MISSÃO NA NATUREZA

Travessia da Serra do Cipó: desafio e aventura por montanhas e cachoeiras

Roteiros na Serra do Cipó têm jornadas árduas entre paisagens quase intocadas, e são cada vez mais buscados por fãs de adrenalina e contato com a natureza

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Jaboticatubas e Santana do Riacho – Depois de um dia de jornada a partir da Portaria Areias do Parque Nacional da Serra do Cipó, mostrado na edição de ontem, a reportagem do Estado de Minas teve o privilégio de pernoitar sob o céu deslumbrante de um dos destinos turísticos mais procurados em Minas Gerais, na Região Central do estado.

No inverno, a noite chega mais rápido e cai repentina no local do acampamento, no planalto conhecido como Lagoa Dourada, em Jaboticatubas. Por isso, as barracas precisam ser montadas antes das 17h.

A escuridão faz a temperatura cair acentuadamente. Os ventos realçam ainda mais o frio, chegando a tombar as chamas da fogueira e a tentar vencer as lonas das barracas. Mas a escuridão traz também recompensas, como um firmamento coalhado de estrelas unidas como nebulosas ou desenhando formações astronômicas, longe da poluição luminosa da cidade.

No dia seguinte, o alvorecer é um espetáculo à parte, quando o Sol consegue vencer a montanha e surgir por trás dela por volta das 8h30 (em época de inverno). Mesmo sem o capim dourado que se dobrava ao vento e caracterizava a região, mas quase desapareceu devido à retirada para artesanato, naquele ponto o Rio Jaboticatubas cuida de oferecer outra visão inesquecível: preenchendo o planalto em largos cursos e com movimento manso, quase imperceptível, faz com que suas águas pareçam os braços de um lago estático. O espelho reflete o céu e replica também a serra rochosa que segue adiante, acompanhando as cabeceiras do rio. Um local paradisíaco, muito apreciado para nadar.

O espetáculo do nascer do Sol no acampamento na Lagoa Dourada antes de um dia de desafios
O espetáculo do nascer do Sol no acampamento na Lagoa Dourada antes de um dia de desafios Mateus Parreiras/EM/D.a Press


Mas o educador e ambientalista Marcelo Rocha, da empresa Eco Vivência, que nos guia desde o primeiro dia nesta jornada, havia reservado outra surpresa. Caminhando poucos passos além do acampamento, o som da água em queda livre faz a imaginação compor uma cachoeira que pelo som parece muito alta. Porém, a Serra do Cipó consegue ser ainda mais esplendorosa do que a criatividade humana. Quando se cruza uma linha de árvores, o terreno se abre em um precipício com mais de 90 metros de altura. Um cânion que engole o Rio Jaboticatubas, formando o que muitos nativos conhecem como Cachoeira da Lili ou Cachoeira da Lagoa Dourada.


Descer margeando essa queda d'água é uma tarefa extremamente perigosa, não recomendada para pessoas sem experiência em trilhas ou escalada e que não estejam com bom preparo físico. O desafio começa pela primeira queda do Rio Jaboticatubas, em um paredão de 10 metros de altura onde o voo de beija-flores orbitando em torno de plantas rupestres inspirou o batismo: Cachoeira das Fadas.


Descendo lajes de rocha plana e escorregadia, cada ranhura é necessária para estabilizar os passos, lentos e calculados. Qualquer escorregão ali pode significar uma queda de dezenas de metros de altura, potencialmente fatal.


Uma fenda entre a montanha e o curso d'água precisa ser transposta primeiro com o caminhante se esgueirando abaixado, rotacionando por dentro da cavidade para depois escalá-la. Uma corda deixada ali para ajudar é recolhida pelo guia Marcelo, que mostra um ponto em que as fibras estavam quase se partindo. Por via das dúvidas, ele sempre tem a própria corda de escalada. Ajuda nessas horas e em caso de socorro para afogamentos.


À beira do penhasco


Transposta a fenda, o caminho passa a ser beirando o precipício, ora sobre rochas desmoronadas, ora por um terreno instável de pedras claras e terra cinzenta, que cede com o caminhar, pedras e solo esfacelado descendo juntos garganta abaixo. Outras três cordas posicionadas no caminho pelo despenhadeiro são necessárias para continuar avançando.


Na segunda delas, a descida precisa ser feita em duas etapas, com o escalador chegando a um pequeno patamar onde alcança a outra corda e muda de guia para prosseguir. São 40 minutos de descida tensa, muito calculada e desafiadora. Cada escorregão, cada pedra que rola faz reavaliar o risco da jornada.
Mas essa preocupação se esvai quando finalmente se atinge o grande lago escuro da cachoeira, alimentado pelo despencar das águas volumosas e constantes do Rio Jaboticatubas. A água é fria, e a cor escura engana, pois o poço é limpo e translúcido se visto de perto.


Sob a queda d’água, grandes blocos de pedra servem de plataforma para o banhista tomar uma ducha gelada. Recarregar as energias para subir novamente é essencial, uma vez que a escalada desfiladeiro acima reserva o mesmo nível de desafio. “Essa é uma atração em que a pessoa precisa ter preparo e técnica. Os riscos envolvidos são reais e há pouco espaço para erros. Mas, para esportistas experientes, esse cânion poderia ser usado para múltiplas atividades radicais, como slackline, rapel, escalada, canionismo...”, afirma o guia Marcelo.

Dia 2/2 - De Lagoa Dourada a São José da Serra 

Travessias como a percorrida pela equipe de reportagem do Estado de Minas em dois dias de jornada pelo Parque Nacional da Serra do Cipó, desde a Portaria Areias até São José da Serra, têm sido cada vez mais procuradas por visitantes em busca de contato com a natureza e aventuras. Em mais uma de suas visitas com os amigos de Belo Horizonte, o arquiteto Frederico Prates, de 44 anos, é um dos que reforçam a vocação da região para passeios e exploração.


“Há muitos anos que a gente anda por aqui e conhece mais do Cipó. Seja com mais ou com menos pessoas. E o que é muito legal são as paisagens monumentais, muito bonitas, com muita água que permite nadar. Dá para curtir bastante. A gente consegue ter uma relação mais introspectiva com a natureza”, afirma. “As dificuldades das trilhas são duras, o deslocamento em ambiente natural não é fácil, mas compensa no final, na hora que a endorfina bate”, descreve o visitante.


Último esforço antes de São José da Serra


Vencidos os principais desafios, o trecho final da trilha é de sete quilômetros, primeiro subindo até o alto da serra, quase entrando novamente no Parque Nacional, e depois em uma descida forte serpenteando montanha abaixo por um caminho de pedras soltas muito instável e merecedor de cuidados para não torcer o tornozelo ou sofrer uma queda. Na chegada, a equipe da Eco Vivência, empresa que nos guiou pelo caminho, providenciou um transporte local para extração da equipe de reportagem.


Destino do fim da travessia, São José da Serra evoluiu de um povoado antigo que foi elevado em 2023 a distrito de Jaboticatubas (a 25 quilômetros do Centro). O grupo de casas desce dos pés da serra e se espalha entre o vale por onde corre o Rio Jaboticatubas. Ao fundo, as montanhas de pedras cinzentas e cerrado amarelado formam um paredão de cenário estonteante.


A Capela de São José (1922) e o cruzeiro (1800) na praça central são marcos do povoado, que já serviu de base e caminho para o gado em curso para as minas e outras regiões das Gerais. A praça em si é um gramado amplo sem meio-fio, só cercado por rochas, rodeada por sobrados e casas de aspecto colonial, com varandas, janelões e portais azuis destacando-se nas paredes brancas, sob coberturas de telhas de barro. Por ali, bois e cavalos soltos perambulam mansos, de pastagem em pastagem, cruzando as ruas. Araras, maritacas e outros pássaros confundem seus cantos em voos ou empoleirados nas árvores.


Mais cachoeiras e um escorregador natural


Se o caminho até São José da Serra é cheio de atrações, opções de passeios por lá mesmo também não faltam, ainda que pagas, como mergulhar na Cachoeira do Senhor Dimas, deslizar no escorregador natural da Cachoeira do Rala Bunda ou se banhar na Cachoeira do Panelaço, entre outras.


À parte dos atrativos naturais, restaurantes, bares, pizzaria e bistrôs aconchegantes aproximam os visitantes da interação com o pessoal local, cheio de histórias e dicas preciosas. Um desses locais é a Bitaca, bar com vista magnífica para o paredão rochoso da serra, onde Bruno Marques (Brunão, para todos) e a sua mãe, a senhora Anita, recebem muito bem os visitantes.


Fica na Avenida das Araras, sem número, na Estrada Principal de São José da Serra e funciona de quinta-feira a domingo, a partir das 18h – mas pode ser que você a encontre aberta em outros momentos. Os pratos principais são sanduíches artesanais e espaguete à bolonhesa, e tem porções e tira-gostos preparados na hora.


Além de dar boas dicas e contar histórias sobre o distrito e a serra, Brunão é também guia local, faz resgate para grupos de trekking, almoço para grupos com agendamento, vivência e cursos relacionados à bioconstrução com ênfase em bambu (contato pelo 31-99090-9124).


Outras travessias na Serra do Cipó


O Parque Nacional da Serra do Cipó tem em seu roteiro de atrações apenas uma travessia oficial, aberta em 2015, do Alto Palácio à Serra dos Alves, mas permite que seis acessos sejam usados para travessias diversas, mas com a necessidade de autorização da administração da unidade e assinatura de termo de responsabilização.


A travessia até a Serra dos Alves percorre 40 quilômetros em cerca de três dias, com dois pernoites, sendo um na Casa de Tábuas e outro nas Casa dos Currais. O percurso atravessa planaltos extensos, serras pontuadas por elevações rochosas e erodidas, com altitudes entre 1.200 metros e 1.400 metros. Atravessa nascentes, rochas com pinturas rupestres e mirantes para os vales abaixo.


A empresa Eco Vivência, que guiou a equipe do Estado de Minas nesta reportagem, tem sido parceira da administração do parque e oferta expedições em troca de trabalho voluntário ao longo dos últimos anos para a unidade, por meio de demarcações, levantamentos e relatórios de suporte que têm ajudado na preservação e na manutenção de roteiros.

  

140 quilômetros de desafios naturais


O Parna Cipó 360° é um grande roteiro oferecido pela empresa de expedições, dividido em seis travessias que se unidas totalizam 140 quilômetros, mas que são também oferecidas divididas em grupos, de junho a novembro. Cada roteiro tem duração de até dois dias, incluindo pernoites em acampamentos selvagens e em meio à montanha, sempre com atrativos de cachoeiras e outras belezas naturais. Nas jornadas, são disponibilizados transporte de ida e volta, logística de acampamento (sem equipamento pessoal), guias especializados, seguro pessoal, orientação sobre equipamentos e kit primeiros socorros.


O primeiro roteiro é o que foi percorrido pela equipe do EM, até São José da Serra. O segundo segue de São José da Serra a Altamira (Cachoeiras das Fadas, da Lili, da Contagem, do Maribondo), totalizando 22 quilômetros. O terceiro sai de Altamira até a Serra dos Alves, por 31 quilômetros, passando pelas cachoeiras das Braúnas, Bocaina, dos Cristais e da Lucy.


A dificuldade aumenta progressivamente: o quarto roteiro vai da Serra dos Alves a Cabeça de Boi, pelas cachoeiras do Bongue, dos Borges, Serra das Posses e do Chiquinho (27 quilômetros). O quinto deixa Cabeça de Boi e segue até o Alto Palácio, passando pelas cachoeiras do Chuvisco, Encantado, Maçã, Macacos, do Espelho, pinturas rupestres e Cânion Vale do Travessão (30 quilômetros em dois dias).


Para finalizar o roteiro que atravessa o parque em 360°, a travessia Alto Palácios até a portaria Areias, sede da unidade, passando pelas cachoeiras do Espelho, Congonhas de cima, Congonhas de baixo, Gavião e Andorinhas (25 quilômetros em um dia).


Para se hospedar na Serra do Cipó


A maior parte das hospedagens da Serra do Cipó é constituída por pousadas, sobretudo no Centro desse distrito do município de Santana do Riacho, a cerca de 100 quilômetros de Belo Horizonte. Bares, restaurantes e bistrôs se espalham ao longo da MG-010, muitos deles com música ao vivo à noite.


Alguns estabelecimentos têm redes estruturadas e podem ajudar o visitante, sobretudo quem chega sem carro ou não quer dirigir. A Pousada Pôr do Sol, dos proprietários Rosária e Wanderson, é um dos que oferecem excelente hospitalidade. Permite que as bagagens fiquem acomodadas antes do check in e por vezes até liberam o acesso mais cedo, se houver disponibilidade, o que é difícil entre hospedagens que trabalham com horários restritos.


O casal também pode intermediar transporte para as diferentes portarias do parque nacional e retorno para quem precisa almoçar ou jantar no restaurante de mesma administração, que oferece comida mineira no fogão a lenha.

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Por dentro da reserva natural


O Parque Nacional da Serra do Cipó foi criado em 25 de setembro de 1984, com abertura oficial em 1997. São 31.617,8 hectares divididos entre os municípios de Itabira, Itambé do Mato Dentro, Jaboticatubas, Morro do Pilar, Nova União e Santana do Riacho. Tem como objetivo a preservação de ecossistemas relevantes, possibilitando pesquisas científicas, atividades de educação ambiental, recreação em contato com a natureza e turismo ecológico.


Com mais de 70 cachoeiras registradas, a gestão é do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Grande parte da região é constituída de formações de quartzito. O relevo é montanhoso, com planaltos limitados por escarpas íngremes, cânions e vales encaixados. A altitude varia de 800 a 1.670 metros.


Está na zona de transição entre os biomas de cerrado e mata atlântica, com vegetação de campos rupestres recobrindo 80% do território. Na flora, destaques para a canela-de-ema-gigante (Vellozia gigantea), espécie símbolo e endêmica do parque, ameaçada pelo fogo, e para as sempre-vivas.


Registros de fauna incluem onça-parda (Puma concolor), lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), rato-de-espinho (Trinomys moojeni, endêmico da Serra do Cipó), o morceguinho-do-cerrado (Lonchophylla dekeyseri) e a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus). Entre os pássaros, chamam a atenção o joão-cipó (Asthenes luizae) e o beija-flor-de-gravata-verde (Augastes scutatus). Há ainda um total de 48 espécies de peixes catalogadas, vários grupos de anfíbios, répteis e invertebrados.


A unidade de conservação protege também sítios arqueológicos com pinturas rupestres que chegam a ter 8 mil anos (tradição Planalto) em locais como no Travessão, na Cachoeira de Congonhas, na Pedra do Elefante, no Curral do Zeca, e na estrada de Lapinha da Serra a Congonhas da Serra, na Lapa da Bocaina 1 e 2, Lapa dos Mines, Lapa dos Veados, Abrigo Congonhas e no Abrigo das Pinturas Negras.


Apesar de ter várias atrações, o parque é constituído em sua maior parte por áreas de visitação controlada ou proibida, que corresponde a aproximadamente 67,63% (21.360,5 hectares). Seu objetivo é a máxima preservação dos ecossistemas e paisagens, sem permitir qualquer forma de visitação, funcionando como matriz de repovoamento para outras zonas.


Serviço

  • Parque Nacional da Serra do Cipó

Acesse o link da unidade no site do ICMBio (www.gov.br/icmbio). Contatos por e-mail ([email protected]) ou ligue pelos telefones (31) 3718-7469/7151/7481/7475.

  • Eco Vivência

Conheça opções de roteiros e serviços pelo site www.ecovivencia.com.br, pelo e-mail [email protected] ou no Instagram (@ecovivencia.oficial). Contato pelo telefone (31) 99647-4945.

  • Pousada Pôr do Sol

Rua Canela de Ema, 51, estrada a 40 metros do Km 99,5 da rodovia MG-010. Fica a cerca de 200 metros da Cachoeira Grande, a 7 quilômetros do Parque Nacional da Serra do Cipó e a 5 minutos de carro do Centro da Serra do Cipó. Contatos pelo e-mail [email protected] ou telefone (31) 98804-3940.

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