Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

O sibilo

Esse pequeno assovio que o pulmão doente produz e que, nos ouvidos certos, vira música

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Numa tarde de julho, Joana chegou em casa com um brilho diferente nos olhos. Não era o brilho comum da mulher que amo há mais de 17 anos, mas algo novo, como se tivesse descoberto um tesouro.

Joana é assim: organizada até na forma de se emocionar. Enfermeira por mais de uma década, decidiu aos 40 que os prontuários meticulosamente preenchidos e as vacinas aplicadas com precisão milimétrica não bastavam. Queria auscultar, diagnosticar e prescrever. Trocou o uniforme branco pelo avental mais comprido e mergulhou nos livros de fisiologia com a mesma dedicação com que arruma as gavetas de casa – cada coisa em seu lugar, cada órgão com sua função exata.

E eu, médico há tanto tempo, que já nem me lembro do meu primeiro estetoscópio, assisto a essa transformação com a curiosidade de quem redescobre o mundo através de olhos alheios. "Escutei um sibilo hoje", ela me disse, pendurando o casaco no cabideiro (nunca sobre a cadeira, Joana tem horror a roupas jogadas). Um sibilo. Coisa tão banal para mim quanto o canto do sabiá que nesta época do ano nos faz serenata. Mas para Joana era como se tivesse escutado uma sinfonia inteira dentro do peito de uma paciente.

 

Dona Elisa era o nome da mulher. Asmática, 42 anos, chegou ao ambulatório com falta de ar. Cabelos negros e olhos grandes, desses que parecem guardar segredos antigos. Joana colocou o estetoscópio sobre sua pele morena e ouviu aquele assovio fino, uma nota musical que o brônquio produz quando o ar quase não passa por onde deveria passar.


O curioso é que não foi o diagnóstico que a emocionou. Foi o som em si, a música involuntária que aquele corpo produzia. A vida contida no sibilo. "Sabe o que me ocorreu naquele momento?", perguntou Joana, enquanto organizava metodicamente os talheres para o jantar. "Pensei em todas as vezes que preparei pacientes para ausculta, em todos os 'respire fundo' que já disse na vida. E nunca tinha realmente escutado."

Fiquei pensando nisso enquanto jantávamos. A simplicidade com que nos acostumamos às maravilhas contidas na relação médico-paciente. Quantos sibilos já auscultei na vida? Milhares, talvez. E quantos realmente ouvi, com essa atenção amorosa que Joana dedicou ao primeiro?

Lembrei-me de quando era estudante, há mais de 40 anos. Da primeira vez que o coração de um paciente bateu em meus ouvidos. Da vertigem de escutar a vida em seu ritmo mais íntimo. Em que momento isso se tornou apenas mais um procedimento?


Depois do jantar, sentamos na varanda. O frio da noite entrava pela janela e as luzes da cidade acendiam. Gente iluminando a escuridão. Joana me contou mais sobre Dona Elisa. Como ela sorriu quando lhe perguntou se fumava ("Só quando bebo", respondeu a mulher, com uma piscadela marota). Como seu sibilo parecia mudar de tom quando ela falava da filha que mora longe.
"Você sabia que os sibilos têm personalidade?", perguntou-me Joana, os pés descalços sobre meu colo, a taça de vinho quase vazia na mão. "O dela era como uma flauta doce, não como aqueles apitos grosseiros e úmidos da tosse de bronquíticos crônicos."

Sorri, reconhecendo nela o encantamento que eu mesmo sentira e que, sem perceber, havia perdido no caminho. A medicina tem dessas coisas. Começa como poesia e, se não tomarmos cuidado, termina como burocracia.

Na cama, mais tarde, Joana deitou a cabeça em meu peito, como faz há tantos anos. Mas havia algo diferente em seu gesto. Não era apenas o carinho habitual, mas uma ausculta atenta, quase clínica. "O que está fazendo?", perguntei. "Procurando seu sibilo", respondeu, com uma seriedade que logo se desfez em riso.

Joana tem essa capacidade de ser metódica e sensual ao mesmo tempo. Seus dedos, que durante o dia manuseiam seringas e estetoscópios com precisão profissional, à noite percorrem meu corpo com uma curiosidade que o tempo não conseguiu domesticar.

Puxei-a para mim e beijei seus cabelos, ainda úmidos do banho que ela toma religiosamente antes de deitar, mesmo nas noites mais frias. Pensei em como é estranho o amor. Como conhecemos o corpo do outro tão intimamente e, ainda assim, há sempre algo novo a descobrir. Um som, um gesto, uma expressão que nunca havíamos notado antes.

Nas semanas seguintes, Joana acompanhou várias vezes a Dona Elisa. Organizou uma pasta específica para ela, com anotações detalhadas sobre a evolução do sibilo, a redução da dispneia, os níveis de saturação e a vida daquela pessoa. A paciente melhorava aos poucos, o sibilo diminuindo a cada visita. "Ela vai ter alta", anunciou certa noite, enquanto dobrava meticulosamente as roupas recém-passadas. "O sibilo sumiu."

Notei uma ponta de tristeza em sua voz, como se algo precioso estivesse se perdendo junto com aquele som. Aproximei-me e abracei-a por trás, sentindo o cheiro do seu perfume suave de laranja, que persistia em seus cabelos. "Você ajudou alguém", sussurrei.

"Não fui eu. Foram os corticoides", respondeu, com aquela modéstia que sempre achei tão bonita. "Você a auscultou e escutou. Isso também salva, sabia?"

Ela virou-se para mim. Havia nela uma mistura de orgulho e vulnerabilidade que me lembrou por que a pedi para namorar, tantos anos atrás. Joana, tão responsável, tão controlada, tão cuidadosa com tudo e com todos, permitindo-se ser tocada pela poesia de um sibilo. Ontem, Joana me contou que Dona Elisa apareceu no ambulatório para uma consulta de rotina. Estava bem, sem crises há meses. Trouxe bombons caseiros para a equipe e um bilhete especial para ela. "Obrigada por escutar não apenas meu sibilo, mas também minhas histórias", leu Joana, a voz embargada pela emoção contida.

Ficamos em silêncio por um momento, sentados à mesa da cozinha, o café esfriando nas xícaras. Pensei em como é curioso o caminho que a vida traça. Eu, que deveria ensinar medicina a Joana, aprendendo com ela a redescobrir a poesia escondida no estetoscópio. Ela, que passou tantos anos auxiliando médicos como eu, agora descobrindo a intimidade de auscultar, a responsabilidade de diagnosticar, a afetividade que pode existir mesmo nos procedimentos mais básicos.

O sibilo. Esse pequeno assovio que o pulmão doente produz e que, nos ouvidos certos, vira música. Esse intruso sonoro que pode ser um diagnóstico, ou o símbolo de uma vida e seus percalços. Que pode ser motivo de preocupação ou revelação.

Como tantas coisas na vida, é apenas uma questão de saber auscultar e escutar.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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