
A rede
Uma rede de afetos, de memórias, de encontros. Uma rede de células, de átomos, de estrelas. Uma rede que nos sustenta quando caímos
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Entre o nada e o nada, entre o silêncio e o grito, a rede se estende, testemunha de múltiplos destinos. No campo verde, ela espera, imóvel, elegante. O goleiro, sentinela solitário, a protege. Até que a esfera, impulsionada pelo desejo coletivo, rompe a resistência e a faz bailar.
É nesse instante fugaz que a rede revela sua primeira face: a da contenção que celebra, do aprisionamento, que liberta o grito entalado na garganta. O gol não existe sem ela, que balança em êxtase transformando o movimento em memória.
Quando menino em Ibiá, gostava de assistir aos jogos no Estádio Municipal JK, no alambrado atrás do gol dos times adversários. Meu olhar penetrava a tela e via a bola passando pelo goleiro e beijando a rede. Era mágico. Tenho em minha memória o som da rede sendo tocada pela bola: sssshlap. Certamente, som terrível para os goleiros.
Sr. Tiãozinho, nosso técnico, cuidava também do campo. Vestia a trave com o esmero de quem veste uma noiva para o casamento. “Gol em trave sem rede não tem graça, deveria ser anulado”, dizia.
Nas águas profundas, outra rede se desdobra. Tecida por mãos calejadas que conhecem o mar, ela mergulha no desconhecido, confiante, para emergir pesada de vida e sustento. O pescador e sua rede formam uma dança ancestral, um diálogo entre o homem e o mar. A paciência do tecer, a sabedoria do lançar. Puxei muitas redes em Alcobaça. O cheiro dos peixes frescos pulando na areia ainda inundam minha memória olfativa.
Há a rede invisível que nos envolve, que transmite impulsos elétricos e emoções digitalizadas. Que conecta tudo e a todos, incessantemente. Essa rede, filha do engenho humano, criou um novo universo de possibilidades. Onde a palavra viaja à velocidade da luz, onde o conhecimento se multiplica e se dissemina. Onde a saudade e a solidão dissipam-se como espuma na areia.
Quantas faces tem a rede? Tantas quanto os olhares que a contemplam. Tantas quanto os usos que lhe damos. Tantas quanto os significados que lhe atribuímos. Na trama dos fios, na interseção dos nós, na tensão entre o cheio e o vazio, reside a essência da própria existência: somos todos parte de uma mesma grande rede que abraça bola, peixe e gente.
Uma rede de afetos, de memórias, de encontros. Uma rede de células, de átomos, de estrelas. Uma rede que nos sustenta quando caímos. Uma rede que nos impulsiona quando saltamos. Talvez seja esse o real sentido da rede: a interdependência que nos define como humanos. A certeza de que nenhum fio existe sozinho, que a força do conjunto supera a fragilidade individual.
No meu dia a dia vejo outras redes: redes de vasos sanguíneos que sustentam a vida, redes neurais que processam pensamentos e emoções, redes de apoio que amparam o sofrimento.
No esporte, a rede é o destino da bola. No mar, é companheira fiel do pescador. Na comunicação, é o caminho invisível das ideias. Na sociedade, é o tecido que nos mantém unidos ou desunidos quando a mentira a contamina.
Quando a bola encontra a rede, o estádio explode em alegria. Quando o peixe preenche a rede, o pescador agradece. Quando a mensagem atravessa a rede, distâncias se dissolvem. Quando a solidariedade tece sua rede, a humanidade se faz humana. Entre significados práticos e simbólicos, entre o tangível e o metafórico, a rede permanece como metáfora perfeita da complexidade e da beleza da existência.
O que somos, senão pontos de encontro? O que vivemos, senão momentos de conexão? O que buscamos, senão pertencimento? O que tememos, senão o isolamento?
No futebol, quando a rede balança, celebramos a precisão, a beleza, a paixão. No mar, quando a rede se enche, honramos a abundância da natureza. Na internet, quando a rede conecta, valorizamos o poder do conhecimento compartilhado. Na comunidade, quando a rede ampara, reconhecemos nossa interdependência e fragilidade. A rede é muito mais que a própria rede: é transcendência e materialidade. É um princípio organizador que permeia a existência. É uma lente através da qual podemos compreender o mundo.
No ciclismo, o pelotão forma uma rede móvel de corpos e máquinas, na qual cada ciclista depende dos outros para avançar contra o vento. A estratégia coletiva supera o esforço individual, assim como na vida, onde ninguém triunfa verdadeiramente sozinho.
Como médico, vejo a saúde como uma rede de equilíbrios delicados. Como esportista, entendo a competição como uma rede de desafios e superações. Como escritor, percebo a linguagem como uma rede de significados em constante transformação. Como cronista, observo a sociedade como uma rede de histórias interconectadas.
Neste momento, entre nós, se forma também uma rede: a do escritor e do leitor, unidos pelo texto. A das palavras que se entrelaçam para formar sentidos. A das emoções que transitam entre quem escreve e quem lê. Neurônios se abraçam.
A rede, em sua multiplicidade de formas e significados, nos convida a refletir sobre nossa própria natureza: somos seres de conexão, de relação, de interdependência. Somos nós e vazios, tensão e flexibilidade, limite e possibilidades. Talvez seja este o maior ensinamento da rede: a humildade de reconhecer que não existimos isoladamente. A sabedoria de valorizar cada conexão que nos sustenta.
E assim, entre o gol que celebra o esforço e a vida, o peixe que alimenta o corpo, a mensagem que nutre a alma, o abraço que aquece o coração, a rede permanece: eterna em sua transitoriedade, simples em sua complexidade, silenciosa em sua eloquência, unindo o que parecia destinado a permanecer separado.
Na última quarta-feira, atrás do gol, como um menino, mais uma vez eu vi e ouvi quatro ssslaps do Galo. A criança que me habita vibrou como aquela do alambrado em Ibiá: Gooooooooollllllll...
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