LEGISLAÇÃO

Lei dos fogos sem barulho ainda não "pegou" em BH

Sancionada em agosto de 2023 pelo Executivo municipal, norma não é cumprida pela população, para desespero dos sensíveis aos ruídos, sejam humanos ou animais

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Quase três anos após a sanção da Lei Municipal 11.400/2022, que proíbe o manuseio, a queima e a soltura de fogos de artifício com estampido na capital mineira, apenas cinco multas foram aplicadas, segundo dados da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). A norma foi regulamentada em agosto de 2023, e para o Executivo municipal o número de multas está alinhado ao propósito da norma, cujo foco principal não é o caráter punitivo, mas, sim, uma mudança de comportamento por meio da conscientização da população. Enquanto isso, para os diretamente afetados, esta mudança permanece urgente.

É o caso de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), para os quais o barulho dos fogos pode desencadear reações severas, que podem levar horas ou até mesmo dias para passar. É o que relata a psicoterapeuta especialista em autismo, Ana Paula Martins, de 43 anos. Ela explica que o cérebro autista tem dificuldade para filtrar estímulos intensos como os estampidos, o que pode levar a crises prolongadas.

Ana é autista e vive em uma família atípica. O diagnóstico chegou primeiro em 2013, para o filho Pedro Henrique, aos 9 anos. O segundo em 2020, para o filho Rafael, também com 9 anos. Já o marido de Ana foi diagnosticado aos 35 anos e ela, aos 40.

“Muita gente fala: ‘Mas são só alguns minutos de fogos’. Só que o autista desregulado pode levar horas, às vezes dias, para se acalmar. As pessoas não têm noção do sofrimento que isso causa”, afirma Ana Paula.

Segundo ela, os sintomas podem incluir crises de choro, raiva, ansiedade, agressividade, tremores, sofrimento, angústia e medo intenso. “Meu marido, meus dois filhos e até eu mesma temos hipersensibilidade auditiva. Temos a sorte de poder usar abafadores de qualidade e nos refugiar na roça em épocas de festas, mas essa não é a realidade de muitas famílias, o custo desses equipamentos ainda é alto”, diz.

Questionada a respeito de estratégias para proteger as crianças, Ana explica que, além dos abafadores e a conscientização geral da população, os pais devem procurar um tratamento adequado às crianças. “Durante este tratamento é possível trabalhar bem todo o sensorial do paciente, evitando ou amenizando uma desregulação futura”, diz.

Risco à vida dos animais

Os animais também sofrem e, em muitos casos, correm risco de vida. “Na última virada de ano, achei que eu e minha família íamos ter mais sossego. Pensei que com a lei a quantidade de fogos diminuiria. Mas acabou com a minha cachorrinha tendo duas convulsões”, conta Clara Silva, de 27. A engenheira mecânica é tutora da cadela Jude, de 12, que sofre com o barulho dos fogos desde que era filhote.

Clara conta que Jude já chegou a pular na piscina e urinar por toda a casa, devido ao estresse causado pelos ruídos. “Já tentamos de tudo, deixar em ambiente separado, colocar sons que acalmam, mas nenhuma estratégia parece funcionar e é desesperador vê-la sofrer assim”, relata.

No fim do ano passado, ela procurou abafadores de ruído que se adaptassem ao animal de estimação. Em vão. “A gente improvisou com uma joelheira ortopédica, que cabia direitinho na cabeça dela, e tinha um tecido mais grosso. Até funcionou no início, mas, ainda assim, ela sofreu”, explica.

A médica veterinária Izabella Karen Silva, de 28 anos, atua há dois anos no Hospital Veterinário AME, em Belo Horizonte, e relata que a época de festas e durante partidas de futebol são um dos períodos mais desafiadores para clínicas e tutores. “O estresse provocado pelos estampidos pode desencadear crises epilépticas, infartos e até levar à morte, principalmente em animais cardiopatas ou já debilitados. Já vi casos de pets que tentaram fugir e se machucaram seriamente, como um cão que tentou passar sob uma cerca e perdeu muito sangue”, relata.

Segundo ela, os animais internados no AME sofrem menos por conta de o local ter tratamento acústico, que abafa ruídos, mas nem todas as clínicas e tutores podem contar com esse sistema. Ela relata que é comum atender animais em estado grave, após os eventos. “O som alto pode provocar fugas desesperadas. Eles tentam pular muros, quebram janelas, se cortam. É um sofrimento”, explica.

O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) orienta os tutores a adotar medidas de proteção, como manter os pets identificados (adicionar número de telefone e e-mail na coleira), criar ambientes seguros e silenciosos, não deixá los em sacadas, perto de piscinas ou em correntes. Em casos mais graves, deve-se buscar orientação veterinária sobre o uso de medicamentos ou técnicas de dessensibilização sonora.

Os tutores da cadela Jude, de 12 anos, tiveram de adaptar uma joelheira ortopédica como abafadora de ruídOs para diminuir o sofrimento dela com o barulho dos fogos
Os tutores da cadela Jude, de 12 anos, tiveram de adaptar uma joelheira ortopédica como abafadora de ruídOs para diminuir o sofrimento dela com o barulho dos fogos Alexandre Guzanshe/EM/D.A. Press – 16/6/2025


Lei de caráter educativo

A reportagem entrou em contato com cinco estabelecimentos que comercializam fogos de artifício, sendo três localizados em Belo Horizonte e dois em Contagem, na Região Metropolitana. Os preços variam de acordo com o tipo do produto e a duração dos fogos. Com kits simples, por cerca de R$ 150, que proporcionam aproximadamente 20 segundos de fogos, outros custando em torno de R$ 260, com duração de um a dois minutos, até opções mais caras, com custo superior a R$ 3 mil, compostas por fogos de tiros com duração entre cinco e seis minutos.

Todos os locais consultados confirmaram que a venda de fogos com estampido é mais comum do que os sem ruídos. Um dos estabelecimentos, localizados na capital, afirmou inclusive que não trabalha com materiais sem barulho.

Apesar da ampla oferta no comércio, a legislação em vigor estabelece punições para quem desrespeita a norma e solta fogos que produzem estampidos e ruídos intensos. Em caso de flagrante, existem duas faixas de penalidade: uma multa de R$ 109,65 para quem soltar fogos com estampido de forma isolada e outra, de R$ 10.965,23, para casos em que a queima ocorre de forma organizada, com uso coletivo e simultâneo de artefatos sonoros.

Além da opção por telefone (156), a PBH disponibiliza um canal para denúncias em seu aplicativo oficial. O usuário precisa acessar a aba “Serviços” e selecionar a opção “Fiscalização fogos de artifício”. Em seguida, é necessário informar o CEP do local da ocorrência, indicar se a queima está acontecendo no momento da denúncia e descrever o fato. O sistema permite anexar até três arquivos, como fotos ou vídeos, embora essa etapa não seja obrigatória.


Advogado especialista em Direito Público, Paulo Henrique Studart faz algumas observações quanto à efetividade da lei na redução dos fogos ruidosos. Para ele, uma das principais limitações é justamente a dificuldade de fiscalização no momento exato da infração.

“O flagrante é quase impossível. Normalmente, as pessoas só escutam o barulho depois que os fogos já foram disparados. Elas sabem que foi nas imediações, mas não conseguem apontar o local exato, muito menos identificar o autor ou registrar o momento com fotos ou vídeos”, explica ele, para quem uma alternativa para dar mais força à legislação seria proibir a venda dos artefatos com estampido, possibilitando a atuação preventiva do poder público. “Fiscalizar o momento da venda seria mais fácil. Hoje, a lei tem um caráter muito mais simbólico, com baixa eficácia punitiva.”

Em nota, a PBH afirma que, além de a norma ter como principal objetivo a mudança de comportamento por meio da conscientização da população, tem incentivado o uso de alternativas menos nocivas, como os fogos de artifício silenciosos ou de baixa vibração. Ainda segundo a prefeitura, para o cumprimento da legislação, as ações prioritárias da Secretaria Municipal de Política Urbana são atividades educativas com os promotores de eventos durante o processo de licenciamento, e a divulgação da campanha “Sua alegria não pode comprometer a qualidade de vida das pessoas e dos animais”.

Desde agosto de 2023, segundo o Executivo municipal, foram realizadas 111 vistorias, emidos 19 Autos de Fiscalização visando orientar cidadãos e 18 Autos de Notificação com a finalidade de advertência, além das cinco multas citadas.


Âmbito federal

Apesar da sanção da Lei Municipal, o Brasil ainda não tem uma legislação federal específica que regulamente o uso de fogos de artifício com ruído em todo o território nacional. Mas há um projeto com esse objetivo tramitando no Congresso Nacional.

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, em Outubro de 2024, o Projeto de Lei 5/2022, que proíbe a fabricação, o armazenamento, a comercialização e o uso de fogos de artifício que produzam barulho acima de 70 decibéis. Ficam excluídos da regra os artefatos destinados à exportação. Depois de aprovado pelos senadores, o texto está em tramitação na Câmara dos Deputados, onde aguarda, desde março de 2025, análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

De acordo com o PL, o descumprimento da norma acarretará multas que variam de R$ 2,5 mil a R$ 50 mil para quem utilizar os fogos proibidos. Já as empresas que fabricarem ou comercializarem esses produtos poderão ser punidas com valores entre 5% e 20% do valor total de suas vendas no ano anterior

A título de comparação, a associação francesa Journée Nationale de l’Audition criou uma escala de decibéis (dB) que nosso ouvido percebe. O limite estabelecido no PL 5/2022 – 70 decibéis – entram na categoria de ruído “cansativo”, algo como um aspirador de pó ou cortador de grama.

* Estagiária sob supervisão do subeditor Paulo Galvão

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