SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O projeto de lei Antifacção traz avanços no combate a organizações criminosas no Brasil, mas peca por até agora não atacar de maneira direta problemas estruturais da investigação policial, dizem especialistas contrários e favoráveis ao texto. 

A proposta foi aprovada na Câmara na última terça (18) e segue agora para o Senado, onde será relatada por Alessandro Vieira (MDB-RS)

O projeto cria o chamado Marco Legal do Combate ao Crime Organizado, modifica em parte legislações já existentes e institui um novo tipo penal - o domínio social estruturado - para punir facções, que passam a ser enquadradas como organizações criminosas ultraviolentas. 

Também aumenta punições e prevê de 20 a 40 anos de prisão a condenados. A pena pode ser aumentada de metade até dois terços caso constatada coação de menores de idade ou servidor público, entre outros pontos. 

Isolado, porém, o aumento de penas tende a resolver pouco, diz o advogado Thiago Nicolai, especialista em direito penal econômico pela FGV (Fundação Getulio Vargas). 

Isso por si só não basta, afirma, "se o Ministério Público e o Judiciário não tiverem condições operacionais e estruturais de processar e julgar com célere capilaridade". 

Para ele, o projeto possui lacunas porque se concentra em crimes e penas e "não dedica atenção proporcional à infraestrutura investigativa, inteligência, capacitação policial, melhoria das perícias, recursos para investigação ou estrutura penitenciária". 

O delegado Murillo Ribeiro de Lima, da Polícia Civil de Minas Gerais, segue na mesma linha. 

Mestre em direito penal pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e especialista em crime organizado, ele diz que a proposta tem pontos relevantes para se elevar o patamar de enfrentamento ao crime organizado, mas afirma que o texto não enfrenta de maneira direta o baixo índice de resolução de crimes no país. 

Levantamento do Instituto Sou da Paz divulgado em outubro mostrou, por exemplo, que apenas 36% dos homicídios ocorridos em 2023 haviam sido esclarecidos até o final do ano passado. 

Para o delegado, o país ainda carece de capacidade humana, tecnológica e pericial para apurar crimes, e o texto aprovado na Câmara "não melhora o índice de esclarecimento de homicídios, furtos ou roubos, que é um dos principais déficits orgânicos da segurança pública brasileira". 

"Quando se desarticula estrutura criminosa de médio ou alto comando, há impacto direto no varejo e em delitos de menor potencial ofensivo porque essas economias estão conectadas. Mas isso exige inteligência, continuidade investigativa e integração institucional, algo que o Brasil ainda precisa aprimorar". 

É um debate que acabou escanteado pela análise apressada com que se deu o debate em torno do projeto, segundo especialistas. A versão final do texto, a sexta delas, foi apresentada no dia da votação. 

"A discussão foi tumultuada, a toque de caixa, e o tema se um tornou ativo político. Isso é um grande erro", diz Gustavo Bezerra, especialista em crime organizado pela Universidad de Salamanca (Espanha). 

Avaliação semelhante faz o advogado Lenio Streck, doutor em direito do Estado pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), para quem "não se discute nem se vota algo tão importante de forma acelerada". 

Ele critica a versão final da proposta, mas diz ver com bons olhos o afastamento da competência do júri em crimes de homicídio cometidos por membros de facções - o texto aprovado prevê a criação de uma Vara Colegiada para analisar casos do gênero. 

Por outro lado, o texto obriga estados a criarem sistemas semelhantes e interoperáveis. É uma medida bem-vinda, diz o coronel da reserva da PM paulista e doutor em psicologia social Adilson Paes de Souza, mas que deve ser vista com cautela. 

"Como operacionalizar isso se os próprios estados não compartilham dados?" "Basta ver o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que elabora todo ano um anuário do setor. Sempre tem alguém que não manda alguma informação." 

Segundo a maioria dos entrevistados, é preocupante a distribuição de recursos a fundos de segurança. O texto destina a fundos estaduais valores obtidos em operações estaduais e a federais nos casos conduzidos por órgão da União. Se a operação for conjunta haverá rateio. 

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"A alteração na lógica de repasse pode gerar incentivo perverso para que a investigação se concentre em âmbito estadual, para "prender recursos" desses fundos, o que pode gerar fragmentação ou competição entre Estados e União", afirma o advogado Thiago Nicolai. 

Na visão do delegado Ribeiro, em contrapartida, a questão envolve um "alarde desnecessário". A proposta, para ele, busca equilíbrio financeiro entre instituições de diferentes entes federativos e o que deveria estar em pauta, na verdade, é o aumento de verba ao setor em geral. 

"O Brasil investiu cerca de R$ 153 bilhões em segurança pública em 2024, enquanto a estimativa de lucro anual do crime organizado no país, segundo o Fórum Brasileiro, ultrapassa R$ 348 bilhões. A disparidade fala por si", diz. 

Um dos pontos que merecem atenção, na avaliação do advogado e especialista em direito penal Sérgio Bessa, é saber se a proposta possui alguma incompatibilidade com a atual Lei das Organizações Criminosas, de 2013. 

"Optou-se por tratar do assunto em lei nova, sem revogar a anterior. Os conceitos, dispositivos e tipos penais criados, como a definição de "organização criminosa ultraviolenta", podem conflitar com as previsões da norma já vigente."

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