Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

A traíra e suas múltiplas faces

Já vi muitos parasitas, mas poucos tão honestos em sua aparência quanto esse peixe que carrega nome de vilão

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O Mercado Central de Belo Horizonte é um dos meus lugares favoritos. Considerado um dos melhores do mundo, trata-se de um templo com mais de 400 lojas que encanta com produtos típicos mineiros, além da alma belorizontina, que pulsa entre quitandas e aromas de especiarias. Adoro fazer compras e escolher os ingredientes de forma individualizada, olhando para a cara do tomate, como dizia o saudoso Veveco (Álvaro Hardy), arquiteto e cozinheiro de mão cheia, que mereceu até música do Clube da Esquina.

Nesse último final de semana, como de costume, estava lá, olhando para a cara de tomates e pepinos, quando me deparei com uma traíra no gelo da peixaria. Ela me olhava e parecia me pedir para resgatá-la daquele local inóspito. Foi então que me ocorreu uma dessas súbitas reflexões: será que esse peixe tem consciência do peso de seu nome? Entre os aromas de queijo canastra e doce de leite, observando aquele espécime gelado, pensei que a traíra carrega uma das denominações mais ricas de significado da língua portuguesa. 

Fisicamente, a traíra (Hoplias malabaricus) é um peixe de escamas que não engana ninguém sobre suas intenções. Tem corpo cilíndrico, boca grande - dessas que parecem estar sempre prontas para dizer alguma mentira -, olhos grandes e vigilantes, e nadadeiras arredondadas. Sua coloração é marrom ou preta, como convém a quem vive nas profundezas turvas dos nossos rios e, por extensão, da alma humana. Na minha experiência como infectologista, já vi muitos parasitas, mas poucos tão honestos em sua aparência quanto esse peixe que carrega nome de vilão.

Pesquei várias na represa da fazenda do meu avô. A traíra, quando morde a isca, leva de uma vez. A vara de bambu enverga e, se o pescador não for experiente, ela leva isca, vara e pescador para dentro d’água. Já voltei para casa muitas vezes com a botina molhada, sem isca e sem traíra para o tira-gosto.

Na culinária, a traíra é uma iguaria. Sua carne branca e saborosa não trai as expectativas do paladar. É um dos poucos casos em que o nome não faz jus ao produto - ao contrário de muitos políticos e seres humanos que conhecemos. Tempero com limão, sal, alho, cebola, vinho branco e um toque de pimenta do reino, como aprendi com as cozinheiras do interior mineiro. Tá pronto o tira-gosto que alimenta corpo e alma sem dissimulação.

Mas é justamente essa contradição que me fascina. Como pode um peixe tão honesto em seu sabor carregar o nome de um dos comportamentos mais desprezíveis da espécie humana? A traição representa muito mais que um simples defeito moral - é manifestação de uma psicopatologia complexa, uma desordem do caráter, que corrói as bases da confiança social.

Falando em virtuoses da traição, não posso deixar de lembrar o filho de um ex-presidente (hoje presidiário), que transformou a arte de trair em espetáculo nacional. Primeiro traiu o país e as expectativas democráticas, depois traiu os próprios ideais conservadores que dizia defender, e, por fim, traiu até mesmo o pai político que o criou. Será que traíra que trai traíra merece anistia?! Trata-se de performance digna de Oscar na categoria "Melhor Traição em Série". Se fosse peixe, seria sem dúvida uma traíra gigante, daquelas que os pescadores contam histórias exageradas nos botecos maravilhosos do Mercado Central.

Sob a ótica médica, a traição revela-se como sintoma de transtorno de personalidade antissocial, patologia que se manifesta pela incapacidade de formar vínculos genuínos e do prazer sádico em quebrar a confiança alheia. O traidor sofre de uma espécie de déficit de empatia, uma cegueira emocional que o impede de compreender o impacto devastador de seus atos. Não se trata apenas de falha moral, mas de uma verdadeira deformação psíquica que merece estudo clínico.

Lembro-me de um amigo (hoje, ex-amigo). Durante anos, dividimos pesquisas e valores que nunca me foram transferidos. O indivíduo tinha aqueles olhos grandes da traíra, sempre atentos, sempre calculando. Até que um dia veio a facada pelas costas. A traição veio embrulhada em argumentos falaciosos, como costuma acontecer com certa frequência em sociedades empresariais e científicas. Quem nunca foi vítima de um(a) traíra, que morda esse anzol!

O interessante é que tanto a traíra-peixe quanto a traíra-humana compartilham certas características evolutivas: ambas vivem em águas turvas, têm boca grande - uma para comer, outra para falar demais -, e são predadoras por natureza. A diferença é que o peixe ao menos serve para alguma coisa no final das contas, enquanto o traidor humano apenas subtrai valor das relações sociais.

Na mesa do restaurante, a traíra é democrática: alimenta tanto o honesto quanto o desonesto, sem distinção. Já a traição humana é mais seletiva - escolhe sempre os momentos mais inoportunos e as pessoas mais vulneráveis para se manifestar, como um patógeno oportunista que ataca organismos enfraquecidos.

Voltando do Mercado Central com minha traíra embrulhada no jornal, o mesmo onde essa crônica é publicada - ironia do destino -, reflito que talvez devêssemos inverter a lógica das coisas. Em vez de dar nome de traidor a um peixe, deveríamos classificar os traidores pelo que realmente são: uma espécie carente de decência, parasitas do afeto alheio, portadores de uma síndrome comportamental que corrói a sociedade e o país.

No final das contas, prefiro mil vezes a traíra de escamas do que a de duas pernas. Pelo menos a primeira, depois de bem temperada, ainda nos proporciona o prazer de uma boa refeição. A segunda só deixa um gosto amargo na boca, espinhos na garganta e uma lição cara sobre a patologia das relações humanas.

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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