Paulo Paniago
A vida real de um homem imaginário, anotou Sérgio Sant’Anna no prólogo do romance “Confissões de Ralfo”, ou a vida imaginária de um homem real, relativizou em seguida. Prólogo que, diga-se de passagem, antecede até mesmo a ficha catalográfica, numa inversão que demonstra o nível de comprometimento do escritor com algumas ideias. Quando lançou, há cinquenta anos, esse romance experimental, o primeiro da trajetória de escritor nesse gênero, ele era autor de dois livros de contos até então.
No formato de preferência curto, fossem contos ou às vezes experimentos difíceis de rotular (mistura de poesia, teatro, ou híbrido de peça com romance), Sant’Anna construiu reputação de escritor sólido e, quase sempre, preocupado com questões metalinguísticas, ou seja, o próprio ato de escrever estava na mira das inquietações que o moviam. Tome esse “Confissões de Ralfo”, por exemplo. O subtítulo provoca: “Uma autobiografia imaginária”. O que coloca a posição inevitável: é assim mesmo com toda autobiografia, no fim das contas, todas imaginárias em boa medida.
Leia: 'Se não tivesse morado em BH, talvez não fosse escritor', diz Sérgio Sant'Anna
Ralfo é Sérgio, portanto? Sim e não. É um personagem que se descola do criador para narrar-se enquanto personagem… de ficção. Ou seja, ele tem autoconsciência de ser ficcional, o que dá um nó no fundamento que sempre prevaleceu na literatura: o de que a autoconsciência era recurso para justamente atestar o realismo da narrativa, usado por grandes escritores como Miguel de Cervantes, Henry Fielding ou Laurence Sterne. Mas não Sérgio, ou melhor, não Ralfo. Ele sabe que não passa de palavras lançadas ao papel, o que causa um primeiro e fundamental desconforto e convoca a velha questão: mas então é o autor e apenas ele mesmo quem existe, talvez, e a única voz em cartaz é a dele, que nem se dá mais ao trabalho de disfarçar.
REVIRAVOLTAS
Ralfo se desdobra em vários capítulos dos muitos livros (seções, na verdade, que somam nove) para se encontrar, “cavaleiro andante de boas e péssimas intenções”, em movimento, à procura daquilo que movimenta uma narrativa: ações, sobretudo se vierem combinadas com pensamento denso.
O romance sempre teve a presunção de encontrar uma coisa nova e contá-la. Com Sant’Anna não foi diferente. Pretendia o exercício da liberdade que as narrativas podem propiciar, depois de tantos mergulhos em técnicas que buscaram sempre compreender a consciência humana, refiná-la, se possível, ou iluminar-lhe algum cantinho remoto e escuro.
Leia: Memorial Sérgio Sant'Anna: escritores e críticos analisam legado
Portanto, o primeiro recurso à mão, nem tão novo, é a paródia. Ralfo deixa para trás uma cidade qualquer, não nomeada (mas que lembra a Belo Horizonte na qual o escritor viveu), e vira primeiro cafetão de duas irmãs em São Paulo, Sofia e Rosângela, gêmeas gordas nas camas das quais se reveza em dias alternados. Foge com o dinheiro de ambas e tenta perdê-lo nas apostas de um cassino a bordo de um navio: nada feito. Consegue acumular uma pequena fortuna de que abre mão para agradar uma prostituta. Ralfo está sem amarras, é livre.
Depois vira guerrilheiro, numa época em que era moda os assuntos políticos entrarem pelas portas generosas do romance. Conquista Eldorado, ilha mítica, com um grupo pequeno e audacioso. Vira imperador. Decreta: “Que seja abolida a pena de morte, já que não se pode abolir a própria morte”. Conclama os concidadãos a construir “um mundo ficcional a que a realidade possa posteriormente adaptar-se”. Sofre um atentado, quando decreta que todos serão felizes. Vai se recuperar, delira, renasce, faz um roteiro turístico de uma cidade chamada Goddamn City (sim, referência óbvia a Gotham dos quadrinhos de Batman, o mundo pop também tem vez nesta literatura aqui), a narrativa é quase sempre feérica e algo delirante, a causa é boa.
EXPERIMENTAÇÃO TOTAL
À altura do quinto livro, Ralfo encontra-se pobre, largado ao relento, vagabundo. É preso e, logo em seguida, como também parecia inevitável a certa literatura daqueles tempos mencionar, torturado pelos mesmos brutamontes de plantão. Aí não interessa se o personagem se declara ficção, a dor é dor e dói. Um cortador de unha cravado no peito, quando se recusa a responder à importante questão a respeito de quem descobriu o Brasil, é também a paródia algo grotesca dos relatos de tortura e a descrição da violência ao mesmo tempo banal e arbitrária, executada de forma tacanha.
Internado em seguida num hospício, toma parte de experimentos amalucados do Dr. Silvana. Novamente, referência ao mundo dos quadrinhos, dessa vez ao vilão de Shazam!, o velho e mau cientista louco que tem ideias mirabolantes de como levar a sanidade de suas vítimas para bem longe. A loucura da loucura.
Nem tudo é divertimento, no entanto, e o personagem atravessa certo flerte com a ideia de suicídio. A certa altura, fornece instruções: “Não tente agarrar-se nas bordas do abismo”.
Liberto das amarras existenciais e realistas, pode se aproximar de Alice, sim, aquela, do livro ousado de Lewis Carroll, mas que agora ganha algumas pitadas de Lolita, personagem de Vladimir Nabokov, que certa vez atestou: “Todo grande escritor é um grande enganador”. Ou de Pancho Sança (a pequena troca de letras do nome do escudeiro de Dom Quixote ganha invertida adicional: ele agora é também magro).
Em seguida, quase no fim do livro, chega-se ao teatro, um dos temas recorrentes na obra de Sant’Anna, com direito inclusive a certa encenação de Ralfo de um tipo de personagem que parece ter vindo de uma peça de Samuel Beckett, com toques de absurdo depois temperado por comportamento agressivo e escatológico. Por fim, a última e mais interessante seção do livro, dedicada à literatura, em que um aspirante a escritor entra no palácio para ser atendido por ministros curiosos, o da Concisão e Síntese, o dos Lugares Comuns, o dos Diálogos e por aí a fora. Ele teria inventado, como argumenta, o “romance desestrutural”. Será que pode virar escritor, é a pergunta em pauta.
No balanço do tempo, ficou deste livro (e em alguma medida isso é extensivo a toda a obra de Sérgio Sant’Anna) uma ambição de criar texto que exerça poder hipnótico sobre o leitor e a vontade de seguir em experimentação com os limites potenciais da língua.
Ainda sem reedição
Lançado em janeiro de 1975 pela Civilização Brasileira, “Confissões de Ralfo” está fora das obras de Sérgio Sant’Anna reeditadas pela Companhia das Letras, última editora do autor. A edição mais recente, lançada em 1995 pela Relume-Dumará, pode ser encontrada em sebos e livrarias virtuais.
Trechos
(De “Confissões de Ralfo”, de Sérgio Sant’Anna)
“Ralfo é este homem. Nasceu com a minha primeira morte, a morte de alguém cuja identidade não interessa. Porque um homem que recusou a si próprio e murchou, cedendo lugar a um personagem. Afinal, não só esta, mas todas as autobiografias são imaginárias e reais, se é que se podem delimitar fronteiras nesse sentido. Pois se a realidade é de certo modo uma criação imaginária, também a imaginação e a fantasia são realidades contundentes, que revelam integralmente o ser e o mundo concretos em que se apoiaram.”
*
“A plateia está aterrorizada, com a certeza de que algo inesperado aconteceu. Pois o segredo de Ralfo é a inovação e experimentação permanentes. Há um início de pânico no recinto, mas logo contido pelos guardas e empregados. E a cortina se fecha, escondendo o leão, a bailarina e eu próprio, enquanto a orquestra, para distrair o público, executa os primeiros acordes de um tango muito popular. Quando eu, Ralfo, ressurjo no pequeno espaço de palco que sobrou depois do fechamento da cortina. Eu, Ralfo, ressurjo no palco, dançando o mais legítimo tango portenho com o esqueleto de minha bailarina, totalmente devorada pela fera.”
*
“E finalmente havia eu, Ralfo, subitamente livre, não mais impelido a cumprir ritos, discursos e representações; cada vez mais livre à medida que me rasgavam em pedacinhos junto com meu livro. Eu, Ralfo, de repente esquecido de todos e me esgueirando para fora do recinto, não sem antes observar os Ministros que se transformavam em morcegos e também escapuliam do salão — esvoaçando, cegos, a esbarrarem nas colunas e paredes e a emitirem horríveis guinchos desprovidos de significado.”
Sobre o autor
Sérgio Sant’Anna nasceu no Rio de Janeiro, em 1941. Morou em Belo Horizonte e iniciou sua carreira como escritor em 1969. Publicou mais de vinte livros - entre eles, “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, “Amazona, “O voo da madrugada” e “Anjo noturno”. Sua obra foi traduzida para o alemão, italiano, francês, tcheco, espanhol e hebraico, além de adaptada para o cinema e teatro. Morreu em 2020.
PAULO PANIAGO é professor de jornalismo da Universidade de Brasília e analisou “Confissões de Ralfo” em sua dissertação de mestrado, “A autobiografia do outro”, defendida em 1993 no Departamento de Letras da UnB
