Cinco décadas após escapar da morte sob os escombros do Parque da Gameleira, onde atualmente funciona o Expominas, Odilon Fernandes Heredia morreu nesta terça-feira (1º/7), aos 96 anos, sem receber a reparação pela tragédia que marcou sua vida e a história do país.
Ele era um dos sobreviventes de um dos maiores acidentes trabalhistas do Brasil — o desabamento de um pavilhão do Parque de Exposições Bolivar de Andrade, mais conhecido como Parque da Gameleira, na Região Oeste de Belo Horizonte, ocorrido em 1971.
No dia do desabamento, em 4 de fevereiro de 1971, 512 trabalhadores haviam batido cartão. Era uma quinta-feira. Às 11h45, houve um estrondo e a estrutura monumental, projetada por Oscar Niemeyer, veio abaixo. Ao todo, 69 corpos foram retirados dos escombros depois da queda de uma laje de quase 10 mil toneladas, como relatou o Estado de Minas na época.
Os registros oficiais não incluem os que morreram depois, nos hospitais. Os feridos, ao menos cem, ficaram com cicatrizes visíveis e outras tantas invisíveis. Muitos tiveram que amputar braços e pernas para serem resgatados pelos bombeiros dos escombros.
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Odilon foi um dos sobreviventes. Servente de pedreiro, com 33 anos na época, ele havia acabado de almoçar e procurava um canto para descansar antes de retomar o serviço. Mal viu quando tudo ruiu. Só acordou dias depois, internado no Hospital Santa Rita, em Contagem, na Grande BH, com a cabeça enfaixada e 12 pontos no couro cabeludo, depois que uma viga o atingiu na cabeça. “Contaram-me que eu estava caído, desmaiado, no limite de onde tudo desabou”, disse em entrevista ao EM quatro décadas depois do acidente, aos 80 anos.
Já aposentado e vivendo com um salário mínimo no Barreiro, ele contou sua história à reportagem. Lembrava do estrondo, do cheiro de poeira e sangue. E também do abandono. “Pelo tempo que tem, já era para ter saído, né?”, disse à época, sobre a ação judicial movida em 1984, da qual fazia parte com outras 52 pessoas, movida ontra Estado e construtora responsável pela obra, a Sergen Serviços Gerais de Engenharia S.A., então contratada pela Companhia de Desenvolvimento Urbano de Minas Gerais, estatal extinta que, hoje, teria sua função equivalente à da Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemge).
Morreu, sem nunca ter visto a indenização. Nem ele, nem muitos outros. A estimativa dos advogados das famílias é que 19 vítimas e parentes de parte dos 69 mortos e 50 feridos, reconhecidos pelo Estado de Minas Gerais e pela empresa responsável, nem sequer procuraram a Justiça para viabilizar os cálculos de recebimento da indenização, conquistada em 2016. Até hoje, o caso se delonga na Justiça.
O advogado responsável pelo caso de Odilon e de outras quatro famílias, Fernando Bento de Araújo, recebeu a notícia da morte com muita tristeza e indignação. Isso porque, segundo ele, mesmo que a indenização seja um direito constitucional de todos as vítimas da tragédia, “foi negada até seu último suspiro”. Conforme relatado por ele, o idoso, que teve sequelas depois do acidente e não pôde mais trabalhar, teria tido o final de sua vida mais digno caso tivesse sido indenizado.
“Ele [Odilon] não morreu apenas em decorrência do tempo, ele vem de uma família humilde e ele sofreu muito com a falta de dinheiro. Morreu com o peso marcado pela injustiça estatal, com uma reparação que não chegou para ele”, lamenta Araújo. O advogado assumiu, ao lado de um colega, uma das ações movidas por 23 sobreviventes e familiares das vítimas, processo originalmente aberto por Adhemar Nelson Fonseca Ramos. Adhemar faleceu em 8 de agosto de 2017, aos 100 anos, também sem conseguir ver as vítimas indenizadas em seus 46 anos de esforços.
Vítimas ainda à espera
Apesar das evidências técnicas de negligência, imperícia e omissão — comprovadas por perícias anexadas ao processo — o caminho até a responsabilização dos culpados foi uma odisseia. A ação só foi ajuizada em 1984, treze anos depois do acidente, e até hoje nem todas as vítimas e seus familiares receberam a indenização. Em 1987, o processo criminal foi encerrado sem apontar culpados diretos. Apenas dois engenheiros chegaram a ser condenados, em segunda instância.
Em 2004, o governo de Minas foi condenado pela primeira vez a indenizar as vítimas, mas recorreu repetidas vezes. Já em 2006, a segunda instância confirmou a sentença e negou o recurso do estado e da construtora. Em 2009, o caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que, em 2016, também manteve o entendimento e responsabilizou o estado como o contratante da obra, enquanto a Sergen seria uma prestadora de serviços.
A decisão previa indenização por dano moral no valor de R$ 30 mil para cada familiar nos casos de morte e de R$ 25 mil em caso de invalidez. Ficou definida ainda uma pensão devida aos pais dos trabalhadores que eram menores de 21 anos à época do acidente e que morreram no desabamento do pavilhão.
Mas a condenação não levou ao pagamento. A Advocacia-Geral do Estado (AGE-MG) passou a questionar os cálculos. Como resultado, as indenizações nunca chegaram integralmente aos que tinham direito. Agora, segundo o advogado Fernando Bento de Araújo, o prazo para que a sentença do STJ fosse executada, que era de cinco anos, já prescreveu.
Ele diz que a injustiça ocorre, porque o Estado deveria negociar com as famílias, já que a maioria das pessoas são carentes e precisam do dinheiro para viver com dignidade. Alguns dos familiares até morreram no processo que dura mais de 50 anos. Segundo o advogado, o Judiciário fez o possível, dentro do seu papel, e agora a responsabilidade é do Estado.
A reportagem do Estado de Minas questionou ao governo de Minas o motivo da demora para as vítimas conseguirem a indenização, mas, até a publicação desta matéria, não obteve retorno.
Tragédia anunciada
O pavilhão seria inaugurado no fim do mês e os 512 operários trabalhavam em ritmo acelerado para concluir a obra do que seria o maior centro de convenções da América Latina, pensado para celebrar as conquistas de Minas Gerais. O Estado de Minas acompanhou o resgate das vítimas e o drama dos familiares entre os escombros do Parque da Gameleira, em 1971. Na época, a cobertura foi feita pelo EM em conjunto com a TV Itacolomi e o extinto Diário da Tarde.
Uma das causas do desmoronamento seria a falta de condições do terreno para suportar as estruturas necessárias para o empreendimento. Além disso, segundo relatos da época, o então governador Israel Pinheiro tinha pressa, pois pretendia entregar a obra antes do término de seu mandato, em 15 de março daquele ano. Ignorando a opinião de operários, que alertaram os engenheiros sobre fissuras e estalos nos alicerces, foi dada ordem para a retirada das vigas de sustentação.
Um operário, Antônio Miranda de Souza, 30, relatou à reportagem o instante da queda: “Tirei a última escora e, de repente, ouvi um estrondo. Tudo veio abaixo.”, diz a reportagem da época. A manchete do EM no dia seguinte à tragédia cravava: “Na Gameleira, o acidente esperado.” Dias antes, o jornal mostrou que a obra vinha sendo acelerada, para que fosse inaugurada mais rapidamente. Além das vítimas contabilizadas, suspeitava-se que muitos operários teriam ficado soterrados e não tiveram seus corpos resgatados.
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Diversos laudos periciais, incluídos no processo judicial, apontaram ainda a qualidade inferior de material empregado na construção, a falta de atendimento de algumas normas técnicas de engenharia e a utilização de juntas de concretagem defeituosas, entre vários outros problemas.