"Essas vozes são o que nos resta da verdade’’ daquele dia"
Muitos dos sobreviventes já se calaram, mas seus relatos seguem vivos– ecos de um horror que não pode ser esquecido
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Siga noÀs 8h15 da manhã de 6 de agosto de 1945, Hiroshima deixou de ser apenas uma cidade japonesa. Com o lançamento da primeira bomba atômica usada em guerra, tornou-se o símbolo maior da destruição humana em escala nuclear. O que veio depois não foi apenas a morte imediata de dezenas de milhares de pessoas, mas o início de um silêncio difícil de traduzir. Com o passar dos anos, esse vazio começou a ser preenchido por vozes. Algumas delas ainda estão vivas; muitas se calaram com o tempo, mas deixaram depoimentos que permanecem como testemunhos fundamentais da tragédia — e como advertência para as gerações futuras. São relatos de dor, medo, perda e resistência. Fragmentos de humanidade que atravessaram o inferno e voltaram para contar o que viram, o que sentiram e o que nunca esqueceram.
YOSHIKO KAJIMOTO, aos 14 anos, estava a 2,3 quilômetros do epicentro da explosão, trabalhando em uma fábrica de motores. Ela viu uma luz azul atravessar a janela antes que tudo ficasse escuro. A fábrica desabou e, quando conseguiu sair dos escombros, encontrou uma cidade irreconhecível. “Vi pessoas andando ao meu lado como fantasmas, pessoas cujo corpo todo estava tão queimado que eu não conseguia distinguir entre homens e mulheres. Com cabelos desarrumados, rosto inchado que parecia ter o dobro do tamanho normal e lábios pendurados, levavam nas mãos pedaços de pele queimada”, disse. “Hiroshima havia se transformado num crematório.” Kajimoto enfrentou leucemia, câncer e uma cirurgia que retirou parte do estômago. Ainda assim, tornou-se uma das vozes mais firmes contra as armas nucleares. “Estou trabalhando duro para testemunhar que não devemos usar essas bombas atômicas aterrorizantes.”
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MISAKO KATANI perdeu a mãe e a irmã mais nova, Tamie. O pai foi quem lhe contou onde elas provavelmente estavam. “Sua mãe e Tamie estão sob os escombros”, disse ele. Misako encontrou os restos da mãe e os colocou em uma caixa. Depois, viu fragmentos tão frágeis que se desfaziam ao toque. “Meu pai me disse: ‘Estes são de Tamie’.” Anos depois, ela ainda mantém viva a lembrança. “Guardo uma lembrança muito viva desta cena. Fico à beira das lágrimas quando relembro o passado.” Diante do altar da família, ela confessa: “Digo à minha mãe: ‘Mamãe, por favor, venha me buscar’, mas ela nunca vem.”
SHIGEAKI MORI tinha 8 anos e caminhava por uma ponte quando a explosão o lançou no rio. Conseguiu sair da água e encontrou o que descreveu como um pesadelo. “Vi uma mulher cambalear na minha direção. Estava coberta de sangue, seus órgãos saíam do abdômen. Sustentando-os, me perguntou onde podia encontrar um hospital, mas fugi e a deixei sozinha.” Ainda criança, ele tentava correr, mas pisava sobre os corpos dos que tombavam à sua frente. “Ouvi gritos provenientes de uma casa demolida, mas fugi. Ainda era um menino, incapaz de ajudar.”
SUNAO TSUBOI era estudante universitário e estava a cerca de 1,2 quilômetro do epicentro. Relatou um “clarão branco-prateado” e, em seguida, viu seu corpo em frangalhos. As roupas e a pele se colaram. Suas orelhas desapareceram. Feridas abertas deixavam vasos sanguíneos expostos. Tentou caminhar, mas caiu repetidas vezes. Escreveu no chão: “Aqui morreu Tsuboi”. Ele viu uma adolescente com o olho colado no rosto e outra tentando recolocar os próprios intestinos. “Havia cadáveres por todas as partes, alguns sem pedaços, todos carbonizados. Nós somos mesmo humanos?”, questionou. “Pode ser que eu morra amanhã, mas sou otimista. Nunca baixarei os braços.”
Em 1946, esses e outros relatos foram reunidos pelo jornalista americano John Hersey, no artigo que mais tarde se tornaria o livro “Hiroshima”. Hersey entrevistou seis sobreviventes e mostrou ao mundo o que a explosão havia causado, não em números ou estratégias militares, mas na carne e na alma das pessoas. O reverendo KIYOSHI TANIMOTO, por exemplo, disse ter visto “um tremendo clarão de luz cortando o céu”. Enquanto ajudava os feridos, repetia: “Perdoem-me por não carregar um fardo como o de vocês”. A funcionária de fábrica TOSHIKO SASAKI, de 20 anos, ficou presa sob uma estante que caiu após o impacto. “Uma luz ofuscante encheu a sala”, contou. “Ali, na fábrica de estanho, no primeiro momento da era atômica, um ser humano foi esmagado por livros.” O médico TERUFUMI SASAKI, da Cruz Vermelha, relatou: “Um flash gigantesco, como o de uma fotografia.” E o padre jesuíta WILHELM KLEINSORGE comparou a explosão a um evento astronômico: “Um terrível clarão… Como um grande meteoro colidindo com a Terra.”
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Mesmo passados 80 anos, algumas dessas vozes ainda falam. TERUKO YAHATA, que tinha 8 anos em 1945, hoje tem 87 e continua dando seu testemunho no Museu Memorial da Paz de Hiroshima. Aprendeu inglês para contar sua história a visitantes de outros países. “De repente, todo o céu brilhou e ficou iluminado de branco-azulado, como se os céus tivessem se transformado numa enorme lâmpada fluorescente”, disse, em entrevista à agência Reuters. “Caí no chão imediatamente e perdi a consciência.” Em 2024, após a Nihon Hidankyo – organização formada por sobreviventes da bomba – receber o Prêmio Nobel da Paz, ela declarou: “Foi como se uma luz tivesse brilhado de repente. Senti como se pudesse enxergar a luz. Este é o começo de um movimento em direção à abolição das armas nucleares.”
O que os hibakusha têm a dizer não pertence apenas à memória. São vozes que insistem em permanecer. Algumas falam com raiva, outras com tristeza. Todas falam com verdade. Em meio ao barulho do mundo, continuam dizendo: “Aquilo aconteceu – e não pode acontecer de novo”.
Como escreveu o historiador TSUYOSHI HASEGAWA: “Essas vozes são o que nos resta da verdade daquele dia.” Elas seguem falando. E o mundo ainda precisa escutá-las.
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Dor física e psicológica
Hibakusha é o termo japonês usado para designar os sobreviventes das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945. A palavra significa literalmente “pessoa afetada pela explosão”. Após a guerra, muitos hibakusha enfrentaram não apenas os efeitos físicos e psicológicos da radiação, mas também o preconceito social. Eram vistos como doentes, frágeis ou até “contaminados”, e muitos tiveram dificuldades para conseguir emprego, casar-se ou serem aceitos em comunidades. Mesmo assim, milhares se tornaram ativistas pela paz, usando suas histórias como instrumento de memória e resistência contra as armas nucleares.