Tilly Norwood é o nome do problema
Atriz criada com uso de ferramenta de inteligência artificial levanta onda de protestos e preocupação com o futuro da indústria em Hollywood
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A aparição da atriz Tilly Norwood nas últimas semanas causou alvoroço em Hollywood. Com pouco mais de 20 anos, branca, cabelos castanhos, Tilly é sociável, comunica-se com naturalidade e demonstra sensibilidade ao observar o mundo.
Em seu site, há fotos de divulgação e portfólio e, no Instagram, ela acumula quase 60 mil seguidores. Agentes da indústria cinematográfica até já demonstraram interesse em contratá-la. Tudo normal, não fosse um único detalhe: Tilly Norwood foi criada por inteligência artificial.
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Responsável pela “artista artificial”, a empresa Xicoia, da atriz e produtora holandesa Eline Van der Velden, apresenta-se como o “primeiro estúdio de talentos com inteligência artificial do mundo”. Ao apresentar Tilly Norwood no Zurich Summit, conferência que integra o Festival de Cinema de Zurique, a fundadora da Xicoia afirmou que Tilly foi digitalmente criada para ser “a próxima Scarlett Johansson ou Natalie Portman”.
A declaração soou como um terremoto em Hollywood, provocando pânico, indignação e críticas contundentes de nomes importantes da indústria e do principal sindicato dos atores, o SAG-AFTRA. Emily Blunt, Whoopi Goldberg e Melissa Barrera são algumas das estrelas que se posicionaram publicamente contra Tilly.
“Nojo”
Barrera disse sentir “nojo” da situação e ensaiou o início de um boicote ao projeto da Xicoia em suas redes. “Espero que todos os atores representados por uma agência que fizer isso [substituir atores reais por avatares gerados por inteligência artificial] deem o fora [da agência que os representa]”, publicou a mexicana.
Já o SAG-AFTRA afirmou em nota que Tilly não é uma atriz, e sim “uma personagem gerada por um programa de computador treinado com base no trabalho de inúmeros artistas profissionais – sem permissão nem remuneração”, acrescentando que o projeto da Xicoia manipula obras de atores reais para criar algo sem consentimento.
A discussão a respeito da apropriação do trabalho humano, sobretudo o uso de material com direitos autorais para treinar modelos de inteligência artificial sem consentimento, foi um dos motivos da greve conjunta de atores e roteiristas em 2023, que paralisou a indústria cinematográfica dos EUA.
Acordos foram firmados para proteger os profissionais de terem seus trabalhos usados para treinar inteligência artificial sem consentimento, embora existam brechas que permitem, por exemplo, o uso de figurantes não-humanos.
Riscos
Os críticos ao projeto da Xicoia afirmam que uma eventual ascensão de “artistas virtuais” aumentaria o poder de barganha das produtoras e dos estúdios, além de representar riscos para toda uma cadeia produtiva de profissionais essenciais dos bastidores – entre eles, maquiadores, cabeleireiros, figurinistas e produtores.
Eline Van der Velden, no entanto, se defendeu. Nas redes sociais, ela publicou: “Para aqueles que expressaram indignação com a criação da nossa personagem de inteligência artificial, Tilly Norwood: ela não é uma substituta para um ser humano, mas uma obra criativa – uma obra de arte. Como muitas formas de arte anteriores, ela desperta debates – e isso, por si só, demonstra o poder da criatividade”.
Segundo a atriz e produtora holandesa, projetos semelhantes a Tilly Norwood podem baratear as produções em até 90% e, em vez de substituírem os humanos, constituiriam outro gênero, como as animações e o teatro de fantoches.
Terceira via
Existe, no entanto, uma terceira via dentro dessa discussão. E é justamente o que James Cameron (diretor de “Titanic” e “Avatar”) vem defendendo há tempos, antes mesmo do surgimento de Tilly Norwood. Para ele, o uso da inteligência artificial é válido – desde que não substitua os atores –, sendo força de inovação criativa e um “passo inevitável” no desenvolvimento do cinema.
“Eu passei a minha carreira buscando tecnologias emergentes para testar os limites do que é possível ao contar histórias”, disse o cineasta, em comunicado enviado à imprensa há dois meses. “A interseção entre inteligência artificial e CGI [imagens geradas por computador] é a próxima onda e vai permitir que artistas contem histórias de maneiras nunca imaginadas.”
No Brasil, a situação não chega a ser tão extrema quanto nos EUA e nem as discussões tão acaloradas, mas isso não quer dizer que não exista debate semelhante por aqui. No Rio de Janeiro, o NKanda 360 abriu as portas em julho com o objetivo de ser o primeiro estúdio especializado em pós-produção com inteligência artificial.
De acordo com as fundadoras Carien Bastos e Fernanda Thurann, o NKanda 360 pretende melhorar a qualidade de finalização de filmes, séries e comerciais com inteligência artificial, tendo a ferramenta como uma nova forma de expressão, que serve para expandir o mercado, e não para substituir setores específicos.
O projeto inaugural do estúdio é o longa “Amantes”, dirigido pelo colombiano Máncel Martínez e protagonizado por Fernanda Thurann. Será o primeiro longa-metragem brasileiro com mais de 30% de finalização realizada com inteligência artificial.