“Não faltaram alertas.” A frase do cineasta Walter Salles que abre o prefácio de “Tomara que você seja deportado: uma viagem pela distopia americana” antecipa uma certa angústia que fica após a leitura das crônicas escritas pelo jornalista Jamil Chade na obra recém-lançada pela Editora Nós. É um livro-diário, testemunhal, sobre a campanha eleitoral nos Estados Unidos de 2024 e os reflexos dos primeiros meses da segunda gestão do presidente Donald Trump. “Retrata a construção de um projeto de desmonte da democracia”, afirma o autor, que considera o atual momento da sociedade estadunidense uma nova etapa dessa crise. “Inclusive, já posso adiantar que vários desses elementos que aconteceram depois (do lançamento) vão entrar na segunda edição, sem dúvida nenhuma.”
Em 47 crônicas, Jamil Chade organiza uma cronologia da estratégia de desinformação e disseminação de ódio que conduziu o então candidato e condenado na Justiça Donald Trump de volta à Casa Branca. Porém, com uma profundidade que o diferencia de uma coletânea de fatos: os relatos de moradores de vários estados – e de muitas nacionalidades – que o jornalista coletou durante meses de viagens pelos EUA, onde morou. “Tomara que você seja deportado” revela os impactos dos discursos e ações da extrema direita nas interações cotidianas dos cidadãos, reflexões sobre como o próprio sentimento de se reconhecer estadunidense tem sido alterado.
“A gente tem a impressão de que quando o ódio ou um discurso agressivo é feito contra uma minoria, que ele vai se limitar àquela minoria. Que apenas aquele grupo vai ser o alvo daquela situação. Mas o que a gente descobre, e o que eu descobri nesse ano lá, é que quando você promove o ódio como uma política de Estado, a expressão desse ódio, ou dessa xenofobia, ou desse racismo, ou dessa misoginia, vai surgir em locais absolutamente inesperados, contra todos”, relata Chade.
Casos como o do pastor mexicano Luis Valles, de um centro evangélico no Harlem, em Nova York, que disse ter recebido nas semanas seguidas à posse de Trump ligações de fiéis com “muito medo, principalmente as mulheres grávidas”. Ou de famílias em Boston (Massachusetts), San Antonio (Texas) e Chicago (Illinois) que optaram por se esconder em casa, faltando ao trabalho ou não deixando os filhos estudarem. “Tenho medo de mandar meu filho para a escola e nunca mais vê-lo”, relatou uma brasileira no capítulo “Pânico”.
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Se o livro detalha a formação de um projeto de desmonte da democracia desde a campanha presidencial, para Chade este primeiro ano de governo Trump é a execução do planejamento. “E nós já estamos vendo, com uma velocidade impressionante, a implementação do projeto. Ela já está acontecendo”, afirma o jornalista ao relembrar ações do presidente dos EUA e de aliados contra o Judiciário, órgãos públicos, instituições de ensino e a imprensa, com o objetivo de subjugá-los à Casa Branca.
No capítulo “A segunda Revolução Americana”, o livro se aprofunda no chamado “Projeto 2025”, um documento de 920 páginas escrito por mais de uma centena de aliados e ex-funcionários do governo de Donald Trump que descreve ações para, na prática, refundar o Estado americano. “Aquilo ali não é só um projeto ambicioso, é uma demonstração de que mesmo sendo derrotados na eleição, o ciclo eleitoral não é o seu limite. Eles não se dão por derrotados porque perderam uma eleição”, comenta Chade.
Um guia de governo
O “Projeto 2025” propõe iniciativas para ampliar o poder do presidente, de esvaziar a autonomia das agências estatais e do Judiciário, além de impedir a discussão de pautas como igualdade de gênero ou de raça em vários segmentos da sociedade – incluindo universidades, instituições de pesquisa e até empresas privadas. “Lembrando, que naquele projeto, que é basicamente um guia do governo Trump, está muito claro o seguinte: o fortalecimento do papel do presidente é um dos objetivos deste mandato. Ou seja, maior concentração de poder na mão do presidente, e é isso o que ele está fazendo”, afirma Chade.
Em “Aqui não pode acontecer”, livro lançado em 1935 por Sinclair Lewis (1885-1951) e citado por Chade em “Tomara que você seja deportado”, a crença das personagens principais de que o poder das instituições teria poder de barrar qualquer avanço do fascismo nos Estados Unidos ajuda a criar a atmosfera distópica da história. “Aqui na América isso não pode acontecer, de jeito nenhum! Somos um país de homens livres”, afirma, na ficção, o magnata Francis Tasbrough em resposta ao editor e dono do jornal Doremus Jessup. “Deixo esse período de quase um ano nos Estados Unidos com a mesma constatação que alguns se fizeram nos anos 1920 sobre o futuro do movimento autoritário: todos nós estamos ameaçados”, afirma Jamil Chade no encerramento de seu livro – um diálogo indireto com abertura do prefácio de Walter Salles. “Não faltaram alertas.”
“Tomara que você seja deportado: uma viagem pela distopia americana”
• De Jamil Chade
• Editora Nós
• 256 páginas
• R$ 79