Na contramão do que aconteceu no cenário nacional, as mortes violentas intencionais de crianças entre 0 a 11 anos dispararam em Minas Gerais entre 2023 e 2024. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que essas vítimas aumentaram de 25 para 38 em um ano, um crescimento de 52%. Uma taxa de 1,3 morte violenta de crianças por 100 mil habitantes, a maior entre todos os estados brasileiros.
Os números foram apurados com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), via Lei de Acesso à Informação (LAI). Em nota, a Sejusp informou que "vem fortalecendo ações de prevenção e redução da letalidade juvenil, sobretudo em áreas de vulnerabilidade social" (leia as ações abaixo).
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No Brasil, ao contrário de Minas, houve redução de 263 para 253 mortes violentas intencionais de crianças dessa faixa etária, portanto uma diminuição de 3,8%.
O anuário também traz dados sobre a população adolescente, entre 12 e 17 anos. Neste cenário, Minas também apresenta crescimento: de 118 mortes violentas intencionais em 2023 para 128 no ano passado, aumento de 8,4%.
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Já o dado nacional, ao contrário do que acontece no recorte das crianças, apresenta alta no quesito voltado aos adolescentes: de 2.036 mortes violentas em 2023 para 2.103 no ano passado, uma alta de 3,2%. Portanto, mesmo em crescimento, a média nacional é inferior à ascensão mineira.
Mestre em saúde pública, pedagoga e especialista na prevenção de violências, Maria de Lourdes Magalhães aponta que melhorias recentes em políticas públicas, a nível federal, podem influenciar no aumento de casos em Minas.
"A implementação de estratégias de ações intersetoriais e mais investimentos na capacitação de profissionais de forma articulada podem ser uma das explicações para o aumento das denúncias. A sociedade não tolera mais a violência contra crianças e, consequentemente, há aumento das notificações de casos. Em geral, é um crime subnotificado, principalmente quando os profissionais não são capacitados" diz.
Doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Cauê Martins aponta, na íntegra do anuário, possíveis causas para o problema a nível nacional. "Esse avanço foi impulsionado, sobretudo, pelas mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP). Em 2023, as MDIP correspondiam a 16,6% das mortes violentas de adolescentes. Em 2024, o percentual foi de 19,2%", diz.
O especialista chama atenção para o fato das mortes violentas de crianças e adolescentes seguirem uma tendência inversa às da população em geral, considerando o cenário nacional. Enquanto os homicídios intencionais de menores aumentaram 2,4% no Brasil, o mesmo critério apresenta queda de 4,9% para todas as faixas etárias. Ou seja, uma diferença de 7,3 pontos percentuais.
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Em Minas Gerais, o resultado apurado é ainda pior que o brasileiro. Enquanto as mortes violentas da população geral cresceram 5,3% (acima da média nacional), as de crianças e adolescentes (somadas) dispararam 16%. Uma diferença de 10,7 pontos percentuais.
"O homicídio doloso, responsável por 1.910 mortes a nível nacional, corresponde a 81% das mortes violentas de crianças e adolescentes, mantendo-se como sua principal causa. As mortes decorrentes de intervenção policial somaram 407 vítimas nacionalmente, sendo a segunda principal causa, com destaque para os 404 casos entre adolescentes", escreve Cauê Martins, sociólogo da USP, no anuário divulgado quinta-feira.
Edinalva Severo, consultora do Movimento Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária, aponta duas hipóteses para o crescimento de mortes violentas intencionais entre crianças e adolescentes em entrevista ao Estado de Minas.
“A primeira delas é a cultura da violência, que ainda está muito presente nas famílias. É o bater para educar. Muitos pais se acham donos das crianças e do corpo delas. Por isso, a violência sexual entre esses menores vulnerabilizados também é comum”, diz.
“O segundo fator passa diretamente pela ação das polícias em comunidades pobres, porque ninguém chega atirando em condomínios. Há uma radicalização à moda ‘primeiro atira, e depois pergunta’. Isso afeta, principalmente, os adolescentes”, completa a pesquisadora.
Perfis diferentes
Cauê Martins, da USP, ressalta a diferença nos perfis das mortes violentas entre crianças e entre os adolescentes. O cenário é, praticamente, inverso no âmbito nacional. "Acerca do local do crime, para as crianças, metade das mortes ocorre dentro de casa (50,7%), endossando o forte caráter de violência doméstica e intrafamiliar. Já entre os adolescentes, o cenário se inverte: 64,3% das mortes acontecem em via pública, evidenciando o envolvimento desses jovens em contextos de violência urbana", escreve no anuário.
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Dessa maneira, a especialista Edinalva Severo destaca os principais sinais para que uma pessoa próxima consiga ajudar a criança e o adolescente vítima de violência, antes que o pior aconteça.
“O principal a ser observado é a mudança de comportamento da criança e do adolescente. São alterações muito diversas, mas quem conhece aquela vítima sabe quando aquela pessoa demonstra medo. Nas situações de violência intrafamiliar, há uma série de fatores: a criança faltosa na escola, retraída e/ou com dificuldade de aprendizagem. São sinais de vulnerabilidade”, afirma.
O que diz o governo
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp-MG) citou algumas iniciativas de proteção à criança e o adolescente em seu posicionamento. Entre elas, está o Fica Vivo, programa voltado a adolescentes e jovens entre 12 e 24 anos. Houve uma ampliação no serviço: de 18.879 atendimentos em 2021; para 123.690 no ano passado, segundo o governo, alta de 555%.
Outra iniciativa citada é o Programa Se Liga!, "que acompanha adolescentes egressos do cumprimento de medidas socioeducativas". Foram 1.342 atendimentos no ano passado, uma diferença de 162% para 2021, quando 512 jovens receberam o serviço.
Como denunciar?
Para Edinalva Severo, o canal mais efetivo para denunciar a violência contra a criança e o adolescente é o Disque 100, serviço gratuito e confidencial gerido pelo governo federal. “Principalmente em comunidades violentas, onde a sua denúncia pode representar algum risco, é a melhor alternativa”, afirma.
Apesar disso, a pesquisadora destaca que a resposta dada pelo poder público pode ser otimizada, mesmo diante das dificuldades de trabalho ligadas à assistência social no país. “As redes de proteção precisam ser mais ágeis nesse sentido também. Muitas vezes, a denúncia é feita, mas a ação do poder público é lenta. Já tive casos que o relatório saiu em duas semanas. As equipes precisam ser mais céleres”, diz.
Outra alternativa é o Disque 181, ligado à Polícia Civil. O serviço também é gratuito e anônimo. O funcionamento é 24 horas por dia, sete dias por semana. Os conselhos tutelares também são uma opção dentro dos municípios.