebol. Agora Vespasiano tem a primazia de ter as duas �nicas equipes de futebol do pa�s em atividade”, dizia o EM, anunciando o segundo duelo entre Vespasiano e Oficina uma semana depois do primeiro, que foi um sucesso de p�blico. “Esse campo ficou lotado, de tanta gente. A renda foi excelente”, lembra Dininha. “O dia do jogo foi emocionante, a expectativa da hora de jogar. Os pais aceitavam bem, apesar da �poca”, conta Iolanda.

Chegaram os convites para jogar em Pedro Leopoldo e at� um para Ribeir�o Preto. Mas a exposi��o acabou chamando a aten��o das autoridades. “Foram surgindo as proibi��es. A gente foi chamada para ser avisada de que n�o poder�amos continuar jogando, que era proibido o futebol para mulheres. A� foi diminuindo...”, lembra Iolanda.

Meio s�culo depois, elas sabem que contribu�ram para a hist�ria do futebol feminino no pa�s. “N�s ajudamos a plantar a semente. Quando vejo a Marta brilhando, eu falo: olha l� Vespasiano. A hist�ria do futebol de mulheres � muito bonita. A mulher tem direito a tudo, inclusive a se valorizar.”




LIBERA��O S� EM 1983

O artigo 54 do Decreto-lei 3.1999, de abril de 1941, que previa a veda��o da pr�tica, por mulheres, de desportos “incompat�veis com sua natureza”, veio na esteira de times femininos que come�avam a excursionar pelo pa�s, como os cariocas Casino Realengo e Brasileiro. Em 1965, uma delibera��o do CND estabelecia como pr�ticas n�o permitidas �s mulheres “lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de sal�o, futebol de praia, polo aqu�tico, polo, rugby, halterofilismo e baseball”.

Demoraram ainda longos anos at� que as mulheres pudessem jogar futebol de forma competitiva no Brasil. Em 1979, houve a revoga��o da delibera��o do CND. “A pr�tica oficializada do futebol por mulheres ainda dependeu da delibera��o publicada pelo CND, em 1983, com o estabelecimento de regras para a modalidade feminina no pa�s”, afirma o historiador Raphael Raj�o.

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