Livro transforma a dor de um pai na história do flagelo palestino
‘Um dia na vida de Abed Salama’ mostra acidente de trânsito com veículo escolar que matou sete como exemplo dos entraves à vida dos palestinos na Cisjordânia
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Em fevereiro de 2012, o palestino Abed Salama se despediu do filho Milad. O menino de 5 anos partiu em uma excursão escolar na Cisjordânia – da qual nunca voltou. Seu ônibus sofreu um acidente perto de Jerusalém. Milad, outras cinco crianças e um professor morreram.
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O jornalista americano Nathan Thrall reconta essa história em“Um dia na vida de Abed Salama” (2023), premiado no ano passado com o Pulitzer de não ficção. É, a princípio, uma curiosa escolha de tema. Há décadas, a vida dos palestinos na Cisjordânia, na faixa de Gaza e em Israel inclui tormentos em escala maior do que um acidente de ônibus.
Esse é, porém, o mérito do livro: Thrall, que vive há mais de 20 anos em Israel, parte daquele desastre singular para demonstrar que o Estado israelense e as suas disputas com os palestinos se infiltram nos menores aspectos cotidianos, com resultados trágicos.
Bloqueios à circulação
Israel ocupa a Cisjordânia desde que venceu a Guerra dos Seis Dias em 1967. Sob a justificativa da segurança, impõe bloqueios à circulação de palestinos. Desafiando os protestos da comunidade internacional, Tel Aviv constrói assentamentos nos territórios da Palestina.
Os chamados Acordos de Oslo, de 1993, dividiram a Cisjordânia em três áreas: uma sob controle israelense, outra sob controle misto e a última sob controle palestino. Na prática, os acordos resultaram na formação de um arquipélago de pequenos territórios palestinos sem conexão entre si.
É nesse contexto que Thrall encaixa a tragédia de 2012. O jornalista sugere que o ônibus que levava as crianças para a excursão escolar teve de fazer um desvio – passando por um trecho abandonado da estrada conhecido por acidentes – devido a bloqueios israelenses.
Thrall também mostra que os labirintos administrativos atrasaram o resgate das crianças em meio às chamas do ônibus. Ambulâncias palestinas não puderam passar a tempo. Mais próximas do local, as autoridades israelenses tardaram em se mobilizar para salvar os palestinos.
Busca por informações
O escritor narra a dor de um pai que, ao saber do acidente, tem que percorrer hospitais – desviando inclusive de controles israelenses – para encontrar informações sobre o filho.
A reportagem é uma acusação explícita contra as políticas do primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu e a geografia da ocupação da Cisjordânia. Thrall provê material para uma discussão cada vez mais urgente, diante da crescente pressão internacional por uma resolução à questão palestina.
O livro é também um relato sobre uma economia de vidas em que alguns têm mais valor que os outros – uma ideia que o filósofo Achille Mbembe descreve no seu trabalho como “necropolítica”. Thrall relata, por exemplo, que alguns israelenses não apenas atrasaram o resgate, mas chegaram a celebrar as mortes.
Thrall não limita suas críticas a Israel. O jornalista investiga também os fracassos das lideranças palestinas nas últimas décadas, que contribuíram para a situação atual. Da leitura do texto, fica a impressão de que a população civil da Cisjordânia é vítima de mais de um algoz.
Apesar de toda essa potência jornalística, o livro carece de lirismo. O tom informativo e a enorme quantidade de informação sufocam o texto. Thrall explica até demais as minúcias da política israelense e palestina. Falta alguma emoção para um livro sobre a trágica morte de uma criança de 5 anos.
De todo modo, a mensagem é clara. Thrall consegue transformar um difícil dia na vida de um pai em um exemplo da dificuldade de milhões na região. Descreve dois mundos separados por muralhas – um israelense e um palestino – e mostra como o sangue de um transborda dentro do outro. (Diogo Bercito)
“UM DIA NA VIDA DE ABED SALAMA”
• De Nathan Thrall
• Tradução: Daniel Turela Rodrigues
• Editora Zahar
• 296 págs.
• R$ 89,90 ; R$ 39,90 (ebook)