Fabiano Lana
Especial para o EM
São muitas as fechaduras a colocar uma chave, girar, para abrirmos uma porta e adentrarmos nas riquezas da produção cultural brasileira. Uma dica imprescindível nessas quase infinitas possibilidades seria ouvir os discos do cantor e compositor Milton Nascimento lançados entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1980, principalmente, com generosas doses de genialidade que seguiram como lampejos em décadas posteriores.
Por alguma razão misteriosa, esse artista comunica-se de maneira física e metafísica com a trajetória musical brasileira dos cantos do Brasil colônia até a bossa-nova, dialoga com a música de câmara de Bach ou Villa-Lobos, com o rock dos Beatles, das bandas progressivas inglesas e do pop norte-americano, com o samba, com o sincretismo, com a música religiosa dos templos, com a poesia de Carlos Drummond de Andrade e de Manuel Bandeira, com o jazz de John Coltrane e de outros gênios americanos. Com o canto dos índios, com as igrejas barrocas de Minas Gerais, com as esculturas de Aleijadinho. Milton Nascimento é um movimento em sintonia com o universo. É um artista que representa a sua época e para sempre se funde com o Brasil.
Leia: EM localiza Tonho e Cacau, a dupla que estampou a capa do Clube da Esquina há 40 anos
Nascido no Rio de Janeiro, no ano de 1942, em uma família originária de Juiz de Fora (MG), e criado por outra família de classe-média no interior de Minas, sem formação musical formal pelo que se saiba, Milton é o clichê do universal que fala de sua aldeia. Suas canções, desde o início, dizem respeito a Três Pontas, município em que foi criado em Minas Gerais; ao trabalhador da “Canção do sal”; à urbanização das áreas rurais e como o fenômeno alterou as amizades profundas, em “Morro velho”. Milton fala da morte, em “Sentinela”; da escravidão vivida por seus ascendentes, em “Pai grande”, nesse caso, autor de música e letra. “Eu sou da América do Sul, sei, vocês não vão saber, mas agora sou cowboy, sou do mundo sou Minas Gerais”, diz, em “Para Lennon e McCartney”, o Beatle que nunca o havia ouvido pelo menos até o final de 2023, quando finalmente articularam um encontro entre esses dois artistas arquétipos após uma apresentação do inglês em Belo Horizonte.
Harmonicamente mais rico do que o colega de Liverpool, Milton se cerca de letristas, poetas, músicos imaginativos e habilidosos. Mas suas composições têm algo de inusitado e singular. São escalas simples que se intercalam com modos milenares, quebras de ritmo imprevistas, polirritmia, corais de crianças, influência de músicos latinoamericanos, harmonias que podemos tocar, mas não conseguimos decifrar. De onde vieram?
Leia: Conheça a trajetória de Cafi, autor da capa de 'Clube da Esquina'
Junto a todos seus talentos pessoais, Milton se uniu a alguns dos mais capazes músicos, o que acrescentou às suas composições a presença de arranjos inventivos, acordes invertidos, solos melódicos, cordas, e metais, que levaram suas canções já sofisticadas a ainda outra dimensão.
Milton já concedeu dezenas e dezenas de entrevistas. Curiosamente nunca foi esclarecedor sobre seus métodos de composição. Não se sabe se se trata de um primitivista com doses de genialidade ou de um conhecedor erudito dos labirintos harmônicos e melódicos. Talvez nem uma coisa nem outra. Milton continua um mistério para os que querem ir além da mera apreciação e se aprofundam na maneira como ele concebe sua obra. Algo é possível dizer: Milton construiu seu próprio universo. A música é uma excelente oportunidade para se conceber um mundo particular que não só corre paralelamente, mas que nos protege das intempéries da vida.
E Milton não está sozinho na sua genialidade. O Brasil conta com uma constelação de compositores comparáveis a Milton pela relevância de sua obra, como Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Bosco, Alceu Valença, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Dorival Caymmi, Dolores Duran, Rita Lee, Monsueto, Assis Valente, Lupicínio Rodrigues, Lô Borges, Guinga, Fagner, Pixinguinha, Egberto Gismonti, Marcos Valle, Hermeto Pascoal, em uma lista que é impossível de completar sem fazer enormes injustiças com quem foi deixado de fora. Ainda tivemos a sorte de contar com cantoras que elevaram a obra desses artistas a um patamar ainda superior: como Gal Costa, Maria Betânia, Nana Caymmi, ou Elis Regina.
A crítica especializada hoje reconhece o disco “Clube da Esquina”, de Milton e Lô Borges, como o melhor já produzido no Brasil em todos os tempos. Essas escolhas de obras supremas mudam a depender dos jurados e da ocasião, mas nesse álbum há uma sequência estupenda de obras-primas como “Tudo que você queria ser”, “Cais”, “Nuvem cigana”, “San Vicente”, ou “Nada será como antes”. Esta última música, em particular, tem um bom pacotão do que Milton Nascimento é capaz: groove, harmonias sofisticadas, quebra inesperada de ritmos, instrumentistas habilidosos como Toninho Horta, voz celestial, colaboração de um letrista inspirado, Ronaldo Bastos.
O filósofo Immanuel Kant, um verdadeiro estraga-prazeres da filosofia, poderia não concordar com quase nenhuma das afirmações anteriores e apresentaria as razões. Ele não concedia a qualquer explanação sobre estética o status de conhecimento. Seriam pura subjetividade. O escritor Ariano Suassuna assim interpretou a posição de Kant sobre a questão:
“(...) os juízos estéticos não emitem conceitos: decorrem de uma simples reação do contemplador diante de um objeto, e não da propriedade deste. Por isso, quando eu digo “Esta rosa é bela”, este juízo exprime somente o fato de que tal rosa me agrada: eu não posso exigir, para ele, como para outro, o assentimento, a concordância geral, validade geral para aquilo que é resultado de uma simples reação pessoal minha”, (Suassuna. 1973, p. 70).
Kant, por outro lado, tinha consciência de que quem admira de maneira intensa uma obra de arte tende a exigir que sua opinião tenha validade objetiva. Por exemplo, se nos apaixonamos por um filme, por uma música qualquer, consideramos por um momento os detratores dessas obras quase como inimigos. Do ponto de vista estético, queremos que o que nos agrada profundamente também satisfaça a todos universalmente (inclusive, quando não gostamos de algo estético, gostaríamos que todos se posicionassem da mesma maneira). Kant então chega à conclusão de que a beleza, satisfação determinada pelo gostar, é uma característica universal buscada por todos os humanos. A arte repousaria nesse universal.
Podemos dizer também que o gosto pela arte revela mais sobre quem gosta do que a peça em si. As nossas referências estéticas são uma maneira profunda de como nos relacionamos com o mundo em torno de nós. As obras de arte que escolhemos para serem companheiras de vida podem indicar quem podemos ser. Até porque a fruição de arte é algo que a gente abraça para completar o nosso ser.
A unanimidade artística é um conceito impossível pela diferença das pessoas. Todos os integrantes do que se convencionou chamarmos de Música Popular Brasileira (MPB) sempre sofreram contestações estéticas. O pesquisador José Ramos Tinhorão, que se autodenominava marxista, questionava movimentos como a bossa-nova e outros surgidos nos anos 1960, considerando-os burgueses e alienantes. Para Tinhorão, por exemplo, a bossa-nova era a transformação do samba carioca no âmbito da classe-média, numa “pasta sonora informe” por causa da penetração norte-americana.
“As camadas médias não conseguirão, jamais, um caráter próprio, porque a sua característica é exatamente a falta de caráter, isto é, a impossibilidade de fincar determinado traço por longo tempo, em consequência da sua extrema mobilidade dentro da faixa situada entre a prestação de trabalho mecânico (salário mínimo) e a detenção dos meios de produção (grande capital financeiro e indústria). (Tinhorão. 1997, p. 90).
Mas o que revelou ser uma rachadura do Brasil profundo e as obras-primas de Milton Nascimento não tem a ver com as invectivas de Tinhorão. Foi um acontecimento mais prosaico. Na esteira das comemorações dos 40 anos do disco do “Clube da Esquina”, uma reportagem do jornal Estado de Minas localizou, num furo de jornalismo, as duas crianças que estamparam a capa do álbum – uma negra, representando Milton, e a outra branca, como se fosse Lô Borges.
A matéria, publicada em 2012, repercutiu razoavelmente nos meios que se interessam sobre cultura. Os meninos, então na casa dos 50 anos, chamados de Tonho e Cacau, eram trabalhadores do município de Nova Friburgo, a 130 km do Rio de Janeiro, onde foi gravado o disco. A matéria tinha um tom de grande descoberta a ser comemorada. Mas quem leu o texto com atenção à época pode ter ficado intrigado com a revelação, contida em entrevista, de que os modelos da foto não só não conheciam o disco como mal sabiam quem era Milton Nascimento. “É aquele moço que foi ministro?”, indagou um deles.
Leia: Milton e Lô Borges derrotam na Justiça meninos da capa do Clube da Esquina
As consequências da reportagem foram trágicas para quem imagina uma consagração de nossos principais artistas pela riqueza de suas obras (sempre com a ponderação de Kant) e a população brasileira. Tonho e Cacau processaram Miton Nascimento e Lô Borges por danos morais e uso indevido de imagem. Em 2013 a justiça decidiu que o caso prescreveu. Consola se iludir que ambos foram manipulados por advogados gananciosos.
Mas fica a dúvida: como uma obra sublime, para muitos o que de melhor a cultura brasileira já produziu do ponto de vista musical, ser por décadas ignorada pelas pessoas que a ilustraram na capa? Que divórcio haveria no Brasil entre nossos intitulados como os mais importantes autores e a população em geral? A estupefação fica ainda maior quando sabemos que Milton Nascimento não se limita a ser um artista experimental das décadas de 1960 a 1970, mas um compositor com uma gama de clássicos de nossa música popular, cantadas em festas, formaturas, comícios políticos e presente no rádio e na televisão. Podemos falar de “Maria Maria”, um símbolo da causa feminina; “Coração de estudante”, um dos hinos do movimento Diretas Já de 1983; “Canção da América”, onipresente nas formaturas de alunos da classe-média brasileira; “Nos bailes da vida”, a mais pedida nos botecos, entre tantas outras.
A explicação talvez esteja em dois livros que tratam do mercado fonográfico brasileiro e que se complementam. Eu não sou cachorro, não, de Paulo Cesar Araújo, e Cowboys do asfalto, de Gustavo Alonso. A obra de Araújo aborda o que se convencionou chamar de música “brega” brasileira, representada por cantores como Agnaldo Timóteo, Amado Batista, Waldick Soriano ou Nelson Ned.
Já o livro de Alonso versa mais sobre os nossos cantores sertanejos, dos primeiros caipiras ao que se chama hoje de sertanejo universitário. Artistas como Tonico & Tinoco, Milionário e José Rico, Chitãozinho e Xororó, Zezé di Camargo e Luciano, e duplas mais atuais, como Fernando e Sorocaba.
A questão é que do ponto de vista objetivo esses artistas “bregas” ou “sertanejos” sempre foram muito mais populares do que os músicos da chamada Música Popular Brasileira. Atraíram mais fãs, venderam mais discos, inclusive alguns tiveram carreiras internacionais bem-sucedidas. O lucro que geravam, inclusive, ajudou a financiar projetos mais “artísticos” das gravadoras, como os primeiros discos de Milton.
Porém, tais artistas, tidos como popularescos, sempre foram desprezados e diminuídos pelos cadernos culturais, pela classe média literalmente com canudo. Um menino de classe média dos anos 1970 a 1980 ouvia, sim, todas essas músicas malditas, mas no rádio da empregada doméstica – em geral, uma migrante do interior que dormia em um quarto com janelas minúsculas na casa ou apartamento de seus patrões – um resquício dos nossos tempos de escravagismo.
Nosso maior vendedor de discos da história do Brasil, Roberto Carlos, mesmo sendo acolhido por parte da chamada MPB, faz parte muito mais do mundo desse “verdadeiro” Brasil representado pelas obras de Alonso e Pereira. Após Roberto Carlos, estão, na ordem entre os maiores vendedores de discos da música brasileira, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Rita Lee (que soube sair do gueto universitário de elite), Benito de Paula, Tonico & Tinoco, Xuxa, Nelson Ned, Chitãozinho e Xororó e Milionário e José Rico.
Desbragadamente romântico, considerado cafona, Nelson Ned, nascido com nanismo, e com uma vida pessoal e profissional bastante conturbada, inclusive, via essa questão do divórcio de nossa música popular de elite e o chamado “brega” até com certo ressentimento. “Chico Buarque nasceu em berço esplêndido, foi criado na nata da cultura do intelectualismo. Ele, Nara Leão, exploravam o pobre (...). É muito bonito você cantar a desgraça alheia. Eu sempre cantei a minha desgraça, minha realidade social e espiritual. Eles cantaram a realidade social, mas não era a deles, eles sempre cantaram uma realidade social que não lhes correspondia. Eles são cafetões da miséria brasileira”, disse. (Barcinski. 2022, p. 79).
Autor de versos como “Yo te di tanto amor por um día/ Después sin querer, te perdí/ No pensé que tu amor dolería/ que también lloraría por ti”, Nelson Ned talvez seja o músico brasileiro com maior sucesso de público no exterior, tendo lotado duas vezes o Carnegie Hall, em Nova York, considerado o palco que celebrou a bossa-nova. Ned tinha entre os fãs desde o narcotraficante Pablo Escobar até o prémio Nobel de Literatura, Gabriel García Marques.
Se a história da música popular brasileira for contada por meio de mitologias e mistificações, a MPB estaria à esquerda e ritmos como o brega e o sertanejo à direita. Na verdade, no Brasil, sobrevalorizam-se opiniões políticas de celebridades, artistas e demais pessoas que costumam tocar seus cotidianos em um razoável grau de alienação.
Um caso interessante que mostra as contradições do Brasil está na biografia de Elis Regina – considerada por muitos nossa principal cantora – do jornalista Júlio Maria, Nada será como antes. Em 1967, no governo Costa e Silva, um ditador, havia uma guerra cultural entre a (a ser batizada) MPB, íntegra, profunda e pura, contra os alienados, americanizados e superficiais da Jovem Guarda, liderados por Erasmo e Roberto Carlos. Houve até a passeata “contra a guitarra elétrica”, em 1967, com a participação dos cantores Elis Regina, Gilberto Gil, Zé Keti e Geraldo Vandré, entre outros artistas.
A ditadura, entretanto, resolveu se posicionar na polêmica sobre o instrumento musical colonizador norte-americano: apoiar a MPB contra os barulhentos guitarristas de movimentos colonizados como a Jovem Guarda. "Deixando claro de que lado estava, o ministro Magalhães Pinto ofereceu um almoço na Casa de Rio Branco para anunciar que a estrutura do Itamaraty estaria disponível" (Maria. 2015, p. 123). Compareceram: Pixinguinha, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Elis Regina, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Nara Leão, e outros, ou seja, a nata da nossa música. Mesmo assim, a MPB é desde sempre associada à democracia, à esquerda, à resistência ao regime.
Sobrevive no Brasil o mito de que artistas têm conhecimento político superior aos demais cidadãos em assuntos político-administrativos. As campanhas eleitorais são uma prova disso. Em geral estão tão perdidos como cada um de nós. A ironia de 1967 é que poucos meses depois de liderarem o protesto, Gil e Elis começaram a se acompanhar de guitarras elétricas em suas canções. Passado mais um período, o compositor baiano, juntamente com Caetano Veloso, foi preso e exilado sob a acusação de desrespeitar o hino nacional. Por outro lado, pessoas pobres, subalternas, ouviam na casa do patrão compositores considerados de direita.
Ou seja, de uma maneira estabanada, o mito criado pelo poeta Oswald de Andrade de que somos seres antropofágicos, que deglutem o que vem de fora e regurgitam ao nosso modo, foi uma intuição perspicaz. Hoje a guitarra elétrica está em praticamente todos os estilos musicais ouvidos por qualquer classe social. Se não está presente, usa-se algo mais eletrônico e internacional, como samplers ou sintetizadores.
Algo fora do censo comum também apontado no livro de Pereira é que os artistas considerados bregas estiveram entre os mais censurados do Brasil durante a ditadura. Já Gustavo Alonso, autor de Cowboys no asfalto, admite que houve, sim, uma aproximação de cantores sertanejos com o regime autoritário brasileiro. Pondera que o regime, por causa do período de grande crescimento econômico observado no começo da década de 1970, era popular e mais admirado no interior, em áreas rurais, periferias, do que em regiões urbanizadas e ricas das grandes capitais onde se concentravam os admiradores da MPB.
Atualmente, os movimentos brega, de periferia, do interior, das regiões do agronegócio já são o mainstream da música brasileira (...). Talvez a dissociação entre ouvidos da intelectualidade e ouvidos da população continue (...).
Milton então segue como essa alegoria de um Brasil sublime, mas desconhecido por uma parcela razoável de seu próprio povo. Caso enviássemos para os alienígenas uma obra de Milton e caso os ETs viessem ao Brasil para conhecer a sociedade que criou a peça admirável, poderiam sofrer um enorme constrangimento ao descobrir que o artista segue ignorado por tantos.
Talvez o filósofo que mais respeitou e entendeu as obras de arte tenha sido Arthur Schopenhauer. Não estava interessado em definir critérios de valoração artística. Porém, acreditava que a arte era uma espécie de antídoto ao sofrimento intrínseco da vida. Em um mundo perpassado pela dor, pelo tédio, pelo desejo, a arte nos livraria da opressão das vontades e nos indicaria um momento de repouso que não há nas nossas trajetórias.
Muito além de todas as definições sobre o que é arte, das misérias da alma humana, das pressões de contradições do mercado, a arte de criadores como Milton Nascimento, mesmo quando triste, mesmo quando carregada de melancolia, inclui-se nos momentos em que é possível de fato usufruir – de maneira tênue e provisória – da existência.
“Brasil acima da lucidez: uma investigação jornalístico-filosófica Sobre o Brasil e os Brasileiros”
• De Fabiano Lana
• Editora Alta Books - Almedina - Edições 70
• 240 páginas
• R$ 80
• Lançamento no dia 12/9 (sexta-feira), às 18h30, na Livraria Quixote