Dirce Waltrick do Amarante*
“Escrever é humano: Como dar vida à sua escrita em tempos de robôs”, de Sérgio Rodrigues, chega em um cenário no mínimo curioso: enquanto as faculdades de Letras vêm encolhendo diante do discurso da inutilidade dessa formação, cresce o número de escolas de escrita criativa, mesmo que ela esteja seriamente ameaçada pelas inteligências artificiais. Paralelamente, multiplicam-se os clubes de leitura Brasil afora, frequentados por todas as gerações.
O que explicaria essa situação no mínimo paradoxal? Elenco algumas suposições: um curso de escrita criativa tem objetivos práticos e resultados (palavra em alta) quase imediatos, acredita-se, orientando além disso os primeiros passos do novo escritor no mercado editorial. Já a proposta do clube de leitura, ao reunir os amantes da literatura em torno de certas obras, é revelar, por meio de discussão guiada geralmente por um especialista, os diferentes aspectos da criação literária, destacando sobretudo a sua dimensão semântica.
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Parece-me interessante levar em conta que muitos dos que hoje ministram os cursos de escrita e orientam os clubes de leitura passaram em algum momento pelas cadeiras da academia, graduando-se em Letras ou fazendo pós-graduação nessa área.
Compreenderemos melhor esses três ambientes – faculdade de Letras, curso de escrita criativa e clube de leitura – se acompanharmos as discussões propostas por Sérgio Rodrigues em sua última publicação.
PAPEL DA LEITURA
“Escrever é humano” vai muito além de dar dicas de escrita para quem deseja se aventurar na carreira de escritor. Rodrigues não escreveu um simples manual, mas reflete seriamente sobre o conceito de literatura, destacando o papel da leitura e do mercado na circulação de obras.
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Para o escritor, “o que torna mais difícil o trabalho literário é o fato de que ele se funda antes de mais nada na própria linguagem. Isso consegue ser ao mesmo tempo uma obviedade e uma espécie de segredo de quem escreve”. Paul Valéry, no século passado, já afirmava que “uma reflexão simplíssima nos leva a pensar que a literatura é, e só pode ser, um tipo de extensão e aplicação de certas propriedades da linguagem” (tradução de Pedro Sette-Câmara).
Mas, prossegue Rodrigues, “na quase totalidade das vezes, é com o dito conteúdo das histórias que a leitora estabelece relações intelectuais e afetivas”. É também, como afirma, em torno desse conteúdo que se baseiam, quase exclusivamente, as resenhas e reportagens sobre o livro. Parece-me que o que há é uma certa confusão com o termo resenha, que vem sendo confundida com resumo de livro. Vista dessa forma, a resenha acaba, a meu ver, empobrecendo a obra, a qual se fecha nela mesma sem nenhuma conexão com o mundo exterior, com outras obras...
FORMA E CONTEÚDO
Rodrigues não nega que o conteúdo seja relevante, mas destaca que a forma também o é, pois ambas “desenham uma cifra indivisível na imaginação de quem lê”.
A certa altura, a autor de “O drible” faz também uma crítica bastante humorada à escrita mal elaborada que, pretendendo ser “arte literária”, acaba apenas reproduzindo clichês. E não há nada pior, avalia ele, do que “lugares-comuns vocabulares” que “são potencialmente catastróficos para a credibilidade de um texto”. A menos, é claro, acrescento eu, que os clichês sejam usados intencionalmente pelo escritor, como o faz, por exemplo, Eugène Ionesco, visando, no seu caso, a denunciar a banalidade das falas cotidianas.
Mas quem pode dizer se um livro é bom ou não? Diz Rodrigues que, quanto mais livros um leitor ou leitora (o autor usa o feminino, já que, segundo ele, são as mulheres as que mais leem ficção no Brasil) conhecerem, mais facilmente identificarão a boa escrita. Se poderão dar sua opinião livremente, essa é uma outra questão.
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A autoficção, em alta nos dias de hoje, não é ignorada em “Escrever é humano”. Rodrigues acredita que “o papel central do ‘eu’ nas redes sociais e o enfraquecimento do sentimento comunitário são dois fatores que parecem estar por trás do peso desproporcional dado por nosso tempo ao lugar vivido na literatura”. Embora existam “excelentes obras feitas nessa praia”, ele “teme que a supervalorização da experiência como moda cultural, com o menosprezo à imaginação, que vem junto, limite de modo severo o cardápio daquilo que a literatura pode alcançar”.
A propósito, o escultor Richard Serra ofereceu aos criadores o seguinte conselho: “se você realmente quiser diferenciar o seu trabalho do de todo mundo, toda vez que chegar a uma bifurcação na estrada, não pense sobre qual rumo tomar; automaticamente, escolha o caminho mais difícil. Todo mundo está escolhendo o mais fácil” (tradução de Alice Sant’Anna).
Sobre o mercado, Rodrigues afirma que “profissionalismo” tem a ver com dar “o que o ‘mercado’ quer”, mas depende também de onde o escritor quer chegar. “Escritores malditos”, prossegue, se ressentiriam do sucesso (financeiro também) dos outros. Mas diria que esse sentimento negativo pode ser uma via de mão dupla: escritores “profissionais”, por mais festejados que sejam, se ressentiriam também do fato de seus livros quase sempre serem considerados apenas best-sellers e não obras-primas literárias.
E os robôs? Em “Escrever é humano”, eles são apenas coadjuvantes. Nem poderia ser diferente, pois o que fundamenta o livro são reflexões e essas são demasiadamente humanas.
"Escrever é humano: como dar vida à sua escrita em tempo de robôs"
• De Sérgio Rodrigues
• Companhia das Letras
• 200 págs.
• R$79,90
• O autor lança o livro em BH nesta terça (30/9), às 19h, na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241 – Savassi), como parte do projeto República Jenipapo, no qual debaterá a obra com a historiadora Heloisa Starling e a escritora e jornalista Virgínia Starling. Entrada franca.
*Autora, entre outros, de “Interferências: censura, apagamento e outros temas contemporâneos” (No prelo, Iluminuras).