Um homem coberto de palha, com o rosto escondido por uma tosca máscara de urso, se aproxima do Volkswagen conduzido por Marcelo (Wagner Moura) até colocar a cabeça na janela do Fusca e assustar o protagonista de “O agente secreto”.

A sequência com a La Ursa, personagem tradicional do carnaval pernambucano, reconstitui um dos traumas de infância do diretor do filme, Kleber Mendonça Filho. “Aconteceu comigo: ela botou a cara na janela e ficou com o focinho já dentro do carro, isso não foi legal”, lembra. “Mas é fascinante, é engraçado, é aterrorizante, é bizarro, é carnaval”, reconhece ao Estado de Minas.


Os adjetivos escolhidos pelo diretor para a aparição de La Ursa podem ser aplicados também ao longa-metragem indicado pelo Brasil para tentar repetir o feito de “Ainda estou aqui” e ganhar o Oscar de Melhor Filme Internacional. Vencedor dos prêmios de direção e ator no último Festival de Cannes, “O agente secreto” fascina pela reconstituição de época, comove na história familiar do protagonista, eletriza nas sequências de perseguição, faz rir com a bizarrice de uma ‘perna cabeluda’ à procura de vítimas.


Nesta montanha-russa com picos catárticos nos embates verbais, impressiona o amálgama de referências regionais e internacionais em uma trama policial ambientada no Recife dos anos 1970 e protagonizada por um irrepreensível Wagner Moura. Como diz o antigo slogan da Rádio Jornal do Commercio, “O agente secreto” é Pernambuco falando para o mundo. E escutando atentamente o que o mundo tem a dizer.

“Sempre foi do meu interesse fazer um filme 100% brasileiro, mas que tem as lentes do cinema americano que ajudou a me formar”, conta o diretor, em entrevista antes de viagem para a Europa para homenagem no Festival de Biarritz, na França, e sessão especial no Festival de San Sebastian, na Espanha, no último domingo (21/9).

Depois de San Sebastian, ele segue para uma sessão em Madri para membros da Academia de Hollywood. Na sequência, participa na Suíça de homenagem a Wagner Moura no festival de Zurique.


“Acho que ‘O agente secreto’ e ‘Ainda estou aqui’ evitam os protocolos dos filmes sobre ditadura. São filmes sobre esquecimento”, acredita Kleber Mendonça Filho. Ele identifica no Brasil um “trauma de memória” decorrente da oficialização do apagamento do passado. “A anistia, em 1979, é um enorme desrespeito ao que aconteceu. E está se repetindo agora, com uma tentativa incansável deles se perdoarem e tocar a bola para frente, só porque são privilegiados como homens públicos”, critica. “A amnésia foi normalizada no Brasil e isso é um trauma para o país”, complementa.


Depois de abrir o último Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, “O agente secreto” ganha a primeira exibição em Minas Gerais nesta terça-feira (23/9) no Cine Theatro Brasil. Será o filme de abertura da 19ª edição da CineBH- Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, que homenageia o ator mineiro Carlos Francisco, integrante do elenco e que já havia trabalhado com Kleber em “Bacurau”.

“É muito bom que a primeira experiência com o filme em Minas aconteça no Cine BH, onde o projeto de ‘Bacurau’ foi percebido pela primeira vez. Espero que vocês tenham uma sessão eletrizante, engraçada, assustadora e comovente”, desejou o cineasta ao público mineiro. O filme estreia no circuito comercial na primeira semana de novembro. Leia, a seguir, a entrevista de Kleber Mendonça Filho ao Estado de Minas.


Além de abordar a questão da "amnésia normalizada no país", por que você tem dito que “O agente secreto” é também um filme sobre o Brasil de hoje?
Acho que, nos últimos 10 anos, voltaram coisas que eu achava que a gente tinha superado já. Coisas com o Nordeste que achei que tinham arrefecido no final dos anos 90 e início dos 2000. Não sei se Lula teve uma força muito grande nesse sentido.

E aí, quando começou aquela armação contra Dilma e ela foi reeleita, comecei a perceber a volta de coisas que já tinha parado de ouvir. “A culpa é do Nordeste”, basicamente. E conversas sobre tortura. Parecia que existia uma ação coordenada para fazer uma grande festa à fantasia da ditadura. Isso geralmente vindo de pessoas de perfil branco burguês em todo o Brasil; no Rio de Janeiro, claro, mas no Recife também.

Wagner Moura interpreta o professor Marcelo no novo filme de Kleber Mendonça Filho, "O agente secreto" (2025). Ele venceu o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes Reprodução redes sociais Kleber Mendonça Filho
No longa hollywoodiano "Guerra civil" (2024), de Alex Garland, o ator é Joel, jornalista que atravessa o país ao lado da fotógrafa Lee (Kirsten Dunst), para cobrir a conflagração que tomou conta do país Diamond Films/Divulgação
Wagner Moura estreou na direção de longas com "Marighella", biografia do guerrilheiro Carlos Marighella, interpretado por Seu Jorge. O filme está disponível no Prime Video O2 Filmes/Divulgação
No drama biográfico "Sérgio" (2020), de Greg Barker, o ator interoreta o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, morto num atentado no Iraque, em 2003 Netflix/Divulgação
Na série "Narcos" (2015-2017), da Netflix, Wagner Moura vive o megatraficante colombiano "Pablo Escobar". Papel o tornou mundialmente conhecido Juan Pablo Gutierrez/Netflix
Na comédia musical, "Ó paí,ó" (2007), de Monique Gardenberg, Wagner Moura voltou a contracenar com Lázaro Ramos, retomando a parceria de sucesso do teatro, quando os dois atores baianos interpretaram o mesmo personagem na montagem "A máquina" Europa Filmes/Divulgação
Em "Tropa de elite" (2007), de José Padilha, Wagner Moura vive o Capitão Nascimento, um policial do Bope. O sucesso do filme fez com que expressões como "pede pra sair", ditas pelo Capitão, fossem incorporadas ao vocabulário do dia a dia David Prichard/Divulgação
Wagner Moura como Zico no longa-metragem "Carandiru" (2003), superprodução de Hector Babenco adaptada do livro homônimo de Drauzio Varella Marlene Bergamo/Divulgação

Como se fosse a volta dos “anos dourados”, que não foram dourados exceto na juventude dessas pessoas. Conversa de “ditabranda”, pau de arara, escolas que não eram militares fazendo criança marchar, militares em posições de governo que deveriam estar sendo ocupadas por civis. Tudo isso foi muito interessante durante a escrita do roteiro. Foi quando vi que eu estava escrevendo também sobre o tempo de hoje.


Quando você traz para um filme dos anos 1970 uma alusão direta ao caso do menino Miguel (que morreu em 2020 ao cair do nono andar do prédio de Sari Corte Real, patroa de Mirtes, mãe do garoto), também é uma forma de estabelecer essa conexão?
Estou usando a lógica do nosso país. Existem muitas lógicas do Brasil. Algumas são muito desagradáveis: as lógicas do racismo, da misoginia, do privilégio. Mas existem também a da comida, do amor ao país, do carinho, da capacidade que as pessoas têm de se expressar na rua. São várias lógicas e o filme tem muitas delas.


O que representam os refugiados (grupo de moradores de um mesmo prédio onde se esconde o personagem de Wagner Moura)?
Os piores momentos dos anos Bolsonaro foram de desmoralização completa do país como nação. Não só do Brasil em relação ao mundo, mas principalmente dentro do país. Fomos milhões de pessoas desmoralizadas por aquele governo. Muita gente entrou em depressão.

 Eu e minha companheira tivemos muitas vezes dificuldade para dormir, coisa que eu nunca tive na vida. As pessoas ficaram com seus amigos como um sistema de proteção, sabe? Foi algo muito especial em um momento tão ruim, tão desmoralizante, tão desrespeitoso. E isso, naturalmente, foi escrito no filme.

Eu gosto também de quando uma personagem diz (para Marcelo, personagem de Wagner Moura): “É para te proteger do Brasil”. Ou seja: você é brasileiro e precisa ser protegido do Brasil.


Com a escolha de “O agente secreto” como o representante do Brasil no Oscar, começa a disputa por uma indicação. O que espera dessa jornada?
Vou aonde o filme vai. O que evito ao máximo é falar sobre o filme sem que ele tenha sido visto. Não quero parecer vendedor de carro. Mas quando o filme vai, eu vou junto e está tudo certo. Tem uma equipe muito forte da Neon (distribuidora norte-americana) cuidando do filme, da minha agenda, de coisas que eu tenho de fazer e são importantes para divulgar.

E eu trabalho com um cara chamado Wagner Moura que é ótimo nisso, super boa-praça. Estou tranquilo. Só tenho que me tentar poupar fisicamente porque a agenda precisa ser modulada de uma maneira que não pode ser só pancada. Tô de olho nisso: preciso dormir bem, comer bem. Mas é o que eu sempre quis. Viajar com meus filmes. E, de certa forma, representar o país.


Você não teme ser alvo de uma campanha como foi feita por deputados bolsonaristas que pedem ao governo dos EUA para cancelar o visto de Wagner Moura?
Não faz o menor sentido. Vou aos Estados Unidos há 30 anos. A parte mais importante é que as pessoas precisam lembrar que o Brasil sempre foi um parceiro dos Estados Unidos. E isso vai passar. A falta de informação das pessoas não pode virar notícia.


Você trabalhou por muito tempo como crítico cinematográfico antes de se dedicar exclusivamente à direção. Em qual gênero encaixaria “O agente secreto”?
Sempre quis que esse filme fosse muita coisa. Eu gosto disso. E adoro negar pré-concepções sobre filmes, livros. Gosto de ser surpreendido como leitor, como cineasta.

Eu adoraria ver uma comédia romântica que me deixa totalmente assustado. Ou um filme de terror que é incrivelmente romântico e cheio de tesão. Sou essa pessoa. Mas o mercado trabalha com essas afirmações. Então, se o mercado quiser mesmo, é um thriller.

Mas acho que o filme vai muito além disso. É um thriller, um melodrama, um filme de horror, uma comédia; um livro, um romance e uma novela. Tudo junto.

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