A MONTANHA DE MANN

A infância brasileira de Júlia, mãe de Thomas Mann, em Paraty

A mãe do escritor nasceu no Brasil e levou para a Alemanha lembranças que marcaram sua vida e influenciaram a memória literária da família

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Tão bom quanto ler um livro é falar da nossa experiência com a obra, comparar o pensamento do autor com nossas crenças, viajar no tempo sem escalas, indo direto ao ponto “de partida” para misturar imaginação e realidade. Pois foi assim, há alguns anos, que estive em Paraty, no litoral fluminense, única e exclusivamente para conhecer o casarão onde viveu a mãe de Thomas Mann, Julia da Silva Bruhns (1851-1923), apelidada de Dodô na infância, e, após o casamento, senhora Júlia da Silva Bruhns Mann. Ela nasceu em Paraty, tudo indica entre as localidades de Graúna e Rio Pequeno, durante mudança da família. No livro autobiográfico “Da infância de Dodô” (“Aus Dodo kindheit”), de 1903, Julia narra os primeiros anos “na selva, ao lado do Oceano Atlântico, ao Sul do Equador, entre macacos e papagaios”.

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O sobrado do século 18, à beira-mar, se encontrava bem degradado quando estive lá, há três anos. Depois foi reformado, embora continue fechado à visitação, conforme me relatou, recentemente, a psicóloga Ana Laura Moraes Martinez, residente em Ribeirão Preto (SP). Integrante de uma legião de admiradores de Thomas Mann, ela conta que, quinzenalmente, “a casa é aberta para ser limpa por dentro, e arejada”. Ana Laura ficou emocionada ao visitar a propriedade (particular), que está à venda. “O casarão do século 18 é lindo e imponente, envolvido de um lado pela exuberante mata atlântica e, do outro, por um mar translúcido e calmo verde-esmeralda.”

A imaginação do repórter foi povoada pelos personagens criados por Mann: o adolescente Tadzio, de “A morte em Veneza”, com sua mãe, Hans Castorp, de “A montanha mágica”, a senhora Antoinette Buddenbrook, com seu “vestido preto, listrado de cinza-claro, sem enfeites”. Valeu contemplar o casarão da antiga Fazenda Boa Vista ou Engenho Boa Vista (hoje distante três quilômetros de Paraty), famosa na época pela produção de aguardente.

A cada ângulo, fiquei pensando na infância de Dodô “naquele pedaço do paraíso”, como bem descreveu o escritor João Silvério Trevisan no romance “Ana em Veneza”. Céu, mar, terra, pitangueiras, bananeiras, animais pendurados nas árvores, outros na toca. O coração da brasileirinha sempre aos pulos, batendo no compasso da natureza.


Dodô viveu no casarão até a morte da mãe, Maria Senhorinha da Silva. Não passou muito tempo e o pai de Júlia, o abastado fazendeiro alemão Johann Ludwig Hermann Bruhns, naturalizado brasileiro com o nome de João Luiz Germano Brunhs, levou a menina e irmãos para seu país natal, mais exatamente para Lübeck. Nessa cidade, Júlia adotou o alemão como primeiro idioma e esqueceu de vez a língua materna.

Casada aos 17 anos com o senador e comerciante alemão Thomas Johann Heinrich Mann, de 29, Júlia teve cinco filhos: Heinrich (também escritor de renome), Thomas, Julia, Carla e Viktor. O caçula escreveu sobre a infância da mãe no Brasil.

A história de Júlia Mann, de forma especial a infância passada na cidade fluminense, é fonte inesgotável para pesquisadores e ficcionistas. Na minha viagem, levei o livro “O regresso de Júlia Mann a Paraty”, da autora portuguesa Teolinda Gersão. Vamos, aqui, com calma. O título, pode-se dizer, é uma licença poética, pois Júlia nunca retornou ao Brasil após a partida, entre os 7 e 8 anos, em seguida à morte da mãe durante o parto, para viver definitivamente na Alemanha.

A obra cria três histórias distintas com personagens históricos (Sigmund Freud, Júlia Mann e Thomas Mann, que, vale dizer, nunca veio ao Brasil) e fatos reais. Thomas também nunca explicitou suas raízes brasileiras, com raríssima citação em sua obra. Em “Confissões do impostor Félix Krull”, escreveu sobre um casal de gêmeos, “jovem cavalheiro e jovem dama”, num hotel: “Tinham uma aparência quase que ultramarina, rosto moreno, talvez fossem sul-americanos de origem espanhola ou portuguesa, argentinos, brasileiros – são meras conjeturas.”

No livro “Terra mátria – A família de Thomas Mann e o Brasil” (2013), de Karl-Josef Kuschel, Frido Mann e Paulo Astor Soethe, há o trecho de uma carta de Thomas Mann a Karl Lustig-Prean, datada de 8 de abril de 1943, sobre o Brasil:

“Cedo soou em meus ouvidos o louvor de sua beleza, pois minha mãe veio de lá, era uma filha da terra brasileira; e o que ela me contou sobre essa terra e sua gente foram as primeiras coisas que ouvi sobre o mundo estrangeiro. Também sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma certa corpulência desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda não tenha visitado o Brasil. A perda de minha terra pátria ('mein vaterland') deveria constituir uma razão a mais para que eu conhecesse minha terra mátria ('mein mutterland'). Ainda chegará essa hora, espero.”

O Engenho Boa Vista foi visitado várias vezes pelo neto de Thomas Mann, o escritor Frido Mann, de 85 anos, que expôs o interesse de instalar ali a Casa Mann, semelhante à existente em Lübeck para guardar a memória da família. A empreitada não vingou.

Muito já se escreveu, e há muito ainda para se registrar, sobre a trajetória de Thomas Mann (1875-1955), incluindo conturbadas questões familiares, posições políticas, as duras críticas a Adolf Hitler, inquietações do espírito, o exílio nos Estados Unidos, onde trabalhou como professor na Universidade de Princeton, o suicídio do filho Klaus, em 1949, e o retorno, em 1952, à Europa após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

HISTÓRIAS DE MÃE E FILHO

1851 - Em 14 de agosto, Júlia da Silva Bruhns nasce em Paraty, entre as localidades de Rio Pequeno e Graúna. Era filha do alemão Johann Ludwig Hermann Bruhns e da brasileira Maria Senhorinha da Silva. Entre 7 e 8 anos, após a morte da mãe, Júlia e seus irmãos vão para Alemanha. Na época, havia epidemia de cólera no Brasil.


1869 - Júlia se casa com o senador e comerciante alemão Thomas Johann Heinrich Mann. O casal teve cinco filhos.


1875 - Em 6 de junho, nasce em Lübeck, no Norte da Alemanha, Paul Thomas Mann, o escritor Thomas Mann, segundo filho do casal.


1897 - Thomas Mann começa a escrever “Os Buddenbrook: Decadência de uma família”, publicado quatro anos depois.


1905 - Em 11 de fevereiro, Thomas se casa, em Munique, com Katia Pringsheim. O casal teve seis filhos.


1912 - Publica “A morte em Veneza” e começa a trabalhar em “A montanha mágica”, lançado em 1924.


1923 - Em 11 de março, Júlia Mann morre na Alemanha, aos 71 anos.


1926 - Início da redação da tetralogia “José e seus irmãos”.


1929 - Em 10 de dezembro, Thomas Mann recebe o Prêmio Nobel de Literatura.


1933 - Com a ascensão dos nazistas ao poder, o escritor parte para a Holanda, no início do seu exílio. Depois segue para Zurique, na Suíça.


1938 - Em setembro, muda-se para os Estados Unidos. Trabalha como professor de humanidades na Universidade de Princeton. Torna-se cidadão americano em 1944.


1938 - Em setembro, muda-se para os Estados Unidos. Trabalha como professor de humanidades na Universidade de Princeton. Torna-se cidadão americano em 1944.


1947 - Primeira viagem à Europa depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O retorno definitivo ocorre em 1952.

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