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Estado de Minas ENTREVISTA

'Se n�o tivesse morado em BH, talvez n�o fosse escritor', diz S�rgio Sant'Anna

Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, o autor fala sobre os 50 anos de carreira, destaca amizades na capital mineira e diz ter f� na literatura


postado em 01/11/2019 04:00 / atualizado em 01/11/2019 08:12

Pouca gente deve se lembrar da Livraria do Estudante. Ponto de encontro dos literatos belo-horizontinos no fim dos anos 1960, ela ficava numa galeria de um pr�dio na Rua Esp�rito Santo, esquina com Tupis. Foi ali, um pouco antes de completar 28 anos, que S�rgio Sant’Anna autografou O sobrevivente, seu primeiro livro, num setembro de meio s�culo atr�s. Escrevendo de maneira constante e obsessiva, em seu apartamento de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, onde mora desde 1977 – quando se mudou de Belo Horizonte, depois de ter vivido por aqui durante 18 anos –, o carioca S�rgio Andrade Sant’Anna e Silva acredita que o per�odo de forma��o em BH foi mesmo decisivo para ter se jogado, plenamente, na literatura. Para ele, literatura nunca foi mera distra��o. Ou exerc�cio de vaidade. “Se n�o tivesse mudado do Rio para Belo Horizonte, talvez n�o me tornasse escritor”, conta o autor nesta entrevista ao Pensar. E talvez s� mesmo a chamada f� liter�ria, que o grande Otto Lara Resende disse ter perdido ao longo da vida, possa explicar o empenho de S�rgio.

Durante meio s�culo de muito trabalho, ele escreveu algumas das mais importantes obras dos anos 1970, 80 e 90. Livros como Notas de Manfredo Rangel, rep�rter (1973), Confiss�es de Ralfo (1975), O concerto de Jo�o Gilberto no Rio de Janeiro (1982) e A trag�dia brasileira (1984) s�o pontos de refer�ncia obrigat�ria da literatura brasileira. “Tenho f� na literatura. Ela � o meu of�cio e procuro sempre renovar-me, mesmo agora, que vou fazer 78 anos” (o escritor completou 78 na �ltima quarta-feira), conta. Na �ltima d�cada, ele voltaria a presentear os leitores com mais quatro joias: P�ginas sem gl�ria (2012), O Homem-Mulher (2014), O Conto Zero e outras hist�rias (2016) e Anjo noturno (2017). Enquanto prepara novo livro, que deve ser lan�ado no ano que vem, Amazona, novela publicada originalmente em 1986, acaba de ganhar nova edi��o. No delicioso folhetim, S�rgio tra�a um retrato da liberta��o da mulher brasileira nos anos 1970 e 1980. E toca, de maneira ir�nica e sem manique�smos, nas quest�es pol�ticas do pa�s daqueles anos. “� terr�vel constatar que, depois de muitos avan�os nesse sentido, caminhando juntos com a democracia, de repente voltamos para tr�s assustadoramente e pelas vias ditas democr�ticas”, afirma.

Uma caracter�stica importante na sua trajet�ria � o interesse pela experimenta��o. Voc� est� sempre atr�s de nova linguagem. Ao escrever Amazona voc� se interessou pelo folhetim. Por qu�?
O folhetim � um g�nero que existe desde longa data. Mas eu escrever um era novidade e, portanto, uma experi�ncia para mim. Era uma forma que possibilitava certas ideias ficcionais que eu tinha em mente. Fora isso, eu escrevia simultaneamente um romance com formas radicais e po�ticas, A trag�dia brasileira. Servia a dois senhores, ou melhor, a duas senhoras ou senhoritas (risos). Pois na Trag�dia eu poetizava dramaticamente (embora n�o faltasse o humor) o pa�s na menina Jacira que era barbarizada pela f�ria industrial desordenada brasileira que nos massacra at� hoje. Seu t�tulo n�o � em v�o: A trag�dia brasileira. Considero esse o meu melhor livro.

Gostaria de falar um pouco de Dion�sia. Como sugere o escritor Andr� Nigri no posf�cio da nova edi��o, a personagem � uma esp�cie de neta de Capitu. Uma mulher de classe m�dia que usa da sedu��o para subir na vida e se emancipar. Parte da sociedade brasileira acabou aceitando essa emancipa��o. Mas uma imensa parte continua machista, mis�gina e violenta. Como voc� enxerga hoje a personagem? E como imagina que as novas gera��es v�o ler o livro?
Acho que o que o Andr� Nigri quis dizer, a partir de uma resenha de Silviano Santiago, de 1986, em que o cr�tico/escritor disse que Dion�sia, a Amazona, atualizava certas mulheres m�ticas da literatura brasileira, como Gabriela e Rita Baiana, � que Dion�sia, a Amazona, era figuradamente uma Capitu dos nossos tempos de emancipa��o da mulher. Foi uma boa sacada do Nigri. Mas n�o pensei na personagem de Machado ao escrever o romance, apenas me joguei nos conflitos entre os sexos brasileiros, numa �poca de emancipa��o feminina, como me parecia a d�cada de 1980. Se fosse agora, certamente, deveria haver outros g�neros intermedi�rios (LGBT), e as rea��es exacerbadas que eles t�m provocado. O atual momento pol�tico e social � de confronto aberto, em que as for�as da rea��o est�o no poder. O meu romance, com todos os seus conflitos, abre caminho para uma utopia, enquanto agora se sofre na pele o que de mais retr�grado existe na sociedade brasileira. As Dion�sias de agora t�m mais chances de ser assassinadas do que de chegar ao poder. Mais cedo ou mais tarde novos autores se debru�ar�o sobre isso. E, sinceramente, prefiro escrever fic��es sobre todas essas coisas do que discorrer sobre elas. Imagino que as novas gera��es poder�o ler com muito interesse o meu livro, talvez mais ainda as mulheres. Agora, ele � at� meio revolucion�rio contra as for�as reacion�rias que dominam o pa�s.

Amazona � marcado pela viol�ncia: sobretudo no epis�dio do assassinato do fot�grafo franc�s pelo Esquadr�o da Morte a mando de um banqueiro. O pa�s era ent�o governado por Jos� Sarney, depois de quase tr�s d�cadas de ditadura. Viv�amos um momento em que as den�ncias de viola��o aos direitos humanos vinham � tona. Embora o romance tenha epis�dios violentos, ele tamb�m possui uma energia otimista com a emancipa��o de Dion�sia ao poder. Passados 30 anos, o �ndice de feminic�dios continua alto. E os direitos humanos est�o sob amea�a. Amazona foi um sonho que n�o se realizou?
Na d�cada de 1980, a gente sa�ra havia pouco da viol�ncia pol�tica expl�cita, mas a viol�ncia social s� fazia aumentar e vem aumentando e muito at� hoje, tr�s d�cadas depois. E, pior ainda, no atual governo n�o s� a viol�ncia criminal � assustadora – uma das maiores do mundo – como os desrespeitos aos direitos humanos e sociais s�o tremendos. O pr�prio pa�s vai sendo devastado, o desrespeito ao meio ambiente e �s comunidades ind�genas ultrapassa todos os limites. O Brasil virou um problema mundial, no pior sentido, como todo mundo sabe. Mas eu diria que em meus dois romances j� h� uma antecipa��o disso, n�o s� no assassinato do personagem franc�s pela pol�cia, como pela guerra entre as classes, em Amazona. H� nele at� uma seita anarquista, embora esta n�o se levasse a s�rio. De todo modo, � o anarquismo de um autor que n�o � passivo diante das iniquidades sociais. Esse autor, embora narre quase sempre na terceira pessoa, v� na ascens�o feminina grande possibilidade de avan�o social, pol�tico e existencial. E o fato � que eu mesmo vislumbrava isso; transformava aos poucos meu comportamento e ideias pela conviv�ncia com as mulheres. E acreditava mesmo numa transforma��o da nossa sociedade a partir da lideran�a delas. E � terr�vel constatar que, depois de muitos avan�os nesse sentido, caminhando juntos com a democracia, de repente voltamos para tr�s assustadoramente e pela vias ditas democr�ticas. Dion�sia n�o tomou o poder, pelo contr�rio. Mas continuo a reivindicar meu livro como uma luz para mim mesmo e para os leitores, que, pelo simples fato de ser leitores j� formam uma elite mais civilizada. Mas n�o estou satisfeito com esse papo s�rio. Minha arma, enquanto autor, foi sobretudo o humor enquanto arma liter�ria. E nada pior do que explicar o humor. Que leiam Amazona.

Duas matrizes parecem fornecer elementos para se entender a simultaneidade da escrita de Amazona e A trag�dia brasileira: Machado de Assis e Nelson Rodrigues. O primeiro aproximando a lupa das classes m�dia e alta da sociedade enquanto o segundo da camada mais baixa. Havia de sua parte a consci�ncia de estar escrevendo o edif�cio social brasileiro em sua verticalidade? Nelson e Machado foram influ�ncias importantes para voc�?
� claro que n�o me propus a escrever um romance machadiano em Amazona. Mas tratando ironicamente, satiricamente ou at� debochadamente a sociedade brasileira e carioca, n�o havia como n�o esbarrar em Machado aqui e ali. Mas nunca fui um devorador de Machado e li muito mais os seus contos de mestre do que seus romances. J� Nelson Rodrigues est� presente nos primeiros cap�tulos de A trag�dia brasileira. Depois sou eu inteiro no livro, em sua multiplicidade de formas. Mas devo dizer que andava muito com o diretor Antunes Filho, numa �poca em que ele encenava magistralmente tr�s pe�as de Nelson aqui no Rio. Eu era fascinado pelo Antunes, ia ver ensaios seus e at� namorei uma atriz do elenco que fazia uma das tias do “Serginho” (ora vejam s�) em �lbum de fam�lia. E o apuro formal de Antunes, suas solu��es c�nicas fascinantes, deitaram ra�zes em meu imagin�rio. Mas reivindico A trag�dia brasileira como coisa originalmente minha, uma met�fora po�tica do Brasil. Jacira � a adolescente virgem atropelada numa rua de Botafogo (minha rua de inf�ncia), por um motorista playboy, que, de um lado, � o devastador – coisa t�o atual – e de outro � um apaixonado que destr�i a sua criatura, por uma compuls�o irrefre�vel, e ao mesmo tempo a ama perdidamente, persegue a sua pureza at� os confins do Brasil, na Bel�m-Bras�lia, a Amaz�nia. E muitas coisas mais. Pois chego at� mesmo a invoca��es religiosas e pag�s, invoco at� o santo guerreiro Glauber Rocha, que passa vertiginosamente pelos dois romances.

Em setembro, voc� completou 50 anos de carreira. Em 1997, quando publicou Contos e novelas reunidos, n�o salvou todos os contos da primeira edi��o de O sobrevivente. Como voc� v� hoje o livro? 
Tenho certa ternura pelo meu livro de estreia. Ele at� consta (por �ltimo) do contrato que assinei com a Companhia das Letras para a reedi��o de toda a minha obra. Mas h� nele certa ingenuidade de jovem iniciante.

Belo Horizonte aparece em sua obra: �s vezes de maneira impl�cita, �s vezes expl�cita. Mas � em Um romance de gera��o no qual voc� faz o maior “acerto de contas” com a cidade. Poderia contar um pouco daqueles anos em que escreveu o livro?
Foi em Belo Horizonte que comecei a escrever, fiz amizade com outros autores iniciantes, como Luiz Vilela, Lu�s Gonzaga Vieira, Humberto Werneck, Jaime Prado Gouv�a, Sebasti�o Nunes, sendo que este foi meu parceiro visual no livro Junk box. E public�vamos na nossa revista Est�ria e no Suplemento Liter�rio do Minas Gerais, dirigido pelo Murilo Rubi�o. Se n�o tivesse mudado do Rio para Belo Horizonte talvez eu n�o me tornasse escritor, embora fosse um leitor desde a inf�ncia. Mas, em minha adolesc�ncia carioca, eu queria saber mais era de futebol de praia (que embasou meu P�ginas sem gl�ria), corridas de cavalos, ver partidas do Fluminense, jogar sinuca e turma de rua. No Col�gio Andrews levei uma bomba monumental, zerei o gabarito. De fato, Um romance de gera��o marca meu retorno ao Rio e narra tamb�m minha experi�ncia mineira, de que tenho saudades, principalmente dos muitos amigos que fiz em BH.

Voc� teve muitos amigos quando morou aqui. De pronto me ocorrem tr�s nomes: Affonso �vila, mentor e encorajador de sua literatura, tendo escrito a orelha da primeira edi��o de Junk Box; Sebasti�o Nunes, um parceiro na segunda edi��o desse mesmo livro. E Fernando Brant, que “financiou” por assim dizer a edi��o n�o comercial de O Circo. Qual o significado dessas pessoas em sua vida?
Affonso �vila, grande poeta, era muito generoso e passava para n�s, autores jovens, informa��es importantes sobre livros, autores, principalmente de vanguarda. Convidado para sua casa, pude conhecer Murilo Mendes e tamb�m a autora francesa do Nouveau Roman Nathalie Sarrault. De Fernando Brant tornei-me amigo quando retornei do Programa Internacional dos Escritores, em Iowa, EUA (1971). Letrista de m�sica, fiquei amigo, atrav�s dele, dos compositores mineiros, que formavam, com Milton Nascimento, o Clube da Esquina. Senti e ainda sinto muito, acho que para sempre, a morte do Fernando.

Embora voc� n�o sacralize a arte, ao contr�rio de muitos escritores ao longo da vida, nunca perdeu o que o Otto Lara Resende chamava de “f� liter�ria”. Otto mesmo n�o escondia de ningu�m que tinha perdido a sua. Voc�, pelo contr�rio, mostra-se sempre aberto e generoso com escritores que surgem. Num pa�s cuja literatura de qualidade tem t�o pouco alcance como o nosso, o que ela significa socialmente para voc�?
O simples ato de fazer arte dentro de um pa�s que se tornou obscurantista, com um governo de extrema-direita, j� � uma forma de resist�ncia. Sim, tenho f� na literatura, quer dizer, ela � o meu of�cio e procuro sempre renovar-me, mesmo agora, que vou fazer 78 anos.

Voc� � um leitor entusiasta de ensa�stas como Oct�vio Paz e Ricardo Piglia. Como Duchamp, a quem voc� declara uma das mais importantes personalidades art�sticas a influenci�-lo, a literatura deve beber em todas as fontes? 
Sim, bebo em todas as artes e minha literatura � impregnada das artes pl�sticas e do teatro. Adaptei duas pe�as em parceria com a grande diretora Bia Lessa, minha amiga querida. Tamb�m fui amigo do grande Antunes Filho, assistia �s suas pe�as e ensaios e aprendi muita coisa com ele. Isso tudo est� narrado em meu O concerto de Jo�o Gilberto no Rio de Janeiro. E Marcel Duchamp � para mim um norte de inven��o e liberdade. O livro de ensaios de Oct�vio Paz, Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, releio sempre. Formas breves, de Ricardo Piglia, tamb�m � outro livro que me serve de guia e inspira��o.

Voc� j� me disse que, quando come�ou a escrever, lia Dalton Trevisan, mas n�o era o que mais gostava. E que a partir de um determinado momento, mudou de opini�o. E come�ou ent�o a ler Dalton com grande admira��o e respeito. Voc� ainda considera Dalton um dos contistas mais importantes do mundo?
Talvez possa-se dizer que Dalton Trevisan � o maior contista do Brasil. Embora suas obras possam parecer enganosamente provincianas, por se passar sempre em Curitiba, ele � o escritor mais enxuto, minimalista que conhe�o. Suas inova��es na prosa curta s�o de n�vel internacional, mas como escreve em portugu�s, n�o � lido em outros pa�ses. Mas atualmente n�o o releio e, j� passado dos 90 anos, talvez ele n�o escreva mais.

Voc� j� disse, mais de uma vez, que considera Jo�o Gilberto Noll o maior escritor de sua gera��o. Por qu�?
Considero Noll, que ali�s era meu amigo, o maior ficcionista contempor�neo do Brasil, embora j� falecido. N�o conheci autor nacional, fora Clarice Lispector, que tivesse uma linguagem t�o pr�pria, original, deslumbrante. At� me pergunto: como � que p�de?.

Em Breve hist�ria do esp�rito, de 1991, voc� de alguma maneira j� antecipava o pesadelo que viria a se transformar o espa�o p�blico brasileiro, com as institui��es sendo dominadas, cada vez mais, por grupos religiosos. Como voc� enxerga o futuro do pa�s?
Sim, Breve hist�ria do esp�rito � uma obra que considero at� demolidora das seitas evang�licas mercen�rias. Mas nem nos meus piores pesadelos eu podia supor que essas seitas viessem a desfrutar do poder que det�m hoje. Est� dif�cil a gente enxergar alguma luz no fim do t�nel de breu em que atolou o pa�s. Mas a gente tem de lutar com toda as for�as para sair disso, n�o � mesmo? E temos o apoio de toda a sociedade internacional, o que nos d� um pouco de esperan�a.


*Jo�o Pombo Barile � jornalista e redator do Suplemento Liter�rio do Minas Gerais


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