A conexão brasileira do autor alemão que ganhou o Nobel e atacou o nazismo
Nos 150 anos de nascimento e 70 anos de morte de Thomas Mann, um mergulho na obra do Nobel de Literatura de 1929 mostra romances como "A montanha mágica"
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Siga noDesde o início deste ano em que são lembradas oito décadas do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e os conflitos do século 21 seguem sem sinal de trégua, tenho recorrido à leitura de “Ouvintes alemães! Discursos contra Hitler” (Zahar, 2009), do escritor Thomas Mann (1875-1955), premiado com o Nobel de Literatura em 1929. A cada frase, busco entender melhor, à luz da pena – e da voz – do autor alemão, um pouco mais sobre o período nefasto em que a humanidade mergulhou em trevas e saiu esfacelada com 70 milhões de vidas perdidas em combates, bombardeios, campos de extermínio, execuções e outras formas de matar.
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Oportuno também, hoje, iluminar nossos caminhos, em mundo tão turbulento, com o talento do autor de “Os Buddenbrook”, “Doutor Fausto” e “A montanha mágica”, entre outros reeditados pela Companhia das Letras. São obras para ler ou reler, refletir, conversar com os amigos e, claro, partir para ver filmes, a exemplo do esplêndido “A morte em Veneza”, escrito em 1912, dirigido por Luchino Visconti e exibido no Brasil com o título “Morte em Veneza”. Da mesma editora, acaba de chegar às livrarias “José e seus irmãos”, começo da tetralogia há muito aguardada pela legião de admiradores de Mann.
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Adversário ferrenho do nazismo, assim falou Mann em 23 de fevereiro de 1943, num dos seus discursos radiofônicos transmitidos dos Estados Unidos pela rádio BBC (British Broadcasting Corporation) e registrado em “Ouvintes alemães!”: “Um dia, a história terá uma opinião dividida entre sobre o que é mais repugnante, ações ou as palavras dos nazistas. Também será difícil decidir quando essa corja insultou a humanidade: quando mentia ou quando dizia a verdade. Em certas bocas, até mesmo a verdade se torna mentira, um meio de enganar – e não se pode mentir de modo mais repugnante do que dizendo a verdade.”
Neste 2025, as palavras soam atuais. E conhecer o conjunto da obra presta dupla reverência à memória de Thomas Mann nos 150 anos do seu nascimento e 70 anos de morte. Ler esse e outros livros, portanto, mais do que importante, é prazeroso, e, sem exagero, bem próximo de nós. Afinal, estamos diante das centenas de páginas escritas pelo filho de uma brasileira, Julia da Silva Bruhns Mann, a Dodô, natural de Paraty (RJ).
Autor de artigos sobre “A morte em Veneza” e “José e seus irmãos”, o professor de alemão e teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Georg Otte, destaca uma particularidade de Thomas Mann que reverbera um século depois. “Ele era uma antena, um radar. O que escreveu em ‘A montanha mágica’ (1924), por exemplo, prenunciava a ascensão do fascismo, a guerra, a insegurança”, conta o alemão naturalizado brasileiro.
Considerando Mann um dos seus autores favoritos – “um mago da linguagem, um super escritor” – Georg Otte ressalta, em “A montanha mágica”, os embates ideológicos dos personagens Settembrini, o italiano humanista, e o judeu Naphta, duas forças em tensão permanente. A citação de ambos é a deixa para Otte falar sobre fanatismo político e o mundo atual, onde os Estados Unidos, país onde sempre imperou a democracia, vive ameaça no governo de Donald Trump. Ao mesmo tempo, acrescenta, a extrema direita ganha terreno na Europa, incluindo a Alemanha. “E temos o assalto à Ucrânia feito por Putin”. No campo da literatura, está uma “certa ironia”, presente em muitos personagens criados por Mann. “Há um contraste entre o propósito de um personagem e o que realmente acontece com ele.”
PALAVRAS E VOZ
Os discursos radiofônicos de Mann contra Hitler foram transmitidos regularmente na voz de um alemão destituído de sua cidadania pelo regime nazista e obrigado a se exilar devido a suas firmes convicções. Em 1940, após dois anos nos EUA, ele recebeu um convite da rádio BBC para comentar os acontecimentos da guerra e influenciar os ouvintes alemães.
Com palavras e voz, deu a medida do “sujeito miserável que ainda se diz ‘o Führer da Alemanha’”. Certo de que muitos ignoravam a política de extermínio nazista, descreveu os campos de concentração, “o que nenhum ser humano com sentimentos pode acreditar se não vir com os próprios olhos”. Sabia que “a Alemanha de Hitler não tem tradição nem futuro”, e reiterava essa confiança aos compatriotas.
Antes de combater o nazismo em textos escritos com garras afiadas, Mann seguia uma linha conservadora. Em 1918, no fim da Primeira Guerra Mundial, publicou “Confissões de um apolítico”. Mas o cenário mudou com a derrota alemã no conflito, colapso das monarquias e outros fatores que fizeram o escritor abrir os olhos. Mais tarde, em 1933, com a ascensão do nazismo, deixou a Alemanha, e se exilou nos Estados Unidos. Retornou à Europa em 1952 para morar na Suíça até o fim dos seus dias.
Em tempos de tanta velocidade na informação como vivemos hoje, é interessante saber como os discursos de Mann chegavam à Europa. Ele explica no prefácio da primeira edição de “Ouvintes alemães! Discursos contra Hitler (1940-1945)”. Segue o trecho:
“No outono de 1940, a British Broadcasting Corporation (BBC) entrou em contato comigo e me convidou para transmitir regularmente a meus compatriotas pequenos discursos em que eu deveria comentar os acontecimentos da guerra e buscar influenciar o público alemão na direção das convicções que tantas vezes expressei.
Eu achei que não devia perder essa oportunidade de fazer contato, embora frouxo e precário, com o povo alemão e também com os habitantes dos territórios subjugados, pelas costas do regime nazista que, assim que teve poder para isso, me privou de todos os meses de exercer influência tem intelectual na Alemanha – um convite particularmente atraente porque minhas palavras não seriam transmitidas dos Estados Unidos em ondas curtas, mas de Londres, em ondas longas, e portanto poderiam ser ouvidas pelo único tipo de rádio que o povo alemão tinha permissão de ter. Era ainda sedutor escrever outra vez em alemão, sabendo que as palavras escritas poderiam alcançar seu objetivo sob a forma em que tinham sido concebidas – em alemão. Concordei em enviar mensagens mensais e, após algumas tentativas, pedi que meu tempo de emissão fosse ampliado de cinco para oito minutos.
No início, as transmissões eram realizadas da seguinte maneira: eu telegrafava meus textos para Londres, onde eram lidos por um funcionário da BBC que falasse alemão. Por minha sugestão um método mais complicado, porém mais direto e, portanto, mais simpático, foi logo adotado. Tudo que eu tenho a dizer é agora gravado no ‘Recording Departament’ da NBC, em Los Angeles; a gravação é enviada a Nova York por via aérea e então transferida, por telefone, para outra gravação em Londres, onde é executada diante do microfone. Dessa forma, não apenas minhas palavras, mas minha própria voz é ouvida por aqueles que se atrevem a escuta clandestina.”
REEDIÇÃO DE “JOSÉ E SEUS IRMÃOS”
A Companha das Letras vem reeditando, desde 2015, toda a obra de Mann, sendo o mais recente lançamento “José e seus irmãos”. O primeiro volume da tetralogia – sim, são quatro histórias – traz “As histórias de Jacó” e “O jovem José”. No total, conforme a editora, serão três tomos. Os originais foram publicados entre 1933 e1943, no período de exílio do autor alemão nos Estados Unidos.
“Expandindo o relato do livro de “Gênesis”, Manncriou uma das maravilhas da literatura moderna, um romance de formação ambientado na Palestina bíblica e no Egito faraônico”, de acordo com divulgação da editora. E ainda: “Refletindo em suas profundezas simbólicas a ascensão do fascismo, assim como as forças de uma humanidade encarnada na figura do herói que, ao emergir do poço ao qual foi lançado por seus irmãos, ascende à condição de ‘provedor’ de todo um reino. Com a luminosa história de José, o autor de ‘A montanha mágica’ buscou, em suas próprias palavras, tirar religião e mitologia ‘das mãos do fascismo’ e amoldá-las à esfera humana.”
Com tradução de Agenor Soares de Moura, o primeiro volume de “José e seus irmãos” (“As histórias de Jacó” e “O jovem José”) inclui notas de Reginaldo Gomes de Araújo, posfácio de Irmela von der Lühe e organização de Marcus Vinicius Mazzari.
Desde 2015, foram lançados “A morte em Veneza” (1912) e “Tônio Kröger” (1903), num único volume, “Doutor Fausto” (1947), “Os Buddenbrook” (1901), “A montanha mágica” (1924), “As cabeças trocadas” (1940), “Confissões do impostor Félix Krull” (1954), “O eleito” (1951), “Contos”, “Sua alteza real” (1909), “Mário e o mágico” (1930) e “José e seus irmãos 1”
Trecho do livro
“O JOVEM JOSÉ”
“José tinha dezessete anos, sendo aos olhos de quantos o viam o mais formoso entre os filhos dos homens. A falar com franqueza, não é com agrado que discreteamos sobre formosura. Não é enfadonho o que se desprende tanto da palavra como da ideia? A beleza não é um pensamento ao mesmo tempo pálido e elevado, um sonho de pedante? Supõe-se existirem leis reguladoras de beleza. Mas uma lei fala ao entendimento, não às emoções, porquanto estas refogem à tutela daquele. Daí a insipidez da beleza perfeita que não deixa nada que se possa perdoar. Precisam as emoções ter algo que se lhes perdoe, se não se voltam para outra parte, com um bocejo. Ninguém, a não ser o pedante com o seu amor ao que é consagrado convencional, pode render tamanha homenagem à mera perfeição a ponto de se entusiasmar por ela; é difícil atribuir-se muita profundeza a essa espécie de entusiasmo. Uma lei obriga e edifica exteriormente; a compulsão interior não é coisa de lei, mas de mágica. A beleza é uma mágica exercida sobre as emoções e, como tal, sempre meio ilusória, muito vacilante e efêmera em seus efeitos. Coloque-se uma cabeça feia sobre um corpo formoso: este já não será formoso em nenhum sentido que possa impressionar as emoções, a não ser, talvez, no escuro, e então trata-se de um engano. Na verdade, quanta ilusão, quanta trapaça, quanto engano andam metidos no reino do belo! E por que razão? Porque esse negócio é, ao mesmo tempo, o reino do amor e do desejo; porque o sexo se imiscui e determina o conceito de beleza. O mundo está cheio de histórias de moços vestidos de mulheres, virando a cabeça dos homens, de moças de casaco e de calças despertando paixões nas pessoas do seu próprio sexo. E em cada caso desses, uma vez descoberto o embuste, as emoções arrefecem, porque a beleza perdeu seu objetivo prático. Talvez, até, que a formosura humana, em seus efeitos sobre os sentidos, não seja outra coisa senão a magia do sexo, o próprio sexo que tenha se tornado visível, de modo que se possa com mais propriedade falar de um homem completo, de uma mulher perfeitamente feminina, do que de um ente formoso. Somente mercê de uma vitória alcançada sobre si mesmo é que um homem ou uma mulher pode referir-se à beleza de um seu semelhante. São raros – embora, naturalmente, se deem e possam ser provados – os casos em que a qualidade efetiva das emoções triunfe de uma evidente falta de alcance prático.”
“Um dia, a história terá uma opinião dividida entre sobre o que é mais repugnante, ações ou as palavras dos nazistas. Também será difícil decidir quando essa corja insultou a humanidade: quando mentia ou quando dizia a verdade. Em certas bocas, até mesmo a verdade se torna mentira, um meio de enganar – e não se pode mentir de modo mais repugnante do que dizendo a verdade.”
Thomas Mann, em 1943, dois anos antes do fim da Segunda Guerra Mundial
“JOSÉ E SEUS IRMÃOS - VOLUME 1 “AS HISTÓRIAS DE JACÓ” E “O JOVEM JOSÉ”
• De Thomas Mann
• Tradução deAgenor Soares de Moura e organização de Marcus Vinicius Mazzari
• 584 páginas
• R$ 139,90 (livro físico) e R$ 49,90 (e-book)