
Concei��o Evaristo, de 72 anos, deixou Belo Horizonte na d�cada de 1970 em busca de oportunidade de trabalho como professora. Foi para o Rio de Janeiro, onde vive h� 40 anos. No entanto, Minas tem, aos poucos, pago a d�vida com a escritora, que na juventude n�o encontrou em sua terra natal terreno f�rtil para sua escrita. Na noite de 24 de outubro, a Academia Mineira de Letras, em sess�o lotada, recebeu a mineira, que entrou naquela casa como palestrante pela primeira vez. H� muito ovacionada pelo movimento negro, principalmente entre professores que adotaram seus livros, Concei��o ocupa os espa�os mais tradicionais das letras no pa�s. “N�o tenho pudor em dizer: esse lugar � meu!”, afirmou.
Concei��o Evaristo ser� tamb�m a grande homenageada do 61º Pr�mio Jabuti. Em 28 de novembro, no Audit�rio do Ibirapuera, em S�o Paulo, ela receber� o pr�mio de Personalidade Liter�ria do Ano. Concei��o tamb�m � homenageada da 6ª edi��o da Olimp�ada de L�ngua Portuguesa. A escritora falou ao Estado de Minas sobre esses espa�os de reconhecimento, a AML e o Jabuti. “Fico grata � Academia Mineira de Letras. Essa casa tem que se abrir para a diversidade. Tenho que agradecer e dizer tamb�m que a academia est� fazendo o que devia fazer. A AML � o espa�o guardador da literatura e de uma fala mineira. Quanto mais a academia se diversificar, tanto em termos de autoria como p�blico, mais ter� rosto mineiro: rosto de escritores can�nicos, como Guimar�es Rosa, e de quem est� abrindo espa�o. Um rosto multifacetado”, afirmou.
Em sua confer�ncia, ela contou como foi o encontro com a feminista interseccional, �cone da luta pelos direitos civis nos EUA, a ativista Angela Davis, que veio ao Brasil fazer palestras. Da mesma gera��o e com pap�is de destaque no Brasil e EUA, Concei��o e Angela abriram espa�o para que as mulheres negras pudessem ser reconhecidas como intelectuais.
Al�m da inspira��o na milit�ncia, Concei��o revelou que come�ou a valorizar o volume do cabelo crespo, inspirada por Angela Davis. “Em 1971, come�o a usar cabelo black power por descobrir aquela negra americana lutando contra o apartheid”, disse. A escritora mineira revelou que o encontro ativou lembran�as adormecidas, como a visita de agentes do regime militar, que arrancaram das paredes da casa da jovem Concei��o, no antigo Morro do Pindura Saia, no alto da Afonso Pena, fotos da ativista americana.
Participaram da mesa os professores da UFMG Eduardo Duarte e Const�ncia Lima Duarte, com media��o do presidente da AML, Rog�rio Tavares, e do escritor Lu�s Giffoni. Instigada pela pergunta do rapper e ator Russo APR sobre a poesia marginal e os saraus, Concei��o confidenciou que est� escrevendo um rap sobre a experi�ncia. Confira a seguir os destaques da palestra de Concei��o Evaristo na AML.
LEITURA COMO SORTE
Concei��o Evaristo lembrou que a literatura entrou na vida dela “por sorte”, e n�o como direito. Ela reafirmou o compromisso de em suas palestras lembrar que a leitura � um direito. “A popula��o pobre n�o pode ser privada de direitos”, afirmou. Ela lembrou o momento de crise pelo qual passa o Brasil e que a popula��o negra � a primeira a ser atingida pelo desemprego.
A��ES AFIRMATIVAS
Diante da crise que se apresenta no pa�s, Concei��o Evaristo citou o risco de retrocesso em rela��o �s a��es afirmativas. E que, embora tenham sido implementadas por um governo, as a��es afirmativas resultam da a��o do movimento negro.
TRATAMENTO DE “SENHOR”
A escritora mineira lembrou que os tratamentos de “senhor” e “senhora” marcam os lugares sociais. Ela lembrou que usava os termos em respeito �s pessoas mais velhas, mas quando chegava na casa dos patr�es da m�e percebia que, naquele espa�o, o tratamento era usado para demonstrar uma hierarquia social. Ela chama a patroa da m�e de senhora por ela ser mais velha. No entanto, as filhas da patroa, que tamb�m eram crian�as, n�o chamavam a m�e de Concei��o de senhora. “A m�e delas n�o deu educa��o pra elas?”, Concei��o se perguntava.
ESCRITA COMO VINGAN�A
Concei��o Evaristo disse que a escrita para ela � uma esp�cie de vingan�a. Por meio da escrita ela pode reverter situa��o de submiss�o. “Voc� consegue reverter uma situa��o. Sair de posi��o que normalmente n�o se sai”, disse.
“ESCREVIV�NCIA”
A escritora falou da literatura como espa�o de “escreviv�ncia” e comemorou o fato de sua experi�ncia como mulher negra “conquistar” homens, mulheres, jovens, negros e brancos. Ela lembrou que a subjetividade da mulher negra � marcada numa sociedade cheia de preconceito. Essa outra experi�ncia e modo de se colocar no mundo pode gerar outro texto. A experi�ncia vivida pelos sujeitos cria outra autoria. Ela destacou o fato de muitos professores adotarem sua obra. “Meu texto convoca a subjetividade de mulher negra, de classe popular e de experi�ncias de pobreza. Por que as pessoas se interessam pelos meus textos? Conseguimos colocar a humanidade dos personagens”, disse.
“ORALITUDE”
Na casa das letras, Concei��o, em diferentes momentos, refor�ou que as palavras, por mais bem empregadas que sejam, n�o conseguem dar conta da realidade, que � m�ltipla de sentidos. Ela deu como exemplo a cena de um jovem que trabalha como ‘soldado do tr�fico’, que pode estar armado com um fuzil, uma cena que assusta, mas que se transforma quando ele v� o filho e o acolhe em seus bra�os. “Num minuto a cena mudou: n�o � soldado do tr�fico. � o pai que acolhe o filho.” Essa mesma cena pode assumir outra din�mica caso ocorra uma troca de tiros entre o jovem e a pol�cia. Por muito tempo, a literatura foi caracterizada por essa busca pelo universal. No entanto, a escritora pergunta: quem tra�a esse universal? E a partir de quais par�metros?. Ela lembra que, em sua literatura, ela busca o texto oral. “A palavra escrita n�o d� conta.” Ela conta uma conversa que teve com a m�e que, quando perguntada sobre o momento atual do Brasil, respondeu com ‘‘hummm”. “Como passar o jogo de corpo, o olhar dela ao responder. � um exerc�cio infindo”, disse.
TR�S PERGUNTAS PARA
Concei��o Evaristo / Escritora
Voc� j� disse que ser reconhecida aos 71 anos indica algo de errado nesse universo da literatura. Esta � a primeira homenagem que voc� recebe na Academia Mineira de Letras (AML). O que representa isso no sentido de furar esse 'sistema'?
J� estive aqui com a��es de um concurso de letras da UFMG. Mas um convite da academia recebi agora. Fico muito feliz. � muito bom olhar Belo Horizonte de outro lugar. Cada vez que venho a Belo Horizonte celebro a vida. A minha hist�ria tinha tudo para n�o acontecer dessa forma. Quando recebo convite da academia, fico muito feliz, muito grata, mas este � um lugar meu tamb�m. Quando falo meu, n�o estou falando da minha escrita em particular. Falo desse lugar das mulheres negras, que est�o aqui em Minas produzindo conhecimento, professoras. Est�o produzindo literatura, est�o produzindo arte. Lembro-me de Leda Martins, professora de teatro e literatura. Sou um pouco cada uma delas. Quando a academia me convida, ela me convida para estar no espa�o que eu mere�o, enquanto pessoa individual e enquanto coletivo. As mulheres negras precisam ser reconhecidas como mulheres que produzem saber. Sabemos cantar, sabemos cozinhar, sabemos cuidar do corpo do outro. Gera��o anterior � minha fez isso com muita compet�ncia. Muitas mulheres que continuam fazendo isso com muita compet�ncia e a sociedade n�o reconhece. Reconhecer essas outras possibilidades das mulheres negras, inclusive possibilidade de cria��o de saber, de literatura � mais do que merecido.
Como voc� recebe a homenagem do Jabuti, o pr�mio mais importante da literatura brasileira?
� outro momento que vejo que, com certeza, a curadoria est� fazendo exerc�cio de ficarem mais alertas � diversidade. Momento em que a curadoria esteja reconhecendo as v�rias formas de discurso liter�rio, essas subjetividades liter�rias que formam o grande sistema da literatura brasileira.
O que foi o encontro de Concei��o Evaristo e Angela Davis?
Primeiro, foi momento de celebra��o da vida, no sentido de agradecer por esse tempo de vida e permitir a Angela esse tempo de vida. Retomada das minhas lembran�as, da minha juventude e foi tamb�m certificar que nossa postura e nosso trabalho valeram a pena. Chegar aos 72 anos e observar a dignidade de Angela, a fidelidade na luta, isso me conferiu essa satisfa��o. Angela iluminou a minha vida num dado momento, me serviu de guru. Hoje, estamos na milit�ncia, estamos comprometidas com os afro-brasileiros, estamos em busca de justi�a, cada qual em seu caminho, mas com pap�is simbolizadores e necess�rios at� nova gera��o.