Duas réplicas de cabeças de cavalo estão dispostas frente a frente. Só esse arranjo já basta para evocar tensão, confronto e espelhamento. No entanto, a desigualdade entre os dois objetos potencializa tais aspectos: uma cabeça é de louça, maior, mais frágil e refinada; enquanto a outra é de borracha, menor, lúdica, porém resistente.
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É justamente esse “impasse” – que dá nome à obra – que o artista Sandro Ka apresenta na exposição “O estado das coisas”, em cartaz no Museu Mineiro até 14 de setembro. Trata-se da primeira mostra individual do artista gaúcho radicado em Belo Horizonte, que reúne um panorama de sua produção ao longo dos últimos 18 anos.
O “Impasse” de Sandro Ka não é apenas formal – sofisticação versus kitsch, estático diante do flexível, etc –, mas também simbólico. As cabeças de cavalo confrontadas podem ser interpretadas como duas realidades brasileiras distintas, que precisam se encarar para se conhecer. São elite e povo, arte e artesanato, ou mesmo os conceitos de permanência e descartabilidade.
O artista diz que não se interessa por “interpretações fechadas, limitadas a uma técnica, a uma linguagem ou a uma prática artística”
Material bruto
“Meu trabalho é resultado de um olhar atento ao mundo e ao que ele nos oferece enquanto matéria”, afirma Sandro. “A partir disso, lanço mão de toda a materialidade da indústria criativa e cultural que nos cerca. Tudo que nos atravessa cotidianamente eu entendo como material bruto, matéria-prima do trabalho.”
Brinquedos, objetos decorativos, roupas, perucas, imagens sacras. Tudo pode ser aproveitado e ressignificado. Em “Nossa Senhora do Relax”, por exemplo, o artista insere um iPod de brinquedo em uma imagem de Maria. Apesar de provocar um contraste entre o sagrado e o secular, a obra está longe de ser um gesto de desrespeito à fé católica.
Pelo contrário, Sandro propõe uma nova forma de devoção, humanizando a figura da mãe de Cristo, como se dissesse que até Maria tem o direito de relaxar, de suspender por um instante o peso do mundo.
Outro embaralhamento de símbolos e sentidos aparece em “A idade do homem”. Nessa obra, o corpo de um macaquinho de brinquedo recebe a cabeça de um boneco de bebê. De modo irônico, Sandro subverte a narrativa darwinista de que os humanos evoluíram dos primatas. Ao voltar o olhar para o homem contemporâneo – muitas vezes cruel, impulsivo e cognitivamente limitado – a obra parece perguntar: “Que evolução é essa?”
Também são possíveis outras interpretações para a obra. Pode-se pensar na regressão à infância – o homem que nunca amadurece, eterno menino – ou na tensão entre razão e instinto – a cabeça humana sobre um corpo animal.
“Esses objetos já têm funções próprias. Mas, quando são deslocados para o campo da arte, passam a carregar novos significados. E isso depende muito da reação do público. As ações de afeto, a bagagem de conhecimento, as associações que cada pessoa faz. Tudo isso contribui para a multiplicidade de leituras de uma mesma obra”, afirma o artista.
Mais do que buscar uma leitura específica, Sandro se interessa por provocar estranhamento. “Não me interessam interpretações fechadas, limitadas a uma técnica, a uma linguagem ou a uma prática artística”, diz ele.
Uma das situações mais curiosas de estranhamento ocorreu em Juazeiro do Norte (CE), terra de Padre Cícero. Na cidade, o artista colou cartazes com a imagem do Sagrado Coração de Jesus e os dizeres “Sorria! Você está sendo abençoado”.
A ideia era brincar com os mecanismos de controle e vigilância – como as placas “Sorria, você está sendo filmado”. Mas a reação do público desviou completamente a intenção original. “As pessoas começaram a pedir que eu colasse o cartaz nas casas delas. Pela força da tradição católica local, a intervenção perdeu o tom irônico e passou a ser vista como algo devocional”, conta.
Mercantilização da fé
Esses cartazes também estão na exposição, assim como os lambes “Deu$ tá vendo, Deu$ à venda”, da intervenção homônima que critica a mercantilização da fé. A mostra inclui ainda fotografias, desenhos, pinturas e um painel de LED com nomes de drag queens da velha guarda de Belo Horizonte, parte de uma série voltada para questões de identidade de gênero.
Ao ver “O estado das coisas” montada, Sandro diz perceber como suas ideias foram se depurando ao longo do tempo, tanto nas escolhas de materiais quanto no acesso a outras formas de expressão. “Por isso, acredito que são ideias que não se encerram em si mesmas, não se esgotam em uma única obra. Elas continuam vibrando, a ponto de serem remontadas, reeditadas... são dinâmicas. Mas acho que existe uma coisa que não mudou ao longo desses 18 anos: a atenção constante às coisas do mundo”, afirma.
“O ESTADO DAS COISAS”
Individual de Sandro Ka. Até 14 de setembro, de terça a sexta-feira, das 12h às 19h; sábados, domingos e feriados, das 11h às 19h. No Museu Mineiro (Av. João Pinheiro, 342, Funcionários). Entrada franca. Mais informações: (31) 2128-4214.
Mostra de fotografia
Está em cartaz no Prédio Verde do IEPHA-MG (Praça da Liberdade, 470, Funcionários) a exposição “O som que ressoa em mim foi meu ancestral que tocou”. A mostra apresenta um recorte da exposição realizada entre fevereiro e março na CâmeraSete – Casa da Fotografia de Minas Gerais.
Composta por 13 obras de cinco fotógrafas, a exposição investiga as relações entre os corpos negros e o território mineiro, em uma celebração ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e ao Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, ambos comemorados em 25 de julho.
A mostra pode ser visitada até o dia 29 de setembro, de segunda a sexta-feira, das 11h às 17h, com entrada franca.