BH: pessoas em situação de rua na Biblioteca Pública dividem opiniões
Presença de moradores em barracas e de cães chama a atenção de frequentadores e funcionários da Biblioteca Pública, na Praça da Liberdade
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Siga noA presença de pessoas em situação de rua na sede da Biblioteca Pública de Minas Gerais, na Praça da Liberdade, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, chama a atenção de frequentadores e turistas e reacende, mais uma vez, o debate sobre o atendimento a esse contingente da população. Vídeos que circularam em grupos de aplicativos de mensagens mostram uma pessoa apenas de roupas íntimas enquanto troca de roupa e uma fogueira que teria sido acesa nos jardins, logo abaixo de onde está localizada a Coleção Mineiriana, que faz parte das Coleções Especiais da Biblioteca Pública Estadual.
Funcionários do local mostram-se preocupados com a integridade do imóvel e o comprometimento das atividades, especialmente com as crianças. Segundo uma funcionária que não quis se identificar, o fogo poderia colocar as obras em risco. Ela também afirma que o alto número de barracas estaria inviabilizando os trabalhos.
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Outro vídeo, divulgado no Instagram pelo perfil do grupo Marias Bonitas de Lourdes. mostra as barracas, cachorros e pombos através das janelas. “A Biblioteca Pública Estadual está sendo esquecida. Mas nós não vamos nos calar. O que já foi um espaço de conhecimento, cultura e encontro virou cenário de abandono, insegurança e descaso”, diz a legenda da postagem.
O registro divulga também uma petição pública que solicita “melhoria na limpeza e segurança; ação de equipes de assistência social com acolhimento para as pessoas em situação de rua; banheiros monitorados, com regras claras de acesso; e programações culturais que devolvam vida, leitura e cidadania ao espaço”. A iniciativa acumula 2.818 assinaturas até o momento de fechamento da matéria.
O Marias Bonitas também enviou cartas para os governos estadual e municipal, solicitando um posicionamento e ações a curto prazo. Nessa segunda-feira (21/07) foi realizada uma reunião entre o grupo e a Secretaria Municipal de Cultura, porém, segundo Clarissa, a resposta foi “evasiva”. “A gente não vai desistir. Não tem um ambiente seguro na Biblioteca, não tem um detector de metal, uma catraca, uma identificação. Isso que nos motivou a fazer todas essas ações”, afirmou Clarissa Vaz, fundadora do grupo.
Convivendo lado a lado
Uma equipe do Estado de Minas visitou a biblioteca e constatou a presença de pelo menos doze pessoas em situação de rua no local. Dois cachorros adultos andavam pelo jardim, recebendo alimentos oferecidos por pessoas que passavam pela rua, enquanto alguns filhotes dormiam nas cobertas.
Uma babá, que não quis se identificar, frequentemente leva duas crianças para brincar na brinquedoteca da Biblioteca. Ela relata que às vezes se sente incomodada com a abordagem de algumas pessoas em situação de rua nas proximidades do prédio. “Está complicado. A gente vê de tudo. Já vi tentarem entrar com cachorros e brigaram porque o porteiro não deixou. A gente sente o cheiro deles fumando lá fora e tem relato de outras babás que viram eles tendo relações (sexuais) durante o dia”, conta.
Maria Ivone Marques, de 78 anos, é cearense e mora há dois anos em Brasília. Ela contou que a família faz questão de conhecer as bibliotecas locais das cidades que visitam. Na quarta-feira (16/7) ela, a filha, o genro e três netos, que passavam uma semana na capital mineira, visitaram a Biblioteca Pública e repararam a presença dos moradores em situação de rua na entrada do prédio. Ivone, porém, lançou um outro olhar sobre o grupo. “Me chamou a atenção que um deles estava lendo. A Biblioteca não poderia ter um programa assim? De incentivar a leitura e, para os que não sabem ler, alguém ler para eles. Esse passar de tempo lendo não daria uma concepção de vida melhor?”, questiona.
Ela diz que percebeu um aumento da população em situação de rua não apenas em BH, mas em Brasília e Fortaleza também, de forma que a solução deve ser sistemática: “A vida deles é muito difícil. Eles certamente não tiveram o que nós tivemos. Então, esse problema precisa de uma resolução mais ampla, não é só dar comida e banho”.
Refúgio na cidade
Entre idas e vindas pela cidade, há dez anos Leandro Alcântara Laureano, de 49 anos, se estabeleceu no jardim da biblioteca. “Aqui é um lugar seguro, bonito, um lugar de cultura, onde podemos usufruir do banheiro e do computador do anexo. Quase diariamente eu uso o computador para estudar, pesquisar e me divertir também, assistir vídeo no YouTube”, conta.
Laureano cresceu em uma creche em BH. A mãe o visitava esporadicamente, até que, antes de completar dez anos, fugiu, passou um tempo nas ruas, foi apreendido e enviado para a Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Febem). Quando completou dezoito anos, conseguiu um emprego como cozinheiro, casou e teve uma filha. Entretanto, não conseguiu manter a estabilidade em meio ao consumo de drogas e álcool.
Leandro estudou até a quinta série do ensino fundamental. Hoje busca concluir seus estudos por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e voltar a trabalhar como cozinheiro. Segundo ele, a relação com os funcionários e visitantes da Biblioteca Pública é controversa: “Tem alguns que nos cumprimentam, outros se sentem inseguros, incomodados com nossa presença. Mas se tivessem um programa ou uma alternativa, não teria ninguém aqui. A Biblioteca tem um peso, poderiam fazer um pouco mais para nos ajudar”.
“Para mim, chamou a atenção que um deles estava lendo. A Biblioteca não poderia ter um programa assim? De incentivar a leitura e, para os que não sabem ler, alguém ler para eles? Esse passar de tempo lendo não daria uma concepção de vida melhor?”
Maria Ivone Marques
Turista cearense
Ele explica que quem vive nas ruas enfrenta diversos desafios, entre eles a desumanização. Por isso, além de doações de comida e roupas, um “olá” pode fazer muita diferença. “Uma mãe que passa com uma criança poderia explicar que alguma coisa colocou a gente aqui. Tem gente na rua que é do bem, que está ali porque não tem outro jeito. O medo só afasta. Já houve conflito entre nós, mas nunca com os visitantes da Biblioteca”, afirma Leandro.
Um problema complexo
De acordo com os últimos dados disponíveis do Censo da População adulta em Situação de Rua – BH+ Inclusão, realizado pela Faculdade de Medicina da UFMG em 2022 e apresentado em junho do ano passado, foram identificadas 5.344 pessoas vivendo nas ruas da capital. Os dados ainda mostram que 84% dessa população é composta por homens com média de idade de 42,5 anos, enquanto as mulheres representam 16% e têm em média 38,9 anos.
Rafael Roberto, coordenador do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), afirma, porém, que esse grupo triplicou nos últimos três anos. “O aumento não está só na biblioteca, mas em toda a cidade. Sabemos que já ultrapassamos 15 mil pessoas em situação de rua. E muitas vezes essas pessoas estão preferindo dormir na rua do que dormir nos abrigos”, diz.
Segundo Rafael, há poucas vagas nos abrigos que se concentram na Região Central de BH. O público enfrenta dificuldades como a presença de percevejos, violência e questões territoriais entre diferentes grupos. Uma vez que a maioria dos abrigos são divididos por gênero e não aceitam animais, também há aqueles que preferem ficar nas ruas para ficar junto dos companheiros ou animais de estimação.
Nataly Michele, que atualmente se encontra na Biblioteca Pública, afirma que viveu uma situação traumática no abrigo. Ela é natural de Caratinga (MG), no Vale do Rio Doce, e foi colocada para fora de casa pelo pai por se assumir como uma mulher trans.
“Quando cheguei em BH, fui no abrigo, mas tentaram me estuprar, então, não sinto confiança em ir para lá. Aqui na Praça da Liberdade tem menos violência do que qualquer outra parte da cidade”, diz Nataly. “Estou tentando me inscrever nos programas da prefeitura para poder sair da rua, mas está difícil. Podiam enxergar a gente, lembrar que somos gente. Só mandam autoridades aqui para levar nossas coisas e nos expulsar”, completa.
“Tem alguns que nos cumprimentam, outros se sentem inseguros, incomodados com nossa presença. Mas, se tivessem um programa ou uma alternativa, não teria ninguém aqui. A Biblioteca tem um peso, poderiam fazer um pouco mais para nos ajudar”
Leandro Alcântara Laureanos
Um das pessoas que estão no jardim da Biblioteca
O coordenador do MNPR acredita que as políticas públicas não estão dando conta do problema e que a solução está em intervenções mais humanizadas e trabalhadas de forma intersetorial para devolver autonomia e o protagonismo desse público. Para ele, cinco frentes devem andar de mãos dadas: habitação, assistência social, saúde, segurança alimentar e o trabalho. Rafael é defensor das políticas habitacionais, como a recente conquista da reserva obrigatória de 3% das unidades habitacionais do programa Minha Casa, Minha Vida , na modalidade Fundo de Arrendamento Residencial, para pessoas em situação de rua em 38 municípios brasileiros, incluindo todas as capitais.
“Quando a pessoa fica muito tempo na rua, ela vai adoecendo e acaba usando algumas substâncias para poder suportar aquela situação. Quanto mais tempo ela fica na rua, mais difícil é para ela sair. Então não é só você tirar a pessoa da rua, você tem que tirar a rua da pessoa também”, diz Roberto.
Ele destacou ainda a importância dos Centros de Referência em Saúde Mental Álcool e Drogas (Cersam AD) e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e defendeu a ampliação do atendimento nas enfermarias. “Escutar o outro faz toda a diferença para uma pessoa que há muitos anos está ali sem ser escutada, sem ser enxergada. Este pode ser o início para trabalhar uma ressocialização”, explica.
Direito e dignidade
Ao Estado de Minas, a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult), responsável pela Biblioteca Pública de Minas Gerais, informou que a Constituição Federal garante o direito de ir e vir, bem como a dignidade da pessoa humana, de modo que não é permitida a remoção forçada de pessoas em situação de rua de espaços públicos, salvo em casos excepcionais e mediante decisão judicial ou ações articuladas com foco em acolhimento e proteção social. “A Biblioteca Pública mantém seu papel institucional de acesso ao conhecimento, leitura e cidadania, sendo um equipamento cultural público aberto a todos”, disse a Secult por meio de nota.
A secretaria afirmou que a Coleção Mineiriana está preservada e que não houve perda motivada por fogueiras acendidas no jardim externo. A pasta não comentou sobre a possibilidade de implementação de programas de acolhimento e integração para pessoas em situação de rua na Biblioteca Pública.
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A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), ressaltou que adota uma série de medidas voltadas para atendimento das pessoas em situação de rua. “Nos últimos anos, a PBH reconheceu essa pauta como prioritária, ampliando e qualificando a oferta de serviços em várias áreas de atuação, como habitação, saúde, educação, trabalho e emprego”, diz. O Executivo informou também que enviaria uma equipe do Serviço Especializado de Abordagem Social ao local para avaliar a situação e realizar os primeiros atendimentos ainda nesta semana.