O insólito show de rock de Milei para 'recuperar a mística' em meio a escândalo e crise na Argentina
O presidente argentino protagonizou um show que, segundo analistas, "não parece seguir os padrões de como deve ser conduzida uma política nacional".
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Vestido com jaqueta de couro preta, o presidente argentino Javier Milei cantou músicas de Charly García e Los Ratones Paranoicos diante de milhares de pessoas. Pulou, ergueu os braços em um palco em meio a fogos de artifício e encerrou dizendo: "Vou tomar banho e me vestir de presidente".
A Argentina tem uma longa história de shows de rock para todos os gostos, mas o protagonizado na noite de segunda-feira (06/10) pelo presidente foi diferente: um ato político com efeitos incertos.
O show aconteceu em um pequeno estádio de Buenos Aires enquanto o país enfrenta graves desafios econômicos e vários escândalos afetam o governo do presidente roqueiro.
O mais recente desses casos polêmicos foi a renúncia, no domingo, do candidato governista a deputado por Buenos Aires, José Luis Espert, por supostos vínculos com um empresário acusado de tráfico de drogas nos Estados Unidos.
O episódio acontece no momento em que o governo de Milei busca assistência financeira direta dos EUA antes das eleições legislativas do dia 26 deste mês, nas quais tenta ampliar sua base em um Congresso que já lhe impôs vários contratempos.
É por isso que o show apresentado por Milei nesta semana é considerado algo inusitado até por especialistas.
"Para a Argentina, neste momento tão difícil, (...) não parece seguir os padrões de como deve ser conduzida uma política nacional", disse Lara Goyburu, cientista política argentina que dirige a empresa de consultoria Management & Fit, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Mas o que o presidente libertário buscava com um ato desse porte?
'Foi estranho'
O show serviu de prévia para o lançamento de seu livro La Construcción del Milagro (A Construção do Milagre, em tradução livre), que reúne de ensaios pessoais a anotações sobre o início de seu governo, em dezembro de 2023.

De fato, depois de cantar e em seguida se vestir "como presidente" de terno e gravata, Milei retornou ao palco para transmitir diversas mensagens políticas.
Ele relembrou o início de sua carreira política alguns anos antes, destacou algumas conquistas de seu governo, como a redução da pobreza, e pediu confiança de que conseguirá "acabar com a inflação" no país.
Também houve mensagens durante o show que ele fez com a Banda Presidencial, da qual faz parte junto com outros membros de seu partido, La Libertad Avanza, interpretando clássicos do rock argentino.
Durante o show, o presidente também fez ataques à oposição. Ele se referiu ao movimento kirchnerista, liderado pela ex-presidente Cristina Kirchner, com uma mensagem: "Eles ganharam um round, mas não a batalha".
No mês passado, La Libertad Avanza sofreu sua pior derrota eleitoral, perdendo para a oposição peronista nas eleições legislativas da província de Buenos Aires, a mais populosa do país.
Desde então, o governo enfrenta novos desafios.

As dificuldades financeiras e monetárias da Argentina levaram o presidente dos EUA, Donald Trump, a oferecer apoio do Tesouro americano ao aliado Milei.
O ministro da Economia argentino, Luis Caputo, esteve em Washington na segunda-feira (06/10) para negociar o pacote de assistência financeira, ainda indefinido. Por isso, não participou do ato político-musical em Buenos Aires.
Também esteve ausente José Luis Espert, que renunciou na véspera à principal candidatura a deputado do governo após suspeitas de ter recebido financiamento de Federico "Fred" Machado, empresário cuja extradição para os EUA, por acusações de narcotráfico, foi aprovada na terça-feira (07/10) pelos poderes Judiciário e Executivo argentinos.
O episódio se soma ao vazamento de áudios de um ex-diretor da Agência Nacional para a Deficiência (Andis, na sigla em espanhol), que sugerem pagamento de propina a Karina Milei, irmã do presidente e secretária-geral da Presidência.
No início deste ano, o próprio Milei foi citado em outra polêmica ao promover a criptomoeda $Libra, investigada pela Justiça como um possível esquema de fraude. Ele nega ter cometido qualquer irregularidade.

A corrupção passou a liderar, em agosto e setembro, as menções nas pesquisas da consultoria Management & Fit sobre os problemas que mais afetam os argentinos, superando a insegurança e a inflação.
"Além do descontentamento com a situação atual, começa a surgir uma desconfiança acerca de uma futura melhora", afirma Goyburu, analista político da Management & Fit.
Segundo Goyburu, Milei buscou com o ato musical inusitado "recuperar a mística" que mobilizou sua base eleitoral em 2023, especialmente entre jovens que o veem como distante da classe política tradicional.
"Diante da fuga dos eleitores moderados, procurou-se reforçar o núcleo duro", explica. "Foi algo incomum, disruptivo e inovador para a prática política nacional, sem dúvida. Mas é assim que Milei tem se mostrado como figura da vida pública argentina, e ele conseguiu chegar até aqui."
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Para Goyburu, "é uma incógnita o que pode acontecer depois das eleições do dia 26".
'Retorno ao planeta Terra'
Especialistas afirmam que, com o show, Milei correu o risco de alienar ainda mais setores da população que nunca votaram nele ou que o apoiaram apenas no segundo turno de 2023.
O show presidencial recebeu críticas de opositores e até de políticos que tiveram relação próxima com Milei no passado, como o ex-ministro da Economia Ricardo López Murphy.
"Volte ao planeta Terra, presidente. O país precisa do senhor aqui", escreveu Murphy, atualmente deputado, na rede social X (antigo Twitter). "As imagens transmitem uma mistura de constrangimento, raiva e dor."

Marina Acosta, doutora em ciências sociais e responsável pela comunicação da consultoria argentina Analogías, afirma que o governo de Milei atravessa "seu pior momento", com queda nos índices de aprovação da gestão e na imagem do presidente.
Sinal disso é uma pesquisa recente da Bloomberg/AtlasIntel, realizada entre os dias 10 e 14 de setembro: 53,7% dos entrevistados afirmaram "desaprovar" o presidente argentino, enquanto 42,4% afirmaram que o "aprovam". O restante (3,8%) não sabe.
Esta é a pior avaliação de Milei desde que ele tomou posse. Sobre o governo, na mesma pesquisa, 49,5% dos entrevistados o definem como "ruim ou muito ruim" enquanto 33,4% o consideram "bom ou excelente".
A analista Shila Vilker, da empresa de pesquisas e opinião pública Trespuntozero, diz que nos dois meses anteriores às eleições legislativas na província de Buenos Aires, o apoio ao governo e ao presidente Milei caiu cerca de 10 pontos percentuais, ficando em 39,9%.
No ano passado, estes percentuais estavam entre 50% e 52%.
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Segundo Acosta, Milei prometeu ajustar a "casta" política, combater a corrupção e melhorar a economia, mas muitos argentinos percebem que o ajuste recai sobre a população em geral. Além disso, surgem novos escândalos e o preço do dólar voltou a subir.
"O governo enfrenta um problema sério: ficou sem bandeiras para defender", disse Acosta à BBC News Mundo. "O ato buscava reafirmar a identidade de um espaço que tem poucos resultados para mostrar à população."
Preocupações além da inflação
De acordo com a analista Shila Vilker, da empresa de pesquisas e opinião pública Trespuntozero, a percepção dos argentinos sobre a economia pesou na queda recente na popularidade de Milei.
Dados oficiais mostram que a economia tem dado sinais de estagnação e alguns especialistas especulam sobre riscos de recessão — o que Milei e sua equipe descartam.
Recentemente, Milei reconheceu, em entrevista a um canal de televisão local, que a economia está "paralisada" e atribuiu o fato à oposição no Congresso.
Segundo algumas pesquisas, a própria derrota em Buenos Aires foi influenciada pela desaceleração da economia e a dificuldade das pessoas de adquirir produtos básicos e pagar suas contas.
A preocupação dos argentinos já não é tanto com a inflação, que caiu no governo Milei.
Em 2023, o índice anual chegou a 211,4%. Em 2024, foi de de 117,8%. Para 2025, a expectativa é que a inflação anual seja de 28,2%, segundo o Levantamento de Expectativas do Mercado (REM) divulgado pelo Banco Central.
Economistas atribuem a queda inflacionária ao forte ajuste fiscal e monetário implementado pelo governo Milei.
Mas, segundo analisa o economista Enrique Szewach, reduzir a inflação "não está sendo suficiente" para convencer a população.
O custo de vida continua alto e faltam políticas de geração de empregos, ele aponta.
Nos últimos tempos, os salários não acompanharam o ritmo dos preços. O salário mínimo, por exemplo, teve perda de 30% no poder de compra durante o governo Milei, segundo dados do Centro de Pesquisa e Formação da República Argentina (CIFRA), divulgados no início de setembro pelo jornal Clarín.
"Nas diferentes pesquisas que realizamos, nos últimos meses, baseadas em focus groups [grupos focais], as classes média e baixa, não pobre, e que representam cerca de 24 milhões de pessoas, responderam que 'comprar é um estresse' e 'o dinheiro acaba muito antes do fim do mês'", aponta Guillermo Olivetto, especialista em consumo.
"Até pouco tempo, muitos diziam que o esforço valia a pena e apoiavam [as medidas de Milei]."
Há preocupações também com o acesso a empregos, inclusive os formais.
Dados do Instituto de Estatísticas e Censos (Indec) divulgados em 18 de setembro mostram que, no segundo trimestre deste ano, o desemprego foi de 7,6% — levemente inferior aos três meses anteriores, quando o indicador foi de 7,9%, e igual ao último trimestre de 2024.
Mas, segundo dados da Secretaria do Trabalho divulgados pela imprensa local, entre novembro de 2023 e abril deste ano caiu o total de empregos registrados, tanto privados quanto públicos. A redução foi de 258.300 postos de trabalho.
E, de acordo com o Indec, os trabalhadores informais chegaram a 43,2% da população ativa no segundo trimestre deste ano. Este índice é levemente superior aos 41,6% do trimestre anterior.
Além disso, os preços de serviços públicos como transporte, água, luz e telefonia aumentaram porque o governo Milei reduziu ou eliminou os subsídios que eram aplicados pelos governos anteriores.
Para completar, a alta de investimentos estrangeiros que o governo esperava atrair não ocorreu, observam os economistas.
Em um comunicado no mês passado, a União Industrial Argentina (UIA) elogiou a "organização macroeconômica, a queda na inflação e o equilíbrio fiscal" do governo Milei, mas criticou o custo de produção e as taxas de juros.
Em seu levantamento mensal, a UIA informou, nesta semana, que a atividade industrial caiu 3% em agosto em relação ao mesmo mês do ano passado.
O Banco Central da República Argentina (BCRA) fixou, em janeiro deste ano, em 29% a taxa básica de juros, chamada de Taxa Normal Nominal (TNA). Porém, este índice pode variar de acordo com o banco ou segmento econômico.
Entre julho e agosto, por exemplo, os juros para as pequenas e médias empresas saltaram de 44% para mais de 60%, segundo reportagem do jornal Clarín.
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