Hilda Gualtieri Von Echveger abalou a sociedade conservadora belo-horizontina ao romper com as convenções da elite e se lançar na prostituição. A personagem criada por Roberto Drummond em “Hilda Furacão”, no entanto, está longe de ser apenas a jovem rebelde em busca de aventuras: ela encarna um Brasil em ebulição, às vésperas do golpe de 1964, quando movimentos sociais, culturais e políticos desafiavam o conservadorismo de viés católico e militar. Mais do que figura lendária, Hilda se afirma como metáfora de mudança, insubmissão e liberdade de expressão e comportamento.

Tais aspectos são ressaltados em “Hilda Furacão, a ópera”, montagem da Orquestra Ouro Preto que retorna ao Grande Teatro Cemig Palácio das Artes nesta quinta (18/9) e sexta.

“Hilda é uma mulher à frente do seu tempo, que não aceitou o destino imposto. Tomou decisões em relação à própria vida e pagou muito caro por isso”, afirma o maestro Rodrigo Toffolo. Foi dele a iniciativa de transformar o romance seminal de Drummond em uma ópera tipicamente brasileira, com música original de Tim Rescala e direção cênica de Julliano Mendes.


Realidade ou ficção?

Instigante do início ao fim, a trama começa em 1º de abril de 1959, quando a bela “Garota do Maiô Dourado”, que enfeitiçava os homens na piscina do Minas Tênis Clube, abandona um casamento promissor com um banqueiro milionário para se instalar no quarto 304 do Maravilhoso Hotel, na Rua Guaicurus. Ela permanece na zona boêmia por cinco anos, sem responder à pergunta que todos faziam: “Por quê?”.

A obra é repleta de ambiguidades que convidam o leitor a refletir sobre a realidade brasileira e a se questionar até que ponto a história é real ou invenção. Não por acaso, a data escolhida para a virada da personagem é 1º de abril, o Dia da Mentira. Também é mentira – ou melhor, ficção – o acirrado debate sobre o projeto de lei “Cidade das Camélias”, que afastaria os prostíbulos do Centro de Belo Horizonte.

Em contrapartida, os protagonistas desse debate, os vereadores Padre Cyr e Orlando Bonfim, existiram e, realmente, atuaram na Câmara Municipal. Assim como são reais as travestis Cintura Fina e Maria Tomba Homem, que marcaram época na cidade e aparecem na trama como amigas de Hilda.

A confusão maior é em relação ao narrador, que se confunde com o autor – ambos chamados Roberto Drummond, jornalistas com passagem pela Folha de Minas, Binômio, sucursal mineira do Última Hora, Alterosa e este Estado de Minas.

Tanto no livro quanto na ópera Roberto Drummond (interpretado por Fernando Portari) recebe a missão de descobrir o que levou Hilda (a mezzo-soprano Carla Rizzi) a trocar a vida de socialite pela prostituição.


Compaixão pelos rejeitados

Só que diversas subtramas vão aparecendo ao longo da investigação, como a célebre “Noite do Exorcismo” – quando a Liga de Defesa da Moral e dos Bons Costumes, liderada pela moralista Dona Loló Ventura (Marília Vargas), segue até a Rua Guaicurus com Frei Malthus (Jabez Lima) para exorcizar a protagonista – e a paixão proibida de Frei Malthus por Hilda.

“Hilda olha com compaixão e humanidade para aqueles que são rejeitados, os enjeitados, os que vivem à parte numa sociedade ainda difícil. Ela é uma mulher que acolhe e mostra para eles que existe um caminho e uma luz, que estão dentro do ser humano”, afirma Carla Rizzi.

No caso da ópera, tudo é embalado por uma música original que transita pelo jazz, big band, bossa nova e música de orquestra. “A ideia foi absorver a música popular da época naquele período”, diz Tim Rescala. “Não só as músicas que eram populares no Brasil, como no mundo inteiro, de modo que o resultado sonoro fosse um somatório disso”, acrescenta.

Embora certas passagens do romance tenham sido suprimidas – o que é natural em uma adaptação –, a carga política se mantém fiel ao original. Os ideais de renovação, insubmissão e liberdade que Hilda representa vão embora junto com ela, em 1º de abril de 1964, data em que a personagem deixa o Maravilhoso Hotel – e que coincide com o primeiro dia do regime militar.

Já o narrador-personagem, assumidamente comunista, é a materialização do idealismo político. E seus melhores amigos, Frei Malthus e Aramel, representam, respectivamente, a fé vacilante e a desordem cívica.

“Hilda Furacão, a ópera” estreou em novembro do ano passado, mas se tornou ainda mais atual agora, depois da condenação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seu núcleo próximo por tentativa de golpe de Estado. “A história do Brasil é cheia de golpes. Por isso este é um tema que devemos abordar recorrentemente, para que as pessoas nunca se esqueçam”, diz Tim Rescala.

Além disso, acrescenta o regente Rodrigo Toffolo, a historiografia brasileira “já está escrita”. “Ela está aí para ser mostrada, não tem nada que esconder e nem que brigar com a realidade”.

Histórias brasileiras

“Hilda Furacão, a ópera” integra uma proposta da Orquestra Ouro Preto de criar óperas tipicamente brasileiras, com libretos modernos adaptados de grandes clássicos. Já foram montadas “O auto da compadecida”, de Ariano Suassuna; e “Feliz ano velho”, de Marcelo Rubens Paiva. Todas em parceria com Tim Rescala. “É claro que montagens clássicas, como 'Carmen' e 'A flauta mágica' são muito importantes, mas também é necessário termos a nossa ópera, com nossas histórias e nossos nomes”, afirma o maestro Rodrigo Toffolo.

“HILDA FURACÃO, A ÓPERA”
Ópera da Orquestra Ouro Preto. Música original: Tim Rescala. Direção cênica: Julliano Mendes. Com Carla Rizzi e Fernando Portari, entre outros. Nesta quinta (18/9) e sexta, às 20h, no Grande Teatro Cemig Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro). Ingressos à venda por R$ 40 (plateia 2 / inteira); R$ 25 (plateia superior / inteira), na bilheteria local e pelo Eventim. Meia-entrada na forma da lei. Ingressos para plateia 1 estão esgotados.


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