Até o início do século XX, o modelo de “ajuntamento de gente”, as cidades, foi criado, se desenvolveu e prosperou tendo a lógica, os incentivos e as restrições locais como forças predominantes a dirigir a história.

Pense nessa tríade (lógica, os incentivos e as restrições locais) como uma estrada de ferro, a própria comunidade como a locomotiva e o apetite pela evolução e o engenho humano como a força motriz dessa locomotiva.

E assim foi, em um processo inexorável, quase guiado, que as cidades se tornaram um evento importante demais para ser ignorado, ou para seguir um curso de forma espontânea, sem direcionamento e sem planejamento. Funcionaram enquanto deram vazão à espontaneidade, mas bastou dirigir, bastou planejar, que a coisa degringolou.

A culpa não está no planejamento, claro, mas nos cânones e premissas, da tabula rasa sobre a qual esse planejamento e o dirigismo foram erigidos; e uma fundação ruim não consegue produzir um edifício estável.

O planejamento do início do século XX em diante poderia ter se desenvolvido a partir de fundamentos testados por séculos, propondo melhorias, evoluções, incorporação de novos conhecimentos e novas tecnologias mas, em vez disso, propuseram zoneamentos restritivos, loteamentos exclusivamente unifamiliares, exigiram o espalhamento da cidade e a segregação de usos e de segmentos “indesejáveis” da população (minorias, imigrantes, baixa renda).

O início do século XX celebrou um novo homem, e esse novo homem achou que precisava de uma nova cidade. Mas o homem não era um novo homem: era o mesmo homem com novas tecnologias e novas armas, disposto a destruir e reconstruir esse “novo lugar” para esse “novo homem".

O “novo homem” precisava de uma “nova academia”, e essa “nova academia” celebrou o eugenismo, celebrou as cidades espalhadas, os bairros exclusivamente residenciais e unifamiliares, celebrou a exclusão social, o racismo e modelos políticos autoritários e extremados.

E foi desse caldo que esse “novo homem” criou as “novas cidades” brasileiras, norte-americanas, canadenses, australianas e asiáticas. As que evoluíram de antigos vilarejos preservaram espontaneidade e se adensaram utilizando o conhecimento vernacular acumulado, mas as cidades criadas do zero, algumas com traçados tipo tabuleiro de xadrez (ortogonais), outras seguindo terrenos montanhosos ou antigos caminhos, trouxeram em seu DNA uma visão de espalhamento e baixa.

Com o avanço do século XX, essa visão é de tal ordem dominante nas escolas de arquitetura e urbanismo e nos departamentos de planejamento urbano-municipais, que se torna a tese única, um mantra, quase uma seita, a ponto de alterar trajetórias e apagar um legado de vigor e sucesso, onde cidades densas e compactas, de uso misto, com regras simples e espontaneidade perceptível, perdem gradativamente a vitalidade enquanto se espalham, negam densidade e restringem usos em áreas residenciais a partir da década de 1970.

E, como um culto, nem mesmo os fatos, o bom senso e o conhecimento histórico acumulado são capazes de abalar as convicções cegas. A mudança só vem com uma nova geração, mais aerada e permeável ao conhecimento real, não dogmático, questionando a cegueira e a obtusidade em cidades com problemas e desafios demais a superar, pela insistência num modelo que nasceu errado e nunca se provou.

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O momento é de extrema preocupação com a conformação atual das cidades, mas de celebração por assistir às boas ideias, lógica, os incentivos e as restrições locais ganhando visibilidade e penetrando em todos os círculos, das universidades ao executivo e legislativo municipais, passando pelos veículos de mídia e demais áreas do conhecimento.

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