Fernando Rinaldi
Especial para o EM
Faz alguns anos que a literatura nacional parece atravessar um dos seus momentos mais vibrantes, com a afirmação crescente da nossa bibliodiversidade e o surgimento de muitas vozes promissoras. Tem se destacado, entre os nomes que vem renovando o cenário literário, o da poeta e romancista paulistana Lilian Sais, que lança o romance “A cabeça boa” (DBA). Após seis livros publicados, vários deles reconhecidos por prêmios importantes, Lilian iniciou, com “Palavra nenhuma” (Círculo de Poemas), o que chamou de sua “Tetralogia da perda”. “A cabeça boa” abre caminho para os próximos desdobramentos da série, que deve se completar com um novo livro de poemas, previsto para o segundo semestre, e um romance inédito no ano que vem.
Se nos poemas de “Palavra nenhuma” a figura paterna é constantemente evocada, em “A cabeça boa” a perda exposta é de outra ordem — segundo a autora, o que se perde ali é o chão. A narrativa do romance não é linear nem busca o realismo. Em vez de uma grande trama, o livro apresenta fiapos de situações distribuídos em fragmentos não numerados e salpicados de nonsense. Eles retratam a protagonista, também chamada Lilian, circulando por alguns poucos espaços: seu apartamento no décimo terceiro andar, o hospital onde a mãe foi internada antes de morrer, o hospital que ela visita ao sentir um inchaço doloroso no pescoço, uma farmácia.
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O edifício Baroneza, onde Lilian mora sozinha, fica em uma zona fronteiriça, próxima a uma linha de trem. Logo no início do romance, ela vê uma égua tomando chuva sobre os trilhos e não sabe com qual sinalizador (verde, amarelo ou vermelho) deve avisar os demais moradores. Durante as visitas à mãe no hospital, conhece uma prima que, muitos anos depois, telefona perguntando sobre um suposto jantar que teriam combinado. A partir daí, desfilam-se cenas curtas, sem ancoragem temporal definida, que apenas indicam possibilidades de sentido. Não há um chão firme, mas antes uma espécie de superfície aquosa sobre a qual a autora lança pedras (ou perdas?), deixando que os significados ressoem.
Ao dar seu próprio nome à protagonista, Lilian sugere que algo da realidade invade sua ficção. O uso da segunda pessoa, contudo, provoca um deslocamento. Não estamos diante de relatos da autora, mas também não propriamente de uma personagem que se afasta de qualquer resquício do real no pacto de leitura. A segunda pessoa, assim como certos capítulos compostos por uma única frase entre aspas — sem indicação de quem fala ou a quem se dirige —, reforça a ideia de uma retórica íntima que acentua a(s) alteridade(s) no caldeirão de uma subjetividade instável.
O título do livro vem de uma lembrança da protagonista-narradora-autora com seu pai, que, quando a levava para a escola, pedia que fizesse operações matemáticas com as numerações das casas por onde passavam, como forma de exercitar a mente e mantê-la “boa”. Na memória, coisas se perdem, mas também é onde guardamos o que perdemos: “Daqui a alguns dias o vergão que acaba de nascer começará a sumir, como a mamãe, como o trem. Como a égua. Esse pensamento a entristece. Já perdeu tanta coisa, agora isso. Viver, de todo modo, vive-se. Mas a que custo? É difícil dizer.”
A narrativa tangencia o binômio saúde-doença e se torna cada vez mais fantasmagórica, sugerindo que a fronteira geográfica também pode ser uma representação dos limites entre a vida e a morte, ou entre o que se deixa dizer e o que não pode ser dito. Assim, assistimos a todo momento a tensões serem construídas nas páginas: entre os personagens e entre as instâncias narrativas, mas sobretudo um tensionar do próprio fazer literário, entre as lacunas e o que pode ser preenchido. Tudo o que é dito, mesmo em frases supostamente simples, parece querer dizer outra coisa, pois logo a partir do começo do livro outra dinâmica é instaurada. Os crescentes absurdos do enredo apontam para alegorias que recusam uma definição única, e os diálogos, que poderiam muito bem estar em peças do Ionesco, reforçam o lado cômico do estranho.
O absurdo do romance se ancora, porém, em escolhas nada gratuitas da autora, e nenhuma palavra é usada em vão: uma pesquisa rápida nos leva a descobrir que Baroneza foi, por exemplo, a primeira locomotiva a vapor no Brasil. Já a paronomásia égua/água parece funcionar como uma condensação de sentido que, ao final, estará a serviço de uma cena poderosa que, como várias outras, também pode vir a distensionar o tensionado.
O escritor português Gonçalo M. Tavares definiu brilhantemente os fragmentos como fábricas de produzir inícios. E é isso que parecemos acompanhar em “A cabeça boa”: a cada um desses capítulos enxutos, um constante recomeço da narrativa em um movimento espiralar. Para onde? Assim como o trem que Lilian vê de sua janela, sentimos que o enredo está indo “certamente para algum lugar”. No entanto, ao final, só você poderá dizer o que entendeu dessa pequena pérola que se espraia muito além da leitura.
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Ao final, é água, é égua, é apenas o começo do caminho.
FERNANDO RINALDI é mestre pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP, e autor de “Dueto dos ausentes” (Reformatório), finalista e menção honrosa no Prêmio Mix Literário 2024.
Entrevista/Lilian Sais
(autora de “A cabeça boa”)
“Joguei minhas memórias em um todoemoldurado pelo absurdo, pelo imaginativo”
Antes de seguir para Paraty, onde dividirá na Flip a mesa “Caprichos e relaxos” com o poeta Fabrício Corsaletti na próxima quinta-feira (31/7), a escritora paulistana Lilian Sais respondeu às perguntas do Pensar do Estado de Minas.
Como nasce “A cabeça boa”?
Uma vez eu li uma frase que dizia que um livro sobre tudo seria um livro sobre nada. Fiquei pensando muito nisso, porque sempre me interessei muito por livros que apresentam narrativas abertas e indeterminadas, meio indefinidas – não à toa que Franz Kafka e Mario Bellatin estão entre os escritores que mais me interessam. Mais de um ano depois de ler isso, tive contato com o livro “Silêncio”, do John Cage, que tem uma parte que justamente se chama “Indeterminação” e é incrível. Fiquei muito mobilizada por essa leitura e comecei a escrever “A cabeça boa” nesse mesmo dia. Eu tinha acabado de perder o meu pai e estava pensando muito sobre vida e morte, saúde, bem-estar. Os primeiros trechos do livro foram escritos a partir disso.
Poderia apresentar aos leitores a sua tetralogia?
Eu a chamo de “tetralogia da perda”. Isso porque a perda é muito mais presente no nosso cotidiano – e, em algum sentido, muito mais estável – do que o luto: crianças perdem dentes e brinquedos, pessoas perdem a hora, perdem o ônibus, o peso, o cabelo, o Brasil perdeu as últimas Copas do Mundo. O que estou tentando dizer é que perder está mais diluído na vida. A perda, no caso do fracasso, é inclusive mais difícil de admitir que o luto. “Eu estou de luto” é, em algum lugar, mais fácil de dizer do que “Eu fracassei”.
Nos quatro livros que dedico ao meu pai, muitas coisas são perdidas. Há a perda da memória, de referência, de uma casa. Costumo dizer que em “Palavra nenhuma”, plaquete de poemas publicada pelo Círculo de Poemas em 2024, perde-se o pai e, com ele, a eloquência. Eu queria que esse conjunto de poemas fosse uma homenagem para ele, uma espécie de presente póstumo. No segundo livro da tetralogia, o romance “A cabeça boa” (DBA Literatura, 2025), perde-se o chão, no sentido de território, de sentido, de identidade e de orientação. Depois tem outros dois livros: “Diário da casa nova” (Edições Macondo, no prelo) é um livro de poemas em que se perde tudo, das chaves de casa ao luto – o que acho triste e bonito ao mesmo tempo. Por fim, vem o romance “As regras”, a ser publicado pela DBA Literatura no início do ano que vem, que amarra todas essas perdas. Nele eu revisito a minha história com meu pai a partir dos jogos de futebol que assistimos juntos.
Por que decidiu dedicar o livro à memória de seu pai?
Esses quatro livros que mencionei são dedicados a ele porque foram escritos a partir de sua morte e revisitam um pouco do modo como ele viveu e de como nos relacionávamos. Por exemplo, ter a cabeça boa era um valor para o meu pai. Ele dizia que precisávamos exercitar a cabeça como se fosse um músculo, para ter a cabeça boa a vida toda, como ele dizia ter.
Quais são as fronteiras delimitadas e atravessadas pela narrativa de “A cabeça boa”?
Eu acho que, como o livro aposta numa indefinição programática, as pessoas que leem o romance podem interpretar essas fronteiras de diferentes formas. Há quem diga que as fronteiras sejam entre vida e morte, ou entre loucura e sanidade, por exemplo.
“É tão difícil se lembrar das coisas”, você escreve. “Há coisas de que você se lembra bem, claro.” Quais foram as lembranças pessoais que foram convertidas em narrativa?
Muitas. Eu diria que mais da metade do livro parte de coisas que vivi ou que ouvi alguém contar que viveu. Mas nesse livro especificamente eu não estava interessada em construir um relato autobiográfico, por isso joguei essas memórias em um todo emoldurado pelo absurdo, pelo imaginativo, que é outra possibilidade de escrita que me interessa muito. A Djaimilia Pereira de Almeida disse uma vez que nada é mais íntimo do que a imaginação, e eu concordo. Poucas coisas dizem mais sobre nós do que aquelas que somos capazes de imaginar.
Quando percebe que as suas palavras serão destinadas à poesia ou a prosa?
Quando me sento para escrever. Uma ideia é só uma ideia. Quando começamos a enfileirar as palavras no papel vamos entendendo como e o quanto aquilo rende. O texto vai encorpando e encontrando o seu caminho. Mas eu não coloco prosa e poesia em gavetas muito diferentes, não. Para mim a passagem de uma para a outra é muito fluida. No final, é comum meus romances serem tidos como “muito poéticos”, do mesmo modo que meus livros de poemas não raro apresentam narrativas, como é o caso de “Palavra nenhuma”.
Trecho
“Você tem dificuldade de lembrar se já cruzou a fronteira, tanto que não saberia dizer exatamente o que há do outro lado. Gosta de pensar que são éguas. Tampouco sabe quem demarcou aquele limite, quem com um graveto traçou o risco no chão e disse que para cá é assim e para lá é assado. Também há éguas deste lado. Do décimo terceiro andar, você pôde observar quando, há duas noites, uma chuva assustadoramente forte tomou a rua, alagando tudo em poucos minutos. O trem não passou, mas sobre os trilhos alagados você viu o que viu. Era, cada vez mais, uma égua. Diferente do trem, ela não estava indo ou vindo, ela simplesmente estava. Sobre o limite, na fronteira, tomava a chuva, aceitava a chuva, molhava-se.”
Sobre a autora
Nascida em 1985 em São Paulo, Lilian Sais é poeta e romancista. Entre suas principais obras estão “O funeral da baleia” (Patuá, 2021), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, “Motivos para cavar a terra” (Cepe Editora, 2022), vencedor do Prêmio Cepe Nacional de Literatura,“O livro do figo” (Edições Macondo, 2023), semifinalista do Prêmio Oceanos, e “Palavra nenhuma” (Círculo de Poemas, 2024).
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“A cabeça boa”
• De Lilian Sais
• DBA
• 88 páginas
• R$ 64,90