Um ônibus cheio de crianças se envolve em um acidente, pega fogo e arde em chamas durante meia hora sem que nenhuma autoridade preste socorro. Essa situação aterrorizante e seus desfechos trágicos foram vistos e sentidos por cidadãos palestinos e agora são retratados em “Um dia na vida de Abed Salama - Anatomia de uma tragédia em Jerusalém” (Zahar), livro escrito por Nathan Thrall, vencedor do Prêmio Pulitzer de não-ficção em 2024, que chega ao Brasil enquanto mais uma guerra provoca a morte de centenas de pessoas no Oriente Médio, desta vez entre Israel e Irã.

“Quando vimos o fogo, achamos que tínhamos morrido. Pensamos que estávamos no inferno”, disse uma menina que sobreviveu ao desastre. Porém, nem todos tiveram a sorte de poder contar o que viram. Sete pessoas morreram queimadas naquele dia chuvoso sem ter a chance de chegar ao seu destino: um parque temático.


Para recontar essa história, que aconteceu em fevereiro de 2012, o jornalista Nathan Thrall, judeu nascido nos Estados Unidos e radicado em Israel há mais de vinte anos, opta por reconstituir experiências de pessoas que vivem com um nó na garganta em meio ao controle israelense cada vez maior, mas que não desejam partir.

Ele, que também é autor de “The Only Language They Understand: Forcing Compromise in Israel and Palestine” e de ensaios e reportagens publicados pelo New York Times Magazine, The Guardian, London Review of Books e New York Review of Books, procura fazer um retrato de pessoas e famílias comuns, separadas por muros e tratadas como cidadãos de segunda classe, cujas histórias funcionam como testemunhos cotidianos para um conflito que é vivido há várias gerações.


É o caso do palestino Abed Salama, trabalhador, marido e pai, que se viu proibido de transitar livremente em sua própria terra para procurar pelo filho, Milad, uma das vítimas do acidente. A batida, que aconteceu na “Estrada da Morte”, ocorreu na Área C, território equivalente a mais da metade da Cisjordânia.

Como lembra o autor, após os Acordos de Oslo, o local permaneceu sob controle absoluto de Israel, sendo governado pelo exército, patrulhado pela polícia e sob a jurisdição dos serviços de emergência do país. Apesar disso, as ambulâncias israelenses não ligaram suas sirenes naquele dia. Para piorar, o ônibus que levou as crianças para a excursão era lento, detonado e deteriorado pelos 27 anos de uso. “Onde estão os judeus?”, gritavam as primeiras testemunhas.


Mesmo com o cheiro avassalador de pele e cabelo queimados, muitos voluntários se prontificaram a socorrer as crianças que estavam no veículo. Paralelamente ao desastre, o autor se dedica a contar quem eram essas pessoas, ligadas direta ou indiretamente ao acidente, como foram os casos do paramédico Nader, o cidadão Eldad, a mãe Nansy, o fundador de assentamento Beber Vanunu, entre outros. E, claro, não poderia ficar de fora o perfil de Abed Salama e sua vida cheia de reviravoltas, incluindo uma mentira que o afastou de um grande amor. Também é possível conhecer o motorista do semirreboque que provocou a catástrofe, Ashraf Qayqas, que pilotava muito acima da velocidade permitida debaixo de uma tempestade.


Ao reunir histórias de vários personagens, Nathan Thrall consegue mostrar detalhes da cultura e das tradições da região, seus conflitos e características. Além disso, ele se aprofunda no tema ao falar da Intifada, movimento de resistência palestina contra a ocupação israelense, e do modus operandi utilizado por Israel para expandir seus assentamentos, enfraquecer a reivindicação de palestinos e anexar mais territórios. O livro também aborda como as cores das carteiras de identidade (azuis ou verdes) eram fundamentais para liberar ou impedir o deslocamento de pessoas pela região e como isso afetou o atendimento às vítimas da tragédia com o ônibus escolar.


Crítico das ações do estado de Israel contra a Palestina, Nathan Thrall descreve a angústia de Abed Salama ao procurar o filho naquele dia. “Era como ser submetido alternadamente a banhos quentes e gelados. Quente, frio, quente, frio, quente de novo, frio de novo. O celular não parava de tocar: na maioria das vezes, eram jornalistas e emissoras de rádio. Abed estava nervoso demais para falar com eles”. Em seu trabalho, o escritor intercala investigação jornalística e literatura para costurar as esperanças e as dores de uma legião de palestinos, representados por Abed Salama que, depois de passar por todo esse trauma, ainda foi impedido de participar do lançamento do livro em Jerusalém em função dos bloqueios israelenses.

Trecho

“A maioria das pessoas com quem Abed havia conversado achava que as autoridades israelenses queriam que as crianças morressem. Todos sabiam da rapidez com que as forças de segurança apareciam nas estradas da Cisjordânia quando um adolescente se punha a atirar pedras. Na manhã do acidente, porém, ninguém reagiu: nem os soldados no posto de controle, nem as tropas da base de Rama, nem os caminhões de bombeiros dos assentamentos vizinhos. O ônibus tinha permanecido mais de meia hora em chamas sem que ninguém fizesse nada.”

O autor, o norte-americano Nathan Thrall, sobre o personagem principal de seu livro, o palestino Abed Salama:

Umberto Costamagna/divulgação


Entrevista/Nathan Thrall

(Autor de “Um dia na vida de Abed Salama”)

“Não havia como contar essa história sem explicar o sistema de dominação que Abed precisou atravessar”


O que o levou a escrever este livro?


Eu vinha trabalhando com a questão Israel-Palestina há mais de uma década antes de decidir escrever este livro. E grande parte do trabalho que eu fazia era voltado para influenciar tomadores de decisão e outras elites que tinham algum tipo de influência sobre o que acontecia em Israel e na Palestina (formuladores de políticas públicas, analistas de think tanks, políticos, jornalistas). E percebi que, embora eu recebesse feedbacks positivos sobre o que escrevia para esse público, não via absolutamente nenhuma mudança nas políticas daqui.


Então comecei a perguntar às pessoas para quem eu estava escrevendo por que não havia mudanças, apesar de, em particular, elas me dizerem que concordavam comigo ou que estavam convencidas pelos argumentos que eu apresentava. E o que elas me diziam era que perderiam seus empregos se agissem com base no que acreditavam em particular. Que não havia espaço político para adotar uma abordagem fundamentalmente diferente.


E que, se quiséssemos pensar em uma abordagem diferente, precisaríamos de uma mudança profunda na opinião pública e na compreensão global do que está acontecendo aqui, e do papel de muitos governos ao redor do mundo no apoio ao sistema de dominação dos palestinos por judeus israelenses.
Então, antes de começar este projeto em particular, passei por uma mudança filosófica: percebi que precisava parar de tentar influenciar essas elites e, em vez disso, falar com um público muito mais amplo, na esperança de criar o tipo de espaço político que permitiria que esses tomadores de decisão começassem a agir de forma diferente.


E, uma vez tomada essa decisão, ficou claro para mim que a abordagem certa seria a narrativa. Que a narrativa tem o poder de envolver alguém, de fazer com que essa pessoa sinta empatia por outras com quem normalmente não se identifica, de permitir que ela veja o mundo pelos olhos de outra pessoa e comece a entender aquilo que, por meio dos seus impostos, do apoio a certos partidos políticos e das ações de seus próprios governos, está ajudando a manter e perpetuar um sistema de apartheid.


E, uma vez decidida essa abordagem narrativa, lembrei que já há muito tempo tinha a ideia de que um acidente de carro seria o tipo de evento que me permitiria contar uma história caleidoscópica que trouxesse muitas pessoas diferentes, cujas vidas coexistem lado a lado, mas de forma altamente segregada, com pouquíssima interação entre elas.


E essa é a realidade desse lugar: a segregação é tão profunda que realmente seria necessário algo como um acidente de carro para reunir essas pessoas. Uma vez tomada essa decisão, lembrei de um acidente em particular que envolveu um grupo de crianças palestinas da pré-escola na região metropolitana de Jerusalém, que para mim era emblemático de um conjunto inteiro de políticas voltadas aos palestinos: políticas de isolamento, de mantê-los trancados em guetos, onde podiam olhar através dos muros e ver judeus israelenses vivendo vidas radicalmente diferentes das suas.


E quando comecei a investigar um pouco mais sobre esse evento em particular, vi que ele era muito rico e que realmente me permitiria contar toda a história de Israel e Palestina.

O que mais lhe chamou a atenção durante o período de produção? Houve algum fato, entrevista ou pesquisa que tenha lhe impactado mais? Por quê?


Como alguém que já era considerado um especialista nessa área e era procurado para oferecer conselhos ou análises especializadas, eu não diria que houve algo em particular durante a apuração deste livro que fosse uma informação completamente nova para mim, algo que eu não soubesse antes.


Eu compreendia como o sistema de apartheid funciona e era meu trabalho conhecer seus detalhes. Então, o tipo de informação que aprendi durante a apuração deste livro foi diferente. Não era tanto factual, mas emocional. Tratava-se de realmente entender o que significa para uma pessoa viver sob esse sistema e o quanto ele penetra nos aspectos mais íntimos da vida palestina.


Como no caso do personagem principal do livro, Abed Salama. Em determinado momento, ele escolhe até mesmo sua parceira de casamento com base na cor da identidade dela, porque são esses tipos de decisões íntimas que acabam moldadas pelo sistema de controle.


Por que você escolheu Abed Salama como personagem principal?


Escolhi Abed porque foi realmente a história dele, mais do que a de outras pessoas ligadas ao acidente, que me permitiu fazer duas coisas. Primeiro, contar toda a história palestina por meio da história de vida dele, que nasceu pouco depois do início da ocupação. Veio de uma família proeminente em uma cidade, Anatote, que sofreu praticamente todos os tipos de confisco de terras por parte de Israel. Ele viu sua cidade encolher à medida que era tomada para assentamentos, postos avançados, uma estrada segregada e um parque nacional israelense.


Ao longo da sua vida, ele participou de muitos eventos históricos importantes. Formou-se no ensino médio pouco antes do início da Primeira Intifada e acabou sendo arrastado para dentro dela. E, para sua surpresa, ainda muito jovem, tornou-se o líder local de uma facção de esquerda, a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP), em sua cidade de Anata. Foi torturado, como tantos outros palestinos, durante a Primeira Intifada.


Ele viu o processo de Oslo acabar confinando-o ainda mais dentro de sua cidade e da Cisjordânia, impondo restrições cada vez maiores à sua movimentação e, por essa razão, foi uma das pessoas que se opuseram a Oslo. Ele previu o que isso faria com os palestinos nos territórios ocupados. Viveu também a Segunda Intifada. E foi justamente a segunda dimensão de sua vida que me convenceu de que ele deveria estar no centro do livro: a história de como procurou por seu filho no dia do acidente. Não havia como contar essa história sem explicar todo o sistema de dominação que ele precisou atravessar, um sistema de postos de controle, de estradas segregadas, de permissões e de identidades com cores diferentes, que o impediu até mesmo de verificar se seu filho estava em hospitais próximos, onde lhe disseram que ele poderia estar.


Esses dois aspectos da vida dele, tanto sua trajetória pessoal quanto a busca pelo filho no dia do acidente, me convenceram de que ele deveria ser o centro deste livro.


Como foram as conversas com Abed Salama?


As conversas com Abed foram muito profundas. Passamos mais tempo juntos, ao longo de vários anos, do que com praticamente qualquer outra pessoa fora de nossas famílias.

E muitas dessas conversas foram muito íntimas. Às vezes, parecia mais uma sessão de terapia do que uma entrevista formal. Nesse processo, desenvolvi uma conexão muito forte com Abed e uma grande admiração por ele.


Você também conta a história de outras pessoas que estiveram direta ou indiretamente ligadas ao acidente. Como foi unir o processo investigativo com o literário?


Sempre foi claro para mim que o objetivo deste livro era alcançar pessoas que talvez não se importassem com Israel-Palestina, que talvez não soubessem nada sobre o assunto. O trabalho precisava, antes de tudo, ter sucesso como uma obra literária para atingir esse objetivo maior de despertar as pessoas e mostrar como é a vida dos palestinos nos territórios ocupados.


Então, para mim, nunca houve dúvida de que minha principal tarefa era escrever uma história comovente e, em segundo lugar, transmitir as informações que eu queria compartilhar.


A história sempre teve que vir primeiro, porque, se não fosse assim, eu falharia nesse objetivo maior de alcançar pessoas que ainda não estão envolvidas com a questão Israel-Palestina.

Os muros também são personagens dessa história? O que eles significam na prática e qual mensagem silenciosa eles passam aos palestinos e ao mundo?


Bem, o muro tem sua própria seção no livro e é quase como um personagem, por assim dizer, na história. Eu diria que todo o sistema de apartheid é um personagem por si só na narrativa, e era muito importante para mim descrever como essa comunidade, essas crianças da pré-escola, seus pais, seus professores e alguns dos médicos, assistentes sociais e outras pessoas que, de alguma forma, estavam ligadas a esse acidente, foram confinados em guetos murados, e como toda a política israelense, há muitas e muitas décadas, pode ser resumida em uma ideia central: máximo de terra, mínimo de árabes.


Esse é o princípio orientador que impulsiona tanto os assentamentos israelenses quanto o traçado do muro, os lugares que são isolados por ele. E a ideia básica é que, onde há palestinos em número tão grande que parece muito difícil e muito custoso para Israel colonizar essas áreas com judeus israelenses, essas regiões acabam sendo cercadas por muros e controladas de fora. E isso é verdade para essa comunidade de Anatote, de onde vêm os pais e as crianças que estão no centro da história.


Por outro lado, áreas com baixa densidade populacional são a prioridade número um para os assentamentos israelenses. Essas são muito mais fáceis de tomar, e é nelas que se veem os maiores esforços dos colonos, especialmente nos últimos anos, para ocupar grandes extensões de terra. É simplesmente mais fácil. Há algumas exceções a esse princípio, como Hebron e Jerusalém, por causa de sua importância religiosa para os judeus israelenses.


O que a história de crianças queimadas em um acidente trágico e a excessiva demora de socorro dizem sobre Jerusalém? Por quê?


Muitas pessoas não percebem que Jerusalém é, na verdade, o coração do projeto de assentamentos. Mais da metade dos colonos israelenses vive na região da Grande Jerusalém. É onde o projeto de assentamento foi mais bem-sucedido. E uma das razões pelas quais essa área é uma prioridade tão grande é que Israel sabe que, se cercar completamente Jerusalém com grandes assentamentos israelenses, tornará impossível a criação de um Estado palestino, que exigiria, no mínimo, que Jerusalém Oriental fosse sua capital.


Então, as pessoas no centro dessa história vivem na região da Grande Jerusalém, em um lugar que está sendo lentamente engolido pelo Estado de Israel para criar cada vez mais assentamentos e infraestrutura para esses assentamentos, incluindo uma estrada segregada, com tráfego israelense de um lado e palestino do outro, que corta bem ao lado dessa comunidade.


Muitas das crianças e dos pais que estavam naquele ônibus são residentes de Jerusalém, vivendo nesse gueto murado. Eles pagam impostos ao município de Jerusalém, mas praticamente não recebem nenhum serviço, porque a política de Israel é negligenciar completamente esse gueto, entrando nele basicamente apenas como força policial.


E o que aconteceu no dia do acidente foi um conjunto de consequências totalmente previsível, sobre o qual muitas pessoas já haviam alertado. Houve precedentes, incidentes semelhantes ocorreram antes e depois. É claro que tragédias acontecem: acidentes, incêndios, eventos normais em qualquer comunidade. Mas, quando essa comunidade está isolada por muros e é deliberadamente negligenciada, essas tragédias se tornam muito piores. Neste caso específico, levou mais de 30 minutos para que os primeiros caminhões de bombeiros israelenses chegassem ao local.

Como o prêmio Pulitzer contribui para divulgar e ampliar essa história e qual a importância desse reconhecimento? Por quê?


Espera-se que o Prêmio Pulitzer traga mais leitores para o livro e exponha um número maior de pessoas a uma história que, de outra forma, elas poderiam ignorar, e esse foi o objetivo de todo este projeto: alcançar pessoas que se tornaram insensíveis ou indiferentes ao sofrimento dos palestinos, um sofrimento que milhões de pessoas ao redor do mundo estão, de alguma forma, ajudando a perpetuar por meio das ações de seus governos.

Reprodução

“Um dia na vida de Abed Salama - Anatomia de uma tragédia em Jerusalém”
• De Nathan Thrall
• Tradução de Daniel Turela Rodrigues
• Zahar
• 296 páginas
• R$ 89,90 (capa comum) / R$ 39,90 (e-book)

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