“A gente tem ideia de que vingança é costura reta, mas a verdade é que ela vai feito trançado de couro: uma ponta chamando outra”. Costuradas entre as falas coloquiais, as frases de efeito e os ditos populares que saem com naturalidade dos personagens do início do século 20 são um dos pontos fortes da dramaturgia de “Guerreiros do Sol”, novela que estreou no Globoplay e terá o primeiro capítulo exibido na TV Globo nesta quarta-feira (2/7) após “Vale tudo”.

Escrita por George Moura, em parceria com Sergio Goldenberg, “Guerreiros” tem direção de Rogério Gomes e revisita o sertão nordestino na época do cangaço com destemor e originalidade. Uma das grandes virtudes é amalgamar códigos do melodrama folhetinesco com referências de clássicos cinematográficos (“Rastros de ódio”, “Os sete samurais”) e o oportuno protagonismo feminino. Como pano de fundo, uma observação atenta das raízes da desigualdade e da violência brasileira.

“É uma história de amor em tempos de guerra. E a guerra é a de formação do Brasil moderno”, define George Moura, em entrevista ao Estado de Minas.

“A ideia de ter temas atuais na narrativa foi uma preocupação nossa o tempo inteiro: um desejo de impregnar os conflitos do passado com questões do presente, como, por exemplo, a promiscuidade entre polícia, poder e banditismo”, complementa o autor pernambucano.

O resultado é visualmente deslumbrante e de elevado nível dramatúrgico, com sequências impressionantes (a abertura, que termina com uma casa “assassinada”, é um primor) e atores afinados à frente de uma produção impecável como há tempos a emissora não oferecia aos espectadores de seu horário nobre.

Com título homônimo ao do livro de não ficção do historiador Frederico Pernambucano de Mello, “Guerreiros do Sol”, com 45 capítulos, é outra parceria de Moura com Goldenberg. Eles assinaram as séries “O canto da sereia” (2013), “Amores roubados” (2014), “Onde nascem os fortes” (2018) e “Onde está meu coração” (2021).

“Fazemos tudo junto e misturado. Escrever a dois é a maneira menos solitária de escrita e diálogo permanente de trocas e aprendizados que nos dá mais velocidade nas entregas, o que é muito importante no sistema industrial da TV e do streaming”, diz o roteirista, chamando a parceria de “casamento longevo e profícuo”. Leia, a seguir, a entrevista de George Moura, 61 anos:

O roteirista George Moura, pernambucano do Recife, no sertão onde ambientou a novela: "Tenho a sensação de que estava me preparando há uma vida para escrever ‘Guerreiros do Sol’"

Estevam Avellar/Globo/divulgação

Você criou duas séries ambientadas em sua região de origem, “Amores roubados” e “Onde nascem os fortes”, mas ambas eram contemporâneas. Qual o desafio de voltar ao seu Nordeste, mas agora em uma história do início do século 20? Consegue enxergar conexões entre os três trabalhos?
Há conexões sim, porque o sertão é um mundo imenso com uma lógica própria. Talvez, com a novela “Guerreiros do Sol”, não seja exatamente voltar, porque tenho a sensação de que nunca saio de dentro dele, por um motivo já escrito pelo mestre Guimarães Rosa: “o sertão é dentro da gente”. Mas claro que escrever, sobretudo diálogos de outra época, como é o caso de “Guerreiros do Sol”, tem uma dinâmica bem diferente de um texto que se passa nos dias de hoje. Não é apenas o uso de palavras de época, mas é também o encadeamento das palavras, que mesmo sem perder a oralidade, pode cultivar um pouco mais de um viés poético, mas sem nunca deixar os diálogos literários. É importante ser coloquial para ser crível, mesmo em se tratando de um roteiro de época. Em “Guerreiros do Sol” há também um desejo de impregnar os conflitos do passado com questões do presente. Por exemplo: a promiscuidade entre polícia, poder e banditismo. Nos anos 1920 e 30, muitos cangaceiros compravam munição da polícia. Isso, infelizmente, não é algo apenas do passado do Brasil.

Conseguiu levar algo de suas lembranças familiares e de sua própria vivência nordestina para a criação de “Guerreiros do Sol”?
Tenho a sensação de que estava me preparando há uma vida para escrever “Guerreiros do Sol”, pois minha paixão pelo cangaço é de décadas. O nome da protagonista, Rosa, vivida pela paraibana Isadora Cruz, é o nome da minha avó materna. Rosendo, que é o nome de um coiteiro de Josué, interpretado pelo pernambucano Thomás Aquino, é o sobrenome do meu pai, que veio do pai dele. Embora eu tenha nascido no litoral, no Recife, sempre fui fascinado pela geografia física e humana do sertão nordestino. Em “Guerreiros do Sol” tudo é livremente inventado a partir de fatos reais. Rosa e Josué têm um pouco dos vários casais de cangaceiros e têm também um pouco das minhas paixões amorosas vividas.


Como a leitura de “Guerreiros do Sol”, o livro de Frederico Pernambucano de Mello, influenciou a criação da novela?
Convidamos Frederico Pernambucano de Mello para ser consultor da novela desde o princípio. Ele leu todos os capítulos e fez observações importantes para que a história, mesmo ficcional, fosse crível e realista. Sou um leitor de Frederico há anos e ele não apenas historia o movimento do cangaço através dos fatos, ele tem uma compreensão ampla e complexa sobre o movimento, criando conceitos importantes. Relemos o livro de Frederico antes de começar a escrita, mas o que usamos do livro foi o título, que Frederico gentilmente nos cedeu. Sempre achei o título de uma voltagem poética cabralina, quase como um verso de uma “faca só lâmina”. Mas há outros livros importantes para o processo de criação dessa história, como o da Elise Jasmin, “Lampião, senhor do sertão”, e dezenas de outros, que lemos durante a pesquisa.

Qual o motivo de a cultura nordestina ser tão pródiga em histórias? Onde está a fonte que nunca seca?
Acredito que o conflito entre o arcaico e o moderno, que é uma característica forte no Brasil profundo, sobretudo no Nordeste, talvez revele um pouco da longevidade dessa fonte. Na dramaturgia, esse conflito é o motor disparador de muitas histórias. Tento definir “Guerreiros do Sol” como uma história de amor em tempos de guerra. E a guerra é a de formação do Brasil moderno.

Rosa (Isadora Cruz) é a narradora de 'Guerreiros do Sol'. Personagem troca o casamento com um coronel pelo amor de Josué, que se torna cangaceiro após entrar em conflito com poderoso clã do sertão nordestino

Estavam Avellar/Globo

Um dos destaques nos primeiros capítulos de “Guerreiros do Sol” vai para o protagonismo feminino, com mulheres que assumem seus desejos e destinos, e outras (ainda) silenciadas e oprimidas pela condição social da época. Como foi a sua pesquisa para criar as personagens? Inspirou-se em histórias reais? Quais elementos unem essas mulheres brasileiras do início do século?
A ideia de impregnar a narrativa da história de “Guerreiros do Sol” com temas atuais foi uma preocupação nossa o tempo inteiro. E a força das mulheres foi um desses temas. A novela é narrada pela protagonista Rosa (Isadora Cruz). Ela tem uma visão crítica do próprio cangaço, ao mesmo tempo em que ela se apaixona perdidamente por um sertanejo, Josué (Thomás Aquino), que se transforma em um cangaceiro. Não há relação biográfica entre as mulheres fortes da novela e mulheres nordestinas reais. Mas vejo, por exemplo, que a personagem de Jânia Bandeira (Alinne Moraes), que luta pelo voto feminino numa época que as mulheres não votavam, tem um pouco do feminismo pioneiro de Nísia Floresta, nascida na capitania da Paraíba, atual Rio Grande do Norte, em 1810.

Os fortes vínculos entre irmãos, do amor à rivalidade e até ao ódio, são um dos pilares da trama de “Guerreiros do Sol”. Por que este vínculo é tão poderoso na literatura e no audiovisual? Poderia citar exemplos de histórias de irmãos que marcaram a sua formação?
O amor entre irmãos tem a força de ser um amor que você não escolhe. Ele já vem pronto, como um destino traçado. Isso, às vezes, pode transformar o amor em ódio, como é o caso em “Guerreiros do Sol”, na relação entre Josué (Thomás Aquino) e Arduíno (Irandhir Santos). No começo era amor, mas a inveja vai empurrando os irmãos para o ódio e o desejo de vingança. Isso é muito rico dramaturgicamente. Porque aquele amor inicial, entre duas pessoas muito próximas e que conhecem muito bem a intimidade do outro, pode gerar inúmeros conflitos. Sobre histórias de irmãos que marcaram a minha formação, eu diria que essas histórias estão mais presentes na vida do que na literatura. Foi na vida que elas me encantaram. Tenho dois irmãos, mas na minha infância e juventude vivi rodeado de primos, que eram como se fossem irmãos e convivíamos em casas com quintais. Daí surgiram muitas trocas que me inspiram até hoje.

Mulher à frente de seu tempo, a personagem Jânia (Alinne Moraes) defende o voto feminino, assim como fez a pioneira feminista Nisia Floresta (1810-1885), que nasceu no Rio Grande do Norte

Estevam Avellar/Globo


No prefácio à edição de “Guerreiros do Sol”, Gilberto Freyre destaca o fato de que o trabalho de Frederico Pernambucano de Mello acentua “não ter havido cangaço, mas cangaços”, no plural, ao destacar “a pluralidade e diversidade em desafios”, pois, na visão dele, não há “sertão, mas sertões”. Dos sertões e cangaços que realmente existiram, qual deles o motivou a desenvolver na dramaturgia audiovisual?
O sertão é mesmo plural. E o movimento do banditismo no qual o cangaço está inserido é tão complexo que também é plural. Há uma tradição da narrativa audiovisual brasileira com o cangaço como tema, basta olhar o cinema de Glauber Rocha. Para o Brasil, o cangaço é como se fosse o Velho Oeste norte-americano ou os samurais orientais. Já usamos a narrativa com cangaceiros desde o Cinema Novo, passamos pela série “Lampião e Maria Bonita”, na TV Globo, e agora chegamos até a novela, como “Guerreiros do Sol”. Há muita história ainda a ser contada nesste universo riquíssimo.

No mesmo prefácio, de 1984, Gilberto Freyre destaca que o cangaço não é apenas nordestino, mas “um tema brasileiro” e que a vivência sertaneja ligada a cangaços contém “aspectos shakespearianos de dramas como que quase épicos”. Quais os pontos de conexão que você enxerga entre Shakespeare e o sertão? E com o restante do Brasil?
Os dramas shakespearianos, embora se passem numa determinada época na Europa, continuam universais. Assim como as histórias dos bandos de cangaceiros. Há em Shakespeare paixão, disputa pelo poder, religiosidade, traição, vingança, amor e ódio entre familiares. Ou seja, tudo o que também havia nas relações entre cangaceiros e a sociedade da época. Daí a conexão que Gilberto Freyre enxerga entre esses dois mundos, que embora pareçam tão distintos, no fundo são muito próximos por serem demasiado humanos.

Acredita que o cangaço traz as raízes e feridas do Brasil contemporâneo? O que tem a dizer ao Brasil de hoje?
Decidimos falar do cangaço hoje porque muitas das contradições do Brasil de ontem ainda seguem presentes no país. Afinal, não é possível falar da formação do nosso país sem falar de cangaço. Tem uma história exemplar que se passa à época do bando de Lampião e Maria Bonita; se voltarmos ao início do século 20, podemos relembrar. Lampião ganhou a patente de Capitão do Exército Brasileiro, depois de ter sido chamado para combater a Coluna Prestes, por um deputado federal, que fez a ponte para que o convite chegasse ao cangaceiro, convocando Padre Cícero para conversar com Lampião. Veja que situação tão atual. O estado (deputado federal) convoca um bandido (Lampião e seu bando), por intermédio da Igreja (Padre Cícero), para combater os comunistas (Coluna Prestes). No Brasil atual, em tempos de milícias e religiosos tomando posições políticas, o passado poderia se passar no presente. Por isso, o cangaço tem muito a dizer ao Brasil de hoje.

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Como a literatura e o teatro brasileiros influenciam a sua dramaturgia?
Sou um leitor contumaz, que gostaria de ter mais tempo para leituras não compulsórias de trabalho. Fiz mestrado em artes cênicas na Universidade de São Paulo e li muita dramaturgia. Portanto, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Tchecov, Tennessee Williams, para citar alguns, estão entre meus mestres. Mas há também os poetas, até mais do que os romancistas, que são meus verdadeiros heróis. João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa, Carlos Pena Filho, Manoel de Barros, e tantos outros, são minha influência maior. Costumo dizer que me tornei roteirista porque queria ser poeta e não consegui sê-lo. E o que mais me fascina na poesia é a capacidade que ela tem de transformar a nossa percepção da realidade com o uso das palavras. Os versos alteram o nosso olhar. 

"GUERREIROS DO SOL"

Primeiro capítulo da novela será exibido na quarta-feira (2/7), às 22h25, na 'Espiadinha Globoplay', na TV Globo, logo após 'Vale tudo'.



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