Contra o povo de um lugar

Livro analisa clichês e preconceito contra nordestinos

Em "Só sei que foi assim", o potiguar Octávio Santiago desvenda o que se esconde por trás dos estereótipos e outras formas de 'enlatamento' do Nordeste

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João Vítor Marques


Solitário, o mandacaru teima em desafiar aquele sol escaldante que há dias não dá trégua. Sustenta-se de pé, sabe-se lá como, sobre o chão rachado em meio a um ou outro pedaço de grama amarelada. O gado que sobreviveu por lá não pasta mais. E a vida? É um eterno caminhar à procura d’água.


Não é difícil identificar a região pretensamente descrita nas frases acima. De tão repetidas, tornaram-se o retrato único de um complexo espaço que abriga nove estados, quase 60 milhões de pessoas e uma riqueza econômica, cultural e geográfica que se escondem atrás dos estereótipos. E é esse Nordeste, melhor representado se grafado no plural, que dá origem ao livro“Só sei que foi assim: a trama do preconceito contra o povo do Nordeste” (Autêntica), do jornalista e pesquisador potiguar Octávio Santiago.

A obra recorre à história da formação econômica, geográfica e política do Brasil para explicar como, afinal, surgiu e se consolidou a xenofobia e o racismo contra as populações nordestinas. Com uma linguagem acessível, o autor aproxima a academia - já que o texto é fruto de uma pesquisa de doutorado - e produtos culturais populares que se tornaram clássicos da literatura, do cinema e da televisão nacionais. A começar pelo título, menção ao “Auto da Compadecida”, do paraibano Ariano Suassuna.

“Não tem como enfrentar o preconceito sem informação, e o livro vem para responder uma pergunta: ‘Como nasceu esse preconceito?’. Buscamos entender quais interesses foram atendidos quando esses estereótipos começaram a ser moldados. É a busca pelo ‘foi assim’, inclusive com a frase de Ariano”, explica Octávio.

Ao longo de cinco atos, a obra desvenda o preconceito contra o povo do Nordeste ao mesmo tempo em que desfaz estereótipos que associam a região à seca, ao arcaico e ao subdesenvolvimento. Os capítulos passam pelas ondas migratórias rumo ao Sudeste, o descaso dos governos, as tentativas de embranquecimento, as narrativas de ódio na imprensa e a forma como os produtos culturais - alguns dos quais produzidos por elites nordestinas com objetivos bem definidos -, pontos centrais da xenofobia, que adquire novos contornos na atualidade.

“Só sei que foi assim”é o segundo livro de Octávio, depois de“Coisa fraca no sol não prospera”(2021). A obra é resultado de quatro anos de investigação no doutorado em Ciências da Comunicação na Universidade do Minho, em Portugal. De volta a Natal após os estudos na Europa e antes de participação na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o jornalista e pesquisador potiguar de 36 anos concedeu a seguinte entrevista ao Estado de Minas.

É uma região complexa, com nove estados, quase 60 milhões de habitantes e uma diversidade geográfica, linguística e cultural. Por que ainda assim se fala do Nordeste como se fosse uma coisa só?
Estamos falando de um ‘enlatamento’ do Nordeste. Eu acho que essa redução é proposital. Na hora que você reduz o Nordeste a uma coisa só, você reduz a região, você reduz a população e você reduz a complexidade dos problemas também, né? Isso diminui a força política. Se você observar, até hoje as coberturas eleitorais dizem assim: ‘Olha, em São Paulo a situação é essa, no Rio a situação é essa, em Minas Gerais a situação é essa e no Nordeste a situação é essa’. Então, é um projeto de redução mesmo. É tornar o Nordeste menor, tornar essa população menor e de pautá-lo apenas por uma única vertente, que é essa condição de flagelo, das secas, essa condição de retirância, essa condição de uma população deslocada. Quando presidenciáveis vão ao Nordeste, o discurso sempre vai ser pautado por essa ideia de que a água é o problema do Nordeste. Então, você reduz mais uma vez, né? Ao reduzir, você diminui a força cultural, política, social e econômica.

O tema do preconceito contra o Nordeste tem aparecido fortemente em anos de eleições presidenciais, principalmente a partir de 2014. A eleição talvez seja uma espécie de “justificativa” para os ataques de ódio que em outros contextos talvez fossem menos aceitáveis?
Nos períodos eleitorais, sobretudo nas eleições presidenciais, as justificativas pelo voto contra o PT muitas vezes não vêm em forma de análise fria, crua, elas vêm acompanhadas de uma forte carga xenofóbica e racista. Isso mostra que a intenção não é comentar, e sim depreciar, desqualificar, porque é um cômodo ter esse Nordeste, esse nordestino, hoje como o protagonista das decisões nacionais. Eu acho que essa vontade de falar já existe. Entendo que é a motivação política que desperta para a xenofobia ou para o racismo, mas são pessoas xenofóbicas e racistas que encontram nessa emoção política o fator que faltava para manifestarem isso publicamente. E também no sentido de se sentirem confortáveis quando outras pessoas também estão fazendo isso. E a gente vai falar um pouco de comportamento de grupo, né? Estudos de xenofobia virtual mostram que cresce quase 800% no período eleitoral. Tanto é que,em 2022, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) entendeu que a xenofobia é racismo, como mostramos no livro registros documentais de depreciação contra a população nordestina, colocando o nordestino como brasileiro de uma raça inferior, que era excessivamente miscigenado, por isso mesmo deveria ser preterido.

Muitas vezes esse tipo de xenofobia não aparece de forma escancarada, mas sim disfarçada…
Durante muito tempo, e hoje não é diferente, a gente ouve e lê muito frases que parecem ser elogios, mas que não são, que são xenofobia mesmo, né? Aquela coisa do: ‘Ah, você não tem cara de nordestino, não tem quem diga que é nordestino. Olhando assim, nem parece que é do Nordeste, você é muito competente, apesar de você ser do nordeste’.

São pretensos elogios, mas na verdade têm uma carga pesadíssima dessa ideia de que o Nordeste é menor, que o nordestino é inferior, deve ocupar um lugar de subalternidade e tem um padrão único. ‘Ah, aquele time é muito bom, apesar de ser do Nordeste’. Não há inocência nessa frase. Pelo contrário, é a reprodução de uma ideia que foi projetada, planejada, de que o ao Nordeste caberia um espaço menor, um espaço inferior.

A obra é dividida em cinco atos para explicar a origem e as características do preconceito. Logo no início, você aborda a migração interna de milhares de nordestinos em direção ao Sudeste, especialmente. Esse é um processo historicamente conhecido, que ainda existe. Numa avaliação do cenário atual, o que diferencia o processo migratório de hoje e as características do migrante atual em comparação com o do século 19 e, principalmente, 20? Podemos pensar também num movimento de volta dos nordestinos para casa?
Nos séculos 19 e 20, as narrativas eram mais simples, até porque era um pensamento que a gente arrastou do Brasil colônia: se tem uma atividade econômica em crescimento e outra em declínio, abandona-se a outra e foca-se apenas na que está em ascensão. Era muito fácil entender essa linha de deslocamento: o Nordeste que sofria mais com a estiagem, e as pessoas deslocavam para o Sul. Hoje, esses fluxos migratórios são mais complexos, do mesmo modo que há pessoas do Sul do Sudeste se mudando para o Nordeste, como há também muitos nordestinos retornando para casa especialmente no pós-pandemia, com a possibilidade de trabalho remoto. A mudança desse perfil é muito clara. Hoje, a gente não chega em São Paulo num pau de arara, né? Chega no avião com muitos diplomas e com a capacidade de assumir o cargo de liderança de empresa, quando não somos o próprio dono ou CEO da empresa. Para uma geração que foi muito alimentada com esse ideal de que esse nordestino é menor é difícil de aceitar isso, aceitar que o nosso lugar agora não é mais o pré-estabelecido. Os estereótipos cumprem essa função. Não existe neutralidade quando se fala de estereótipos. Eles cumprem a função de dizer qual lugar a gente deve ocupar. Resta saber se o resto do país está pronto para essa mudança, para entender esse novo lugar do nordestino. E eu percebo que não. Em 1988, Rachel de Queiroz (escritora cearense) já falava sobre essa aceitação da nordestinidade como inadiável. O cinema ilustrou isso no filme“Que horas ela volta?”, quando Jéssica, filha de empregada doméstica, sai de Pernambuco em busca de uma vaga na faculdade em São Paulo e consegue.

Esse debate o tempo todo passa pelos estereótipos, algo que você aborda principalmente no ato 5 do livro. A gente entende que o perigo do estereótipo é pregar rótulos em uma população subjugada. Mas e quando essa própria população reforça os estereótipos sobre ela?
A ideia de Nordeste é um esforço discursivo acima de tudo. E alguns símbolos vão aparecer naturalmente, porque fazem parte da paisagem ou da nossa história, mas eles vão sendo ressignificados. O mandacaru, que foi tão posto em cena no cinema dos anos 1960, por exemplo, vai sendo ressignificado para a gente comunicar outra coisa. Ora, o mandacaru está lá solitário, sobrevivendo às dificuldades. Esse mandacaru somos nós mesmos, somos a resistência, né? É construído um discurso em cima de uma acusação.

Primeiro nos acusam de sermos um solo infértil onde apenas um mandacaru resiste. E a gente transforma isso num discurso de resistência. Faz parte de um processo de defesa, com erros e acertos. No primeiro capítulo, eu começo usando a frase de Clarice (Lispector, escritora que passou parte da vida no Recife): ‘Já que sou, o jeito é ser’. Então, já que essas acusações chegaram até mim, agora eu vou ressignificá-las para me apropriar de um discurso, de uma ideia de pertença, de uma ideia de território. Muito dessa construção foi internalizada e a gente não consegue perceber o que é nosso mesmo e o que foi dito que era nosso. E a gente vem com esse discurso pronto, usando a primeira pasta que a gente tem, que nos ensinam na escola. A gente vai acessando apenas esse Nordeste reduzido, sem considerar as particularidades. Mesmo escolas no Nordeste não trabalham isso. Não trabalham o que é a Bahia, o que é Pernambuco, o que é o Maranhão em profundidade.

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O Estado de Minas é um veículo de comunicação mineiro, colado no Nordeste, mas parte daquilo que consideramos o centro econômico do país. O que essas pessoas do Sudeste podem ou devem fazer para não reproduzir os preconceitos?
A busca deve ser por informação, sabe? Para a gente atualizar essa página. Não conseguimos imaginar o Sudeste como um só. Com o mesmo sotaque, com a mesma gastronomia, com os mesmos aspectos culturais, ou pior, imaginar todo mundo do Sudeste com o rosto único. É fazer o exercício contrário, que faria com que as pessoas do Sudeste concluíssem como é impossível reduzir o Nordeste a um só. A um só rosto, a um só hábito, a uma só cultura. Da mesma forma, a gente está falando de quatro estados do Sudeste e de nove estados do Nordeste. O Nordeste não é um lote. É uma região com 60 milhões de pessoas e que precisa ser pensado nesse sentido. O livro oferece essa oportunidade de se informar sobre o assunto e fazer uma reflexão de que fazer essa redução é dar continuidade a um pensamento errôneo, impróprio, que já atravessa mais de 100 anos e que a gente já deveria ter deixado para trás.

Reprodução

“Só sei que foi assim:a trama do preconceito contra o povo do Nordeste”
• De Octávio Santiago
• Autêntica
• 256 páginas
• R$ 64,90

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