80 anos do fim da Segunda Guerra/ Hiroshima e Nagasaki

Depois da luz a escuridão

Às 8h14, fazia sol em Hiroshima. Às 8h15, o inferno havia começado. Pela primeira vez na história, uma bomba atômica era usada contra uma cidade.

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Júlio Moreira

Às 8h14, fazia sol em Hiroshima. Às 8h15, o inferno havia começado. Pela primeira vez na história, uma bomba atômica era usada contra uma cidade. Ao fim de 1945, o número de mortos já passavam de mais de 140 mil

O céu azul daquela manhã tranquila foi rasgado por uma luz branca, intensa como mil sóis. Um clarão ofuscante surgiu no alto e, no segundo seguinte, uma gigantesca nuvem em forma de cogumelo começou a subir. No chão, tudo parou. Um relógio, que ainda hoje está exposto no Museu Memorial da Paz de Hiroshima, marcou o momento exato da explosão: 8h15.

Era 6 de agosto de 1945. Pela primeira vez na história, uma bomba atômica era usada contra uma cidade. A “Little Boy”, com cerca de 64 quilos de urânio, foi lançada de um avião americano, o B-29 Enola Gay. Ela explodiu a 600 metros do chão com a força equivalente a 15 mil toneladas de TNT.

 

Hiroshima tinha, naquela época, cerca de 350 mil habitantes. A cidade foi praticamente varrida do mapa. Cerca de 70 mil pessoas morreram na hora. Nos dias e meses seguintes, muitas outras perderam a vida por causa de queimaduras, ferimentos e, principalmente, pelos efeitos da radiação. Ao fim de 1945, o número de mortos já passava de 140 mil.

A destruição foi imensa: dois terços dos prédios viraram ruínas. O calor no ponto da explosão chegou a mais de 4.000°C. Houve incêndios por três dias. A explosão foi sentida a mais de 60 km de distância.

Mas o pior não foi só a destruição dos prédios. Foi o que aconteceu com os corpos. Em segundos, partículas como raios gama e nêutrons atravessaram tudo o que estava por perto, destruindo células e queimando a pele de dentro para fora. Para quem estava num raio de 600 metros, a chance de sobreviver era quase zero.

“Vi pessoas andando como fantasmas… carregando nas mãos pedaços da própria pele”, contou Yoshiko Kajimoto, que tinha apenas 14 anos e estava trabalhando em uma fábrica a 2,3 km do centro da explosão.

Hoje, bem perto de onde a bomba caiu, está a Cúpula Genbaku, ou A-Bomb Dome, um dos poucos edifícios que ficaram parcialmente de pé. Foi mantida daquele jeito, em ruínas, como um lembrete do que aconteceu ali. Ao redor, ergueu-se o Parque Memorial da Paz, onde todos os anos são deixadas flores, guindastes de papel e onde o silêncio ainda fala alto.

Segundo documentos oficiais e pesquisas do Hiroshima Peace Memorial Museum, cerca de 70% dos prédios da cidade foram destruídos. E a radiação não terminou com a explosão. Ela ficou no ar, no solo e nos corpos das pessoas, causando doenças durante décadas. Muitas crianças nasceram com problemas genéticos. Vários sobreviventes desenvolveram câncer, catarata e distúrbios no sangue. A tragédia atravessou gerações.

Em 1946, o jornalista americano John Hersey publicou um artigo histórico na revista The New Yorker com relatos de quem viveu o horror. Um médico, Terufumi Sasaki, contou que atendeu mais de 10 mil pacientes nos primeiros dias — sem remédios, sem anestesia, sem estrutura. Viu gente em pé, completamente queimada, e crianças vagando sem pele. Muros de pedra ficaram marcados com as sombras das pessoas que estavam ali quando a bomba explodiu.

Sunao Tsuboi, que era estudante na época, escreveu no chão: “Aqui morreu Tsuboi”. Ele havia perdido as orelhas, estava cheio de feridas abertas e via gente tentando recolocar os próprios órgãos para dentro do corpo. “Mesmo assim, nunca baixei os braços”, disse anos depois. Tornou-se um ativista pela paz.

Cúpula Genbaku, , um dos poucos edifícios que ficaram parcialmente de pé. Foi mantidO em ruínas, como um lembrete do que aconteceu.Ao redor, ergueu-se o Parque Memorial da Paz, onde todos os anos são deixadas flores EM TRIBUTO AOS QUE PERDERAM A VIDA
Cúpula Genbaku, , um dos poucos edifícios que ficaram parcialmente de pé. Foi mantidO em ruínas, como um lembrete do que aconteceu.Ao redor, ergueu-se o Parque Memorial da Paz, onde todos os anos são deixadas flores EM TRIBUTO AOS QUE PERDERAM A VIDA afp

Do lado de dentro do Enola Gay, o co-piloto Robert Lewis tentava entender o que acabara de testemunhar. Em seu diário de bordo, disfarçado como uma carta aos pais, escreveu:

“Tenho certeza de que toda a tripulação sentiu que essa experiência foi mais do que qualquer ser humano jamais imaginou ser possível. Parece impossível compreender. Quantos ‘japas’ acabamos de matar?”

Em seguida, diante da nuvem em forma de cogumelo que subia no horizonte, registrou:

“Honestamente, tenho a sensação de estar em busca de palavras para explicar isto… Deus, o que fizemos?”

A bomba não foi usada por acaso. Os Estados Unidos queriam forçar o Japão a se render e acabar de vez com a Segunda Guerra Mundial. No dia 26 de julho de 1945, o presidente americano Harry Truman deu um ultimato ao Japão, pedindo rendição incondicional. Caso contrário, prometeu “destruição rápida e absoluta”. Não falou abertamente sobre a bomba — mas ela já estava pronta desde 16 de julho, quando foi testada no deserto do Novo México.

Na madrugada de 6 de agosto, quando o bombardeiro Enola Gay partiu da ilha de Tinian rumo a Hiroshima, a ordem já estava dada. Truman havia assinado a autorização em 25 de julho. Oficialmente, a narrativa americana era clara: a nova arma encerraria a guerra e salvaria vidas que seriam perdidas numa invasão terrestre.

 

Mas os bastidores da decisão revelam uma realidade muito mais complexa. Documentos desclassificados, memorandos e relatos reunidos por jornais como Washington Post, The New York Times e pelo Bulletin of the Atomic Scientists mostram que fatores geopolíticos e estratégicos pesaram tanto quanto os militares.Segundo historiadores, “a discussão não era se iriam usar a bomba, mas como usá-la”.

Hiroshima foi escolhida por ser sede de uma base militar e por ainda não ter sido atacada, o que permitiria avaliar melhor os efeitos da explosão. Para Kathleen Sullivan, diretora da Hibakusha Stories, “Hiroshima foi tratada como um experimento”.

Em suas memórias, Truman justificou: “Foi para salvar os garotos americanos que eu decidi usar a bomba”. À época, estimativas militares falavam em até um milhão de mortos caso os EUA invadissem o Japão. Essa justificativa sustentou o discurso oficial por décadas. Porém, historiadores afirmam que o Japão já estava buscando a rendição — desde que o imperador fosse mantido.

vista área de hiroshima, fotos tiradas em 1945, antes e depois do lançameto da bomba atômica:  70% DOS PRÉDIOS FORAM DESTRUÍDOS
vista área de hiroshima, fotos tiradas em 1945, antes e depois do lançameto da bomba atômica: 70% DOS PRÉDIOS FORAM DESTRUÍDOS AFP

Dentro do governo americano, houve divergências. O general Dwight D. Eisenhower, que comandava as forças aliadas na Europa, declarou em entrevistas posteriores que era contra o uso da bomba. “O Japão estava derrotado, e o uso da bomba era desnecessário”, afirmou ao New York Times.

Uma carta assinada por dezenas de cientistas do Projeto Manhattan, alertava para os riscos morais e geopolíticos de usar a bomba sem aviso prévio. Mas o documento nunca chegou às mãos de Truman.

O Comitê Interino, grupo criado para aconselhar o governo, rejeitou a ideia de uma demonstração prévia — era preciso impacto total, surpresa absoluta, inclusive para a União Soviética.

Três dias depois do ataque a Hiroshima, a URSS declarou guerra ao Japão. E no dia seguinte, 9 de agosto, os EUA lançaram outra bomba, desta vez sobre Nagasaki. Para o historiador Tsuyoshi Hasegawa, em entrevista à BBC, “o objetivo não era apenas forçar a rendição do Japão, mas limitar o avanço soviético na Ásia”.

Com o tempo, muitos envolvidos demonstraram arrependimento. Robert Oppenheimer, cientista-chefe do Projeto Manhattan, disse em 1945: “O sangue está em nossas mãos”. Em 1965, reafirmou: “Sabíamos que o mundo não seria mais o mesmo”.

A decisão de lançar as bombas permanece, 80 anos depois, como uma das mais controversas da história moderna. Para uns, foi o fim necessário de uma guerra sangrenta. Para outros, um experimento de poder disfarçado de necessidade militar. O certo é que, desde então, nenhuma outra bomba atômica foi usada em guerra — talvez porque Hiroshima e Nagasaki tenham mostrado, de forma brutal e definitiva, do que somos capazes.

Oito décadas depois, Hiroshima se reconstruiu. Com ajuda do governo japonês e de entidades internacionais, a cidade virou um símbolo de paz. Em 2016, o presidente dos Eua, Barack Obama, visitou o Memorial e afirmou: “A memória de Hiroshima deve nos guiar para um mundo sem armas nucleares”.

Sobreviventes como Setsuko Thurlow, que tinha 13 anos e foi resgatada dos escombros de uma escola, tornaram-se porta-vozes contra as armas atômicas. Em 2017, ela representou a ICAN — organização que recebeu o Nobel da Paz pela luta pelo desarmamento nuclear.

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Todo mês de agosto, Hiroshima relembra o horror vivido. Mas os sobreviventes estão envelhecendo. Muitos já se foram. E há um medo real de que suas vozes silenciem para sempre.

“Não sei com que armas será travada a Terceira Guerra Mundial, mas a Quarta será com paus e pedras” — a frase é atribuída a Albert Einstein. Com os avanços tecnológicos, a dúvida, hoje, é se vão restar paus e pedras...

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