ARAXÁ (MG) – Quando quer ser direta e incisiva, a escritora camaronesa Léonora Miano, de 52 anos, opta por escrever ensaios – como fez em "O oposto da branquitude: Reflexões sobre o problema branco" e "A outra língua das mulheres", ambos lançados agora no Brasil pela Pallas Editora. “Mas a maior parte do que faço é ficção. São romances e peças”, afirma ao repórter.
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Vencedora do Prêmio Goncourt ("Contornos do dia que vem vindo", 2006), do Prix Femina e do Grand Prix du Roman Métis ("A estação das sombras"), Léonora está no Brasil para uma série de compromissos relacionados aos lançamentos de seus livros. Esteve na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e no Festival Artes Vertentes de Tiradentes, em setembro, e ministrou palestras em São Paulo e Salvador ao longo da semana. Nesta sexta-feira (3/10), participou do 13º Festival Literário Internacional de Araxá (Fliaraxá), ocasião em que conversou com a reportagem.
A escritora é hoje um dos nomes mais instigantes da literatura francófona. Radicada na França desde a juventude, construiu uma obra que cruza romance e ensaio, sempre atravessada pela memória colonial, diáspora africana e o corpo feminino negro.
Se em seu romance de estreia, "L’Intérieur de la nuit" (“O interior da noite”, em tradução livre, ainda não publicado no Brasil), de 2005, Léonora narra a história de uma jovem africana que retorna à sua terra natal após estudar na França, em "A estação das sombras" ela aborda o início da escravidão no continente africano e os impactos da colonização.
Em "Contornos do dia que vem vindo", traz a história de um jovem que, após ser rejeitado por sua mãe, retorna ao país africano de seus pais; já em "Vermelho imperatriz", imagina um continente africano unificado, empoderado, mas ainda atravessado por desigualdades.
“Se você for à África francófona hoje, verá que a maioria dos jovens entre 18 e 35 anos fala muito sobre pan-africanismo como forma de empoderar a África, de fazer do nosso continente uma superpotência em um novo mundo”, comenta Léonora.
Léonora Miano participou de mesa-redonda na 13ª edição do Fliaraxá, na sexta-feira (3/10)
Diante disso, ela quis escrever um romance que apresentasse uma forma de pan-africanismo sendo realizada e também refletisse sobre o tipo de poder que a África exerceria se fosse poderosa. “Se isso acontece, ela vai querer se vingar da Europa? Vai querer punir os europeus pelo que os antepassados deles fizeram? Que tipo de poder queremos expressar no mundo se nos tornarmos poderosos? Podemos reinventar o poder para que ele seja uma força de emancipação, em vez de uma ferramenta de destruição ou dominação?”, questiona a autora.
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Publicado no Brasil no ano passado também pela Pallas, "Vermelho imperatriz" acompanha Boya, uma professora universitária, e Ilunga, o chefe de Estado fictício de Katiopa. Eles iniciam um romance proibido que ameaça se tornar uma questão de Estado, em meio a tensões políticas e sociais – incluindo a presença de migrantes europeus conhecidos como "Sinistrés", que buscam refúgio em Katiopa após o declínio da Europa.
Identidade e memória histórica
Léonora recorre ao cenário afrofuturista para refletir sobre poder, identidade e memória histórica. O continente unificado simboliza a realização de um sonho de unidade africana, mas a escritora não pinta um futuro simplista. O poder, mesmo nas mãos de um continente soberano, traz dilemas éticos sobre como lidar com minorias, injustiças passadas e a tentação de repetir padrões de dominação que marcaram a história global.
Além disso, o romance de Boya e Ilunga não é apenas uma história de amor, mas um microcosmo da tensão entre desejo pessoal e responsabilidade pública, ilustrando como decisões individuais podem impactar coletivamente sociedades em transformação. A chegada dos migrantes europeus e o colapso da Europa, por sua vez, funcionam como espelho invertido: a história da África, marcada pelo colonialismo e exploração, é projetada no futuro, mostrando que o passado e suas injustiças nunca desaparecem totalmente, mesmo em um continente poderoso.
“Quando comecei a escrever romances, não tinha consciência da influência da minha história pessoal”, diz Léonora. “Sempre pensei que estava escrevendo algo muito diferente, muito distante da minha própria vida. Mas percebi que eu era obcecada pela história da minha família. Então, todos os meus romances, mesmo que não sejam diretamente sobre minha história, sempre têm algo sobre família. Sempre há algo sobre um relacionamento quebrado entre mãe e filho, ou uma relação complexa com ancestrais que colaboraram com os poderes coloniais, coisas que estão na minha família”, revela.
A autora não tinha planos para um novo romance… até os últimos dias. “Eu estava procurando música para ilustrar um post no Instagram recentemente. Como estava vindo para o Brasil, procurava música brasileira, e encontrei uma canção de uma banda chamada Samba de Dandara”, conta. A música era "Dandaras, filhas de Akotirenes".
“Descobri que Akotirene era o nome de uma líder quilombola, uma mulher. Eu não conhecia. Agora estou obcecada com a história dessa mulher e quero escrever sobre ela”, afirma.
* O jornalista viajou a convite do Fliaraxá