ENTREVISTA

Sandro Veronesi fala sobre Flip, suas carreiras e admiração por Jorge Amado

Autor de 'O colibri' e 'Setembro negro', escritor italiano Sandro Veronesi participa de mesa da Flip na próxima quinta-feira (31/7)

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Sob a luz do irlandês Samuel Beckett (1906-1989) – “na minha escuridão pessoal ele brilhará para sempre” –, uma forte conexão com a literatura latino-americana, que vai além de sua admiração pelas obras do peruano Mario Vargas Llosa (1936-2025), do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) e do baiano Jorge Amado (1912-2001), e com uma carreira recheada de livros impactantes e premiados, vide “Caos calmo” (2005) e “O colibri” (2019), o italiano Sandro Veronesi desembarca no Brasil para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Ele participa da mesa 6, “A extraordinária vida comum”, ao lado do cearense Pedro Guerra (autor de “O maior ser humano vivo”, de 2024, pela Editora Record), na próxima quinta-feira (31/7), a partir das 19h.

Nascido em 1959, em Florença, Veronesi soma mais de 20 obras, incluindo romances, contos, poemas e ensaios, e vem ganhando cada vez mais popularidade no Brasil, recentemente muito em função de “O colibri” e “Setembro negro” (2024), ambos lançados no país pela Autêntica Contemporânea, respectivamente, em 2024 e 2025.

Vencedor do Strega – o mais importante prêmio italiano de literatura – em duas ocasiões – com os romances “Caos calmo” e “O colibri” –, Sandro se notabiliza por narrar dramas que têm como fio-condutores as relações dentro de uma família e pessoas ao redor desse núcleo.

Em “O colibri”, por exemplo, o escritor faz uso de narrativa em primeira e terceira pessoas (que, por vezes, se confundem) ou mensagens trocadas pelas personagens por meio de cartas, e-mail, telefone e aplicativos de celular, além de não se limitar a uma linha cronológica, voando pelo tempo (e espaço) no decorrer de mais de 300 páginas. O romance tem como protagonista Marco Carrera, o “colibri”, apelido que ganhou de sua mãe, e transita pelas várias fases de sua vida, incluindo as relações com seus pais e seus irmãos, suas companheiras e sua filha e sua neta. “Setembro negro” também trata de relacionamentos (e tragédias), só que de forma distinta, tendo Gigio Bellandi como o ator central de uma história guiada por tristezas e alegrias (dependendo das circunstâncias).

“E, literalmente, não consigo pensar em escrever sobre outra coisa”, conta Sandro Veronesi, em entrevista ao Pensar, a respeito dessas relações, também embasadas em várias facetas do luto. “O que tento relacionar, ao escrever sobre morte e perda em geral, é o ‘mistério do luto’, como Freud (1856-1939) o chamou. (...) Parece normal perder anos para enfrentar a morte de uma pessoa amada, mas não é. Pelo contrário, é um mistério – é como uma prisão voluntária. Isso é muito interessante para mim”, destaca. Confira mais a seguir.


Gostaria de saber como está sendo o ano para você. E qual a expectativa para participar da Flip?
Grandes expectativas, porque todo mundo diz que a Flip é um dos festivais literários mais incríveis do mundo.

O que conhece e o que mais o agrada do Brasil, incluindo a literatura? Sei que gosta de ler Jorge Amado. Poderia falar um pouco a respeito dessa conexão com a literatura de Amado?
Seria mais correto falar das minhas conexões com a literatura latino-americana, especialmente durante os anos 70 e o início dos 80, quando, na Europa, o romance era intelectualmente subestimado pelas mentes mais brilhantes. Em contradição com a onda europeia da "morte do romance", na América Latina foram escritas e publicadas obras-primas de verdadeiros gênios do romance, como Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e muitos outros. Dentre eles, Jorge Amado, o qual descobri lendo “Dona Flor e seus dois maridos” (1966), Tereza Batista cansada de guerra” (1972) e “Tieta do agreste” (1977). Isso permitiu que minha paixão pelo romance fosse alimentada por obras contemporâneas.

No Brasil, suas obras possuem grande repercussão e apreço pelos leitores. “O colibri” é um dos mais ovacionados, não apenas no Brasil como em várias partes do mundo. Esse tipo de reconhecimento, de tantos países, chega a você de que forma e como é para você receber tantos comentários positivos vindos de tantos países?
É uma experiência bem recente para mim, pois meu impacto internacional vem lentamente aumentando ao longo de mais de 30 anos. Devo dizer que prefiro essa experiência do que o oposto, que seria ser aclamado mundialmente com o primeiro ou segundo livro e depois perder leitores lentamente pelo resto da vida.

Sobre seus romances, é muito interessante e impactante a forma e o conteúdo com que você descreve as relações entre pessoas, sobretudo dentro de uma família ou de várias famílias. A relação entre pai e filho; pai e filha; marido e esposa; entre irmãos. E como vai a fundo nessas relações.
Venho de uma família italiana "normal" do século XX, uma família doce e cuidadosa. No entanto, o único pensamento sobre uma família disfuncional, as notícias sobre as grandes tristezas e os conflitos na vida de outras pessoas, além da experiência de ler vários livros excelentes da literatura clássica e não clássica, focados na infelicidade familiar... Tudo isso foi suficiente para criar uma espécie de "trauma imaginário" em mim. E, literalmente, não consigo pensar em escrever sobre outra coisa.

O luto também é evidenciado em suas obras. Aliás, em “O colibri”, se faz presente de várias maneiras, como na forma como Marco Carrera encara as mortes de seus familiares, como Irene, sua irmã mais velha. E a forma como as mortes impactam na relação com outras pessoas, como com seu irmão Giacomo. O que pode nos dizer a respeito do luto e das relações das personagens em seus romances? E, mais especificamente, em “O colibri”?
O que tento relacionar, ao escrever sobre morte e perda em geral, é o "mistério do luto", como Freud o chamou. Na verdade, os seres humanos são a única forma de vida em toda a Terra que considera tão dolorosa e trágica a separação dos objetos amados. Parece normal perder anos para enfrentar a morte de uma pessoa amada, mas não é. Pelo contrário, é um mistério – é como uma prisão voluntária. Isso é muito interessante para mim.

Sobre sua carreira, nos fale quando passou pela sua mente se dedicar à escrita. E como vem sendo ao longo dos anos. O quanto o mundo muda com a literatura, e o quanto a literatura muda com o mundo e com nós mesmos?
Eu já sonhava em ser escritor quando criança, mesmo quando decidi cursar arquitetura na universidade. Abandonei a arquitetura logo após a formatura para me dar uma chance; e tive sorte. Agora posso dizer que a literatura é o cerne da minha vida há 40 anos. Mas deixe-me dizer que ela (referindo-se à literatura do autor) não foi capaz de mudar nada no mundo – e que eu, pessoalmente, persisti com minhas ideias, muitas vezes em oposição ao próprio mundo. Portanto, posso dizer que meu engajamento tem um sentido, sim, mas nenhuma utilidade.

Como é para você, enquanto escritor, o tema “Inteligência Artificial (IA)”? De que forma você a vê? Como um acessório, uma ferramenta, uma ameaça, uma progressão tecnológica?
Ainda não sei nada sobre IA, assim como a maioria de nós. Como funciona? O que quer dizer com "IA generativa"? É real ou não o risco de que a IA possa alcançar uma forma de vida autônoma e uma autoconsciência? Enquanto eu não souber essas coisas, não posso opinar. E não confio em quem as tem sem conhecê-las.

Em seus romances, há a mesma citação de Samuel Beckett, em que, mesmo sem poder continuar, a gente continua, prossegue (“Não posso continuar. Continuarei”, presente no livro “O inominável”, de 1949, de Beckett). Queria saber do impacto da literatura de Beckett em sua vida e o quanto este trecho serve de inspiração.
Beckett é apenas uma estrela na escuridão para mim. Existem outros, mas Beckett está lá há 40 anos, e acho que na minha escuridão pessoal ele brilhará para sempre.

Falando novamente sobre “O colibri”, além do conteúdo tão forte, é muito interessante como as relações são apresentadas, por meio de uma narrativa que mescla o autor em primeira pessoa, cartas, e-mails, mensagens de aplicativos etc. Isso parece dar ainda mais força à história, com saltos no tempo para frente e para trás.
Essa liberdade que tomei, assim como muitas outras escolhas, vem diretamente da Masterclass Latino-Americana que recebi nos meus primeiros anos: "Em um bom romance, você pode fazer o que quiser. O problema é compô-lo. O problema é o estilo. O problema é a linguagem. Mas você é absolutamente livre". Isso me foi ensinado pelos autores que mencionei há pouco, durante a gloriosa temporada pela grande literatura latino-americana.

Como vem sendo a repercussão de “Setembro negro”, outra obra publicada no Brasil? E o que pode nos falar sobre o processo de criação da história?
O romance recebeu respostas satisfatórias, tanto de críticos quanto de leitores comuns. Não foi tão importante quanto “O colibri”, mas também não era isso o que se esperava. Estou satisfeito com a oportunidade que tive de ir além do possível em “O colibri”, mantendo meu estilo, minha maneira de ver o mundo. Diante disso, descobri que meus leitores me permitiram ocupar um espaço além do meu volumoso romance anterior.

Além de romances, você já escreveu outras publicações como ensaios e roteiros. Como é transitar por tantos territórios e conhecer, aprender e ensinar sobre tantos temas?
É a experiência que me permite declarar que o romance é a disciplina mais complicada, poderosa, difícil, surpreendente e emocionante de toda a escrita.

O que o futuro o aguarda? Quais são os planos para o segundo semestre do ano e também para 2026?
Creio que vou publicar um livro de contos.

Muito obrigado pela entrevista! Seja bem vindo ao Brasil.
Obrigado pelo seu interesse.


Colibri

Marco Carrera é apelidado de "colibri" (ou beija-flor) por sua mãe, de forma carinhosa, como uma forma de atenuar sua baixa estatura e os problemas de crescimento, assim como é citado na página 15 e em outros tantos momentos do romance. O protagonista, inclusive, aos 14 anos, se submete a um tratamento experimental para obter uma estatura mais condizente com sua idade.

A alcunha também remete à capacidade de o personagem permanecer firme em um turbilhão de dramas, incluindo o luto de seus pais e sua filha, e ao pequeno pássaro que se move rapidamente, mas parece suspenso no ar.

A história de "O colibri" transita por todas as fases da vida de Marco, por meio de vários recursos de narrativa, e realça as relações que mantém com membros de sua família e amigos.

Trechos de livros

“Como se faz para narrar a deflagração de um grande amor quando se sabe que acabou mal? E como se faz para descrever aquele, entre os dois, que é enganado – porque já no início há um engano –, sem que pareça um idiota?”
O colibri’

“Foi quando Marco Carrera se deu conta de que aquela associação com os aviões, feita por seu pai a respeito do ano de seu nascimento, era, na realidade, uma profecia: não havia notado isso antes, quando escapara de um desastre aéreo, nem quando se casara com uma comissária de bordo, achando que ela também havia escapado do mesmo desastre; ao contrário, percebia isso nesse momento, ao ver-se culpado de uma única acusação entre cem que lhe eram notificadas – não tanto sua fuga, quando um caça da aeronáutica militar da base vizinha de Grosseto havia produzido o estrondo sônico acima de sua cabeça, quanto o que pensara por poucos segundos, espoliado pelo susto, enquanto arfava apoiado em um pinheiro, olhando com ansiedade para a sebe de pitósporos que o separava do jardim dos vizinhos. Digamos dez segundos: Luisa, Luisa, Luisa, Luisa, Luisa, Luisa, Luisa, Luisa, Luisa, Luisa...”
‘O colibri’ 

“As coisas preciosas são tuteladas pelo pudor e pelo comedimento: o pudor havia caído, o comedimento havia mudado, e isso teria seu peso nos acontecimentos dos meses seguintes”
‘Setembro negro’

“O abraço não terminava mais. Suas mãos despenteavam meus cachos e beliscavam os nervos finos do meu pescoço. ‘Coitadinho’, repetia. Eu abraçava seu quadril, mas estava paralisado. Gostava de ir à praia e gostava que meu pai me abraçasse daquele modo e me chamasse de ‘coitadinho’, como acontecia no filme do coelho invisível ao qual assistimos juntos na televisão; mas em primeiro lugar, aqueles dias não haviam sido uma tortura para mim e, em segundo – e sobretudo –, fiquei admirado com o fato de minha mãe ter me ouvido e até visto – ‘em pé, de frente para a parede’ – enquanto eu brincava com minhas palavras preferidas. Como era possível? Ela sempre estava atrás de Gilda, e eu sempre ficava atento, sempre mantinha a porta fechada e pronunciava as palavras em voz baixa: ‘como ela podia saber?”
‘Setembro negro’

Sandro Veronesi na Flip

Mesa 6 - "A extraordinária vida comum" (com Pedro Guerra)
Auditório da Matriz
Quinta-feira (31/7)
A partir das 19h
Mediação de Gabriela Mayer


Fichas dos livros

‘O colibri’
De Sandro Veronesi
Autêntica Contemporânea
336 páginas
R$ 79,80

'O colibri'
'O colibri' Autêntica Contemporânea/Divulgação

‘Setembro negro’
De Sandro Veronesi
Autêntica Contemporânea
280 páginas
R$ 74,90

'Setembro negro'
'Setembro negro' Autêntica Contemporânea/Divulgação

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