Em Minas, uma cidade imprudentemente poética
Gonçalves promove exposição de artistas e concurso de textos e desenhos de estudantes inspirados nos livros do português Valter Hugo Mãe, que visitou a cidade
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Especial para o EM
Gonçalves (MG) - O município de Gonçalves, no extremo Sul de Minas, tem 4,8 mil habitantes e chega a receber 30 mil turistas durante o período do inverno, segundo o aplicativo Airbnb. Mas raramente um visitante é aguardado com tanta expectativa como o escritor português Valter Hugo Mãe, que chegou à cidade na última quarta-feira (20/8), depois de longo mistério sobre sua vinda.
Ele permaneceu em Gonçalves apenas um dia, mas teve uma passagem intensa e conquistou artistas, escritores, estudantes e outros moradores que tiveram oportunidade de ouvi-lo. Hugo Mãe fez palestras, distribuiu presentes, autografou livros, entregou prêmios e se encantou com a autodenominada “Pérola da Mantiqueira”, onde ele foi homenageado com uma exposição de artes na Galeria Gabinete de Curiosidades/Art Dialogues.
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A Mostra de Literatura e Arte Imprudentemente Poéticos (MoLA), em cartaz até 31 de agosto, reúne peças criadas por 17 artistas plásticos, convidados pelo idealizador e curador do evento, Rui Neuenschwander.
Todos os artistas tiveram a coragem de ser imprudentemente poéticos e se lançaram ao trabalho a partir da emoção provocada pela leitura dos livros. Não era o caso de descrever fatos ou personagens já desenhados pelas palavras de Valter Hugo Mãe. O importante era provocar no público uma emoção ou sentimento que viesse do fundo do coração dos personagens, de forma que o universo criado pelo escritor reverberasse no contato visual com as obras.
Alguns dos artistas vivem em Gonçalves, outros têm intensa relação com a cidade. “Eu havia visto algumas fotos, mas o que vi na exposição está muito além, as obras são lindas, e não são descrições dos livros, são recriações”, disse o escritor.
Os livros foram sugeridos aos artistas por Rui Neuenschwander, conhecedor e admirador da obra de Valter Hugo Mãe. Médico oncologista durante 20 anos, Rui atua hoje como consultor na área de processos judiciais relacionados a erros médicos. Obcecado por divulgar a obra do autor, Rui também teve a ideia de promover um concurso na Escola Estadual João Ribeiro da Silva.
O concurso contou com a participação de 22 estudantes, na faixa etária dos 14 aos 18 anos, que se inspiraram em livros do escritor para concorrer a premiações em desenho e texto. A participação no concurso foi voluntária. O envolvimento dos adolescentes com a leitura das obras de Hugo Mãe, em tempos de muito estudo por causa do Enem, entusiasmou as professoras.
Regiane Pereira Coutinho, professora de artes, estimulou as crianças e depois comemorou. “Essas crianças ficarão marcadas pela presença de um escritor conhecido, que veio falar com elas.”
Prêmios
Valter Hugo Mãe chegou à Escola Estadual João Ribeiro da Silva carregando pessoalmente 22 exemplares de seus livros. “Esse concurso não pode ter só seis vencedores. Para mim, todos os participantes venceram.”
Como os prêmios em dinheiro – R$ 300, R$ 200 e R$ 100 – eram apenas para os três primeiros lugares em cada categoria, ele levou exemplares de seus livros a todos que participaram.
O concurso premiou as redações de Mirra Raynel Souza, Maria Eduarda e Janaína Torres, e os desenhos de Natielly Aparecida de Moraes, Isabela Kuhn van der Meer e Alinne Chavene de Lima Gomes. O próprio Valter Hugo Mãe entregou os prêmios.
“Todas as tiranias querem reduzir nosso vocabulário, porque retirar palavras é o mesmo que retirar ideias”, disse ele às crianças, que o ouviam atentamente. “O exercício da leitura é o exercício da fala. Temos que falar sempre, por nós e pelos outros que não conseguem falar.” O escritor lembrou que isso exige esforço, “assim como um futebolista tem que se esforçar”.
A obra de Valter Hugo Mãe também inspirou outras artes. Mauro Dryzun, profissional de tecnologia da informação que em maio de 2021 abriu o café Mamushka em Gonçalves, recuperou uma receita vinda da Ucrânia, em 1929, com sua avó e sua mãe, para criar a torta Nhucia. Foi inspirado pela leitura de “Serei sempre teu abrigo”.
Fernanda Kurebayashi criou, em 24 anos, mais de 100 sabores para suas geleias, que vende na loja A Senhora das Especiarias. A leitura de livros do escritor a levou a criar três combinações novas, usando frutas, sakê, flores e chás, com que presenteou Valter Hugo Mãe.
Os sabores? É melhor provar, como fez o escritor. “Que cidade é essa, com tantos artistas e tantas coisas interessantes, onde até o que você come é uma obra de arte?”, perguntou ele.
À noite, Valter Hugo Mãe ainda fez uma palestra, acompanhado dos artistas e com mediação da jornalista Patrícia Negrão, para o público que lotou o Clube Recreativo, no centro da cidade. Bem-humorado, falou por mais de uma hora e respondeu às perguntas do público.
Disse que conhece vários países e viaja muito, mas sua obsessão é ler e escrever. “Já tenho 54 anos e não entendo como o tempo passou tão rápido”, disse. “Para compensar isso, escrevo o tempo todo, nunca procrastino nem fico sem ideias.”
Para Valter Hugo Mãe, o mundo corre o risco de ser destruído pelos loucos que ocupam o poder, mas isso não deve paralisar os projetos de vida de ninguém
A leitura da arte,
a arte da leitura
Os 17 artistas participantes (quatro deles trabalham em dupla, totalizando 15 obras) da Mostra de Literatura e Arte Imprudentemente Poéticos (MoLA), em cartaz na Galeria Gabinete de Curiosidades/Art Dialogues, em Gonçalves, se inspiraram em 13 obras do escritor português Valter Hugo Mãe.
São elas: “A desumanização”, “Homens imprudentemente poéticos”, “O nosso reino”, “Contra mim”, “O remorso de Baltazar Serapião”, “O paraíso são os outros”, “O filho de mil homens”, “O apocalipse dos trabalhadores”, “As doenças do Brasil”, “Deus na escuridão”, “A máquina de fazer espanhóis”, “Serei sempre teu abrigo” e “Contos de cães e maus lobos”.
A história da exposição começou em 2017, em Belo Horizonte, onde o médico e curador Rui Neuenschwander morava. Depois de ler “Homens imprudentemente poéticos”, propôs ao artista plástico Roberto Alvarenga, o Tuscha, que fizesse uma obra sobre o livro. Tuscha acabou criando outras obras, abordando também o livro “As doenças do Brasil”.
Durante a pandemia, Rui se mudou para Gonçalves, onde propôs o mesmo desafio a vários artistas que trocaram os grandes centros pela paz da Serra da Mantiqueira. Rui também teve o mérito de descobrir outros, quase anônimos, a quem deu o mesmo, e merecido, destaque na mostra.
Medo
O curador levou a proposta a Cynthia Gavião, ceramista e pintora paulistana que vive em Gonçalves há 17 anos, especialista na técnica do “paper clay”, mistura de argila e papel reciclado que produz uma cerâmica de grande delicadeza. Cynthia recriou um momento essencial de “Homens imprudentemente poéticos”, reproduzindo numa pequena peça o sentimento do medo.
O universo têxtil de Alexandra Ward, de Gonçalves, e as quinquilharias usadas nas obras de assemblage, de Ju Violeta, provocaram interpretações de “A desumanização”. O silêncio da ausência, o amor preservado no gelo.
Num fragmento de parede demolida, a perfeição do olhar de uma criança, dirigido para um mundo lúdico, que não existe mais. “Serei sempre o teu abrigo” é a obra recriada por William Mophos.
Uma sociedade em que imperam a miséria, o preconceito, o racismo, o fanatismo e a violência contra as mulheres. Tudo está perdido? Não. Temos asas para voar. Eliana Carvalho, obra “Crença”, em madeira queimada, a partir de “O nosso reino”.
Thais Beltrame viajou ao século 12 e recuperou iluminuras criadas num monastério. E santificou o menino Benjamim. Do livro “O nosso reino”, surgiu a obra “Santo Benjamim”.
Nanquim
As Sismografias de Manu Maltez podem criar certo mal-estar à primeira vista, como o romance “O remorso de Baltazar Serapião”, mas a fluidez de seus traços e a densidade do resultado, fruto do uso do nanquim, aguada e guache, é semelhante a uma peça literária criada com arte.
A madeira é um mistério. Uma mulher grávida é um mistério. “O filho de mil homens” carrega consigo muitos mistérios. A peça “O vazio pertencente”, do casal Popoke (Natália Rocha e Eduardo Aleixo Castanheira), apresenta caminhos tortuosos para o olhar, mas o que pretende é interpretar, e não desvendar, todos os mistérios.
Elias Mota, pintor de paredes, reconstrói os mundos das crianças de “Contos de cães e maus lobos” com seus delicados desenhos em nanquim.
“Deus na escuridão”
Duas crianças brincam sobre um piso de tijolos. O piso de tijolos está na varanda da galeria. E “Deus na escuridão”, o livro que inspirou esse simples piso que sustenta duas vidas e suas memórias. Rogério Blach, “Chão”.
Ruzembergue Carvalho passou dois meses bordando sobre papel o seu “Presságio”. Pensava no envelhecimento, nos personagens de “A máquina de fazer espanhóis” e em seu pai, inspiração para sua obra.
Paulo Otero aborda “O paraíso são os outros”, com xilogravura, impressão de pedras e bordado sobre papel. E alinhava as contradições de uma criança.
Frederico Heer e Guilherme Boso, da revista Comando, percorrem um intrincado caminho entre símbolos da vida e da morte para interpretar “O apocalipse dos trabalhadores”. Caixão Apocalipse, objeto em madeira, xilogravura em papel de algodão.
Jonas Meirelles voltou à infância, com a leitura de “Contra mim”, e recuperou velhos fantasmas que mantinham a disciplina rígida nas escolas. Uma antiga carteira de escola guarda a memória do aluno castigado.