“Onde você vai ver o jogo?”, indagou o jornalista Carlos Herculano Lopes ao colega de Estado de Minas Roberto Drummond. Em 21 de junho de 2002, essa era a pergunta que todos se faziam. Se o Brasil vencesse a Inglaterra, estaria a dois jogos de se tornar, mais uma vez, campeão do mundo. Foi o que aconteceu – não para Roberto, que morreu de infarto na hora da decisão das Quartas de Final da Copa.
Roberto e Herculano eram amigos havia 23 anos, uma relação que o segundo considerava, por vezes, “de tio para sobrinho ou até mesmo de pai para filho”. A última conversa que tiveram foi relatada por ele na crônica “Adeus, Roberto”. Às pressas, Herculano foi convocado para substituir Roberto na crônica semanal que o autor de “Hilda Furacão” publicava no caderno de Cultura do EM.
Era para ser só uma semana. Foram duas, três, quatro, 13 anos ao todo. Herculano caiu de paraquedas na crônica e só saiu dela quando deixou o jornal, em 2015. Com lançamento no próximo sábado (4/10), às 10h, na Academia Mineira de Letras (onde desde junho de 2024 ocupa a cadeira 37), “200 crônicas escolhidas” (Autêntica) faz um recorte das mais de mil que Herculano publicou, semanalmente, em mais de uma década.
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OUTRO OLHAR
O autor convidou Jacques Fux para organizar, com ele, o material. “Além de ser um ótimo escritor, é um cara urbano, com uma cultura diferente da minha, que teria outro olhar sobre as crônicas. Ele organizou por temas e assuntos e, à medida que ia escolhendo, passava para discutirmos juntos.”
A obra é dividida em cinco partes: “O cronista do cotidiano”; “O cronista, as memórias das Minas Gerais: as conversas em ônibus e táxis”; “O cronista voyeur e os amores que passam”; “Os encontros literários, as histórias e suas invenções”; e “As memórias de Coluna”, esse último referindo-se aos casos trazidos “de casa”, a cidade onde o autor nasceu, no Vale do Rio Doce.
“Um cronista literário”, escreve Fux na apresentação do livro, “é um observador taciturno, oculto e astuto, mas sempre pronto para uma boa conversa de bar, para ‘roubar’ uma história de um viajante e para narrar a lembrança de um amor ou o deslizar uma lágrima de saudade.”
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Isso tudo é facilmente encontrado em “200 crônicas escolhidas”. Em “O amor é lindo – 2”, Herculano contra o imbróglio em que um amigo do Barbazul (o bar em frente à Redação do jornal, no bairro Funcionários, é cenário de vários textos), com três ex-mulheres, se envolveu ao conhecer uma goiana em Porto Alegre. Em “O divórcio”, ele começa o texto dando conta da trajetória do senador Nelson Carneiro, autor da proposta que aprovou o divórcio no país, em 1977 – a graça está em como a novidade foi recebida pelos frequentadores do bar do seu Chico, em Coluna.
“O mais importante da crônica é saber fechar a história para não deixar o texto no ar. Essa manha, com o tempo eu adquiri”, ele conta . Assunto, nunca faltou. “Esse mito de não ter assunto não aconteceu comigo. Se não tinha, eu inventava.” O dom para a fabulação vem desde menino, quando aprendeu a contar caso, em Coluna – como não havia luz elétrica, quando a noite chegava, a diversão era ouvir histórias.
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Herculano já tinha uma trajetória respeitável como romancista – “A dança dos cabelos”, “Sombras de julho” e “O último conhaque”, foram publicados entre 1987 e 1995 – ao ser atropelado pela crônica. “Ser cronista nunca tinha passado pela minha cabeça. Sempre gostei de história e romance. Li os grandes, claro, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, mas nunca fui aquele leitor contumaz de crônica. Acabou sendo um excelente acaso na minha vida.”
A regularidade e as especificidades de uma crônica lhe ensinaram muita coisa. “Ela me fez ter um novo olhar sobre o mundo e as pessoas. Me tornou um cara mais humilde. Passei a ouvir mais as pessoas, a prestar atenção aos anseios do outro, a observar o cotidiano, os acontecimentos nas ruas e a minha própria história. A crônica é um olhar, um instante, mas que, de certa forma, me transformou.”
Ainda que a parte final dos textos reunidos na edição seja dedicada a Coluna, a personagem que emerge na maior parte deles é Belo Horizonte. “O leitor gosta muito de casos, mas eu não podia ficar só neles. Meu olhar principal foi Belo Horizonte, porque, na realidade, já sou belo-horizontino. Cheguei aqui com 11 anos. Acho que a crônica me tornou cidadão dessa cidade.”
TRECHO
“Por falar em Sabino”
“Nem é preciso dizer o susto que tomei. Imagine, logo eu, um modesto escrevinhador de quimeras – para também lembrar Roberto Drummond, que adorava essa expressão –, mexer em um texto do poeta maior [Carlos Drummond de Andrade]? “Não posso fazer isso, Paulo, gostaria, mas não posso”, foi a minha primeira reação. Então Fernando Sabino, que até aquele instante ouvia a conversa em silêncio, voltou-se para mim, sorriu e disse: ‘Pode sim, Herculano. Além do mais, você vai ganhar um dinheirinho, o que não faz mal para ninguém’.”
“200 CRÔNICAS ESCOLHIDAS”
• De Carlos Herculano Lopes
• Autêntica
• 448 págs.
• R$ 129,80 (livro) e R$ 90,90 (e-book)
• O livro será lançado no próximo sábado (4/10), às 10h, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1.466, Centro). Cinquenta por cento da arrecadação do dia do lançamento será destinada às obras sociais do abrigo São Vicente de Paulo, de Coluna, cidade natal do autor.