ISOLADO EM SI MESMO

"Uma ilha" é um livro desconcertante e incômodo

Romance da escritora sul-africana Karen Jennings narra encontro entre faroleiro solitário e imigrante sobrevivente de naufrágio

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Maria Fernanda Vomero

Especial para o EM

Há mais de duas décadas, Samuel trabalha como faroleiro em uma pequena ilha. Aprendeu a conviver com a natureza indômita do lugar: as pedras traiçoeiras, as ervas daninhas, o solo arenoso, as aves que sobrevoam e atacam a horta, uma paisagem moldada pelos ventos e tempestades ocasionais. Só não se habituou ainda à presença implacável das águas oceânicas, que sempre lhe pareceram ameaçadoras.

Quinzenalmente, recebe a visita de Chimelu e seu filho, responsáveis pelo barco de suprimentos e por lhe trazer notícias do continente. A ilha pertence a um país africano não identificado, que, de certo modo, reúne traços comuns a várias nações da região: o passado como colônia de algum país europeu; uma sangrenta guerra de independência; o governo independente derrubado por um golpe militar; uma ditadura longa e corrupta e, na atualidade, uma democracia ainda frágil que confronta índices altos de desigualdade socioeconômica.


Isso, porém, vai sendo revelado aos poucos, por meio das recordações de Samuel, cuja vida parece ter estado sempre à mercê das mudanças políticas pelas quais seu país passou. No presente da narrativa, ele é um homem idoso e solitário, que preenche os dias com pequenos reparos aqui ou ali, o cuidado com a horta e a atenção dada a uma velha galinha de penas vermelhas, constantemente atacada pelas demais. Vez ou outra, a placidez de seu cotidiano é perturbada pelos corpos de migrantes africanos que o mar traz; pessoas cujas embarcações afundaram antes de alcançar a costa continental.

“Uma ilha” (Bertrand Brasil), da sul-africana Karen Jennings, traduzido por Ana Ban, chega às livrarias brasileiras com a mesma discrição com que integrou a lista de semifinalistas do Booker Prize em 2021, distinção literária para obras em língua inglesa, já que havia sido publicado por uma editora independente e sua autora era, na ocasião, pouco conhecida do público anglófono. Trata-se de uma narrativa em tom sóbrio, com linguagem simples e direta e uma estrutura não linear na qual a voz onisciente se mantém muito próxima da perspectiva do faroleiro.

Certo dia, o mar traz não um corpo, mas um homem desacordado. E é esse evento – a necessidade involuntária de conviver com um outro, desconhecido – que produz um impacto emocional forte em Samuel. Lembranças de seu passado virão aos borbotões e, com elas, dor e ressentimento. Durante os poucos dias de relacionamento abarcados pela narrativa, Samuel vai encontrando no homem rastros de si mesmo, das humilhações que viveu, do mal-estar e do medo que sentia.

Desconcertante e incômodo, “Uma ilha” tem como contexto de fundo a despossessão programática infligida às populações africanas ao longo de décadas ou séculos por seus colonizadores. Samuel e o homem são frutos do colonialismo, um processo que nunca terminou de fato e que hoje também se traduz na questão dos refugiados. Entre ambos, há uma série de suposições e o vazio da linguagem. Para o faroleiro – já que não sabemos o que o desconhecido pensa ou sente –, impõe-se o desafio do acolhimento.

No passado, Samuel assistiu ao pai lutar pela independência do país. Mais tarde, ele mesmo tomou parte em uma insurreição. E esse é um ponto importante a destacar na narrativa criada por Karen Jennings: o faroleiro não se envolveu com facções rebeldes por convicções ideológicas ou ideais políticos, mas por ter encontrado um meio de canalizar seu ressentimento e sua raiva. A violência, para ele e naquele momento, foi o único idioma de protesto possível. E um modo de também ocultar o temor e o desamparo sempre presentes.

O poeta e religioso inglês John Donne dizia que “nenhum homem é uma ilha”. A ficção elaborada pela autora sul-africana, porém, coloca essa ideia em xeque. Depois de tanto tempo vivendo isolado de tudo, acompanhado apenas por suas memórias e rodeado pela imensidão ameaçadora do oceano, será que Samuel não se tornou ele mesmo uma ilha? Apesar dos temas complexos que aborda, a narrativa não apela a especulações metafísicas nem a motivações abstratas. Tudo é muito concreto, bruto, quebradiço.
Em tempos de recrudescimentos ideológicos, que insistem na oposição de um “nós” contra “eles”, a leitura de “Uma ilha” pode render reflexões bem-vindas e provocativas. Também nos estimula a pensar nas consequências da manipulação política de sentimentos como a culpa, a vergonha, a indignação ou o rancor em prol de grupos dominantes que desejam se perpetuar no poder. E, por fim, ao espelhar a despossessão colonial à questão dos imigrantes que buscam refúgio, a escritora nos leva a indagar o que terra, lar e pertencimento significam e representam nos dias de hoje.

MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)

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reprodução


“Uma ilha”
• De Karen Jennings
• Tradução de Ana Ban
• Bertrand Brasil
• 224 páginas
• R$ 54,90

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