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Estado de Minas ENTREVISTA

Milton Hatoum: 'Literatura � um ant�doto � mis�ria do mundo'

Conversamos com o escritor Milton Hatoum, que lan�a no in�cio de novembro o livro Pontos de fuga, segundo volume da trilogia O lugar mais sombrio


postado em 25/10/2019 04:00 / atualizado em 19/12/2019 14:40

O escritor Milton Hatoum, nascido em Manaus, lança na próxima semana o segundo livro da trilogia O lugar mais sombrio(foto: Secretaria da Comunicação Social e da Cultura do Pará)
O escritor Milton Hatoum, nascido em Manaus, lan�a na pr�xima semana o segundo livro da trilogia O lugar mais sombrio (foto: Secretaria da Comunica��o Social e da Cultura do Par�)

Para Milton Hatoum, escrever � escavar. Lembran�as, impress�es, imagens fragmentadas v�m � tona no exerc�cio da escrita. Em seus romances, ele revisita sentimentos ilhados, aparentemente mortos, que voltam a assombrar seus personagens (e, provavelmente, tamb�m o escritor). N�o � diferente em Pontos de fuga (Companhia das Letras), segunda parte da trilogia O lugar mais sombrio, iniciada em 2017 com a publica��o de A noite da espera.

Se h� uma mudan�a geogr�fica no espa�o ficcional, com a transfer�ncia de Bras�lia para S�o Paulo, a excel�ncia da narrativa epistolar sobre um grupo de jovens � sombra da ditadura militar � preservada, talvez at� ampliada no volume que chega �s livrarias na primeira semana de novembro. “No fundo, quis fazer uma pesquisa ou sondagem da vida de personagens, num ambiente pol�tico truculento”, diz o autor de romances como o premiado Dois irm�os e Relato de um certo Oriente (que acaba de completar 30 anos).

A seguir, uma entrevista com o autor, nascido em 1952, em Manaus, e que, como o seu protagonista, Martim, estudou arquitetura na Universidade de S�o Paulo nos anos 1970.




Quais as principais diferen�as entre A noite da espera e Pontos de fuga?
H�, primeiro, uma mudan�a do espa�o romanesco. A noite da espera se desenvolve em Bras�lia e nas cidades sat�lites. No Pontos de fuga, a a��o � ambientada em alguns bairros de S�o Paulo, centros simb�licos do romance. A tribo de Bras�lia se desfez, mas alguns personagens reaparecem em S�o Paulo, formam um novo grupo numa rep�blica de estudantes. As hist�rias do Pontos de fuga falam dos conflitos particulares dessa rep�blica.

Quais os avan�os, no novo livro, na educa��o sentimental e social de Martim?
As rela��es afetivas do Martim com a m�e (Lina), a namorada (Dinah) e o pai (Rodolfo) s�o aprofundadas. De um modo geral, Pontos de fuga narra a passagem da juventude � maturidade, e n�o apenas a do Martim. � quando a vida ultrapassa uma linha de sombra, e muita coisa fica para tr�s: a ingenuidade, as ilus�es, algumas ambi��es... A vida numa comunidade rompe o isolamento de Martim, mas � na solid�o que ele elabora sua escrita, as mem�rias que est� reescrevendo em Paris. Cada personagem reflete sobre si mesmo e sobre os outros. No fundo, quis fazer uma pesquisa ou sondagem da vida de personagens, num ambiente pol�tico truculento.

“Eu precisava ler durante a viagem, ler para n�o enlouquecer.” Tamb�m pode ser um caminho para enfrentar o Brasil de hoje? Ler para n�o enlouquecer?
Sim, para quem gosta de ler... Ou para os que podem ler. A leitura pede tempo, concentra��o e reflex�o. Muitos brasileiros n�o t�m tempo para ler, ou n�o tiveram uma forma��o educacional que os possibilite ler bons livros. A leitura depende da educa��o. Para milh�es de jovens de fam�lias pobres, filhos de desempregados ou de pais que vivem precariamente, a leitura de um bom livro s� pode ser feita na escola p�blica. De certo modo, os dois volumes da trilogia falam da forma��o de leitores, pois cada personagem exp�e suas leituras preferidas, e alguns se amparam nos livros lidos. A leitura pode ser um dos ant�dotos �s adversidades e � mis�ria do mundo e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de refletir sobre isso.

“At� o c�mpus, meu �nico ref�gio, era um lugar arriscado, fortaleza fr�gil.” Como v� a universidade nos dias de hoje? Ref�gio do conhecimento? Uma fr�gil fortaleza?
Grande parte da melhor pesquisa cient�fica � feita nas universidades p�blicas, um dos alvos do atual governo, que trata estudantes e professores como baderneiros ou inimigos. � um absurdo. Esse governo se recusa a entender que o crescimento econ�mico sustent�vel depende do ensino e da pesquisa de qualidade. Durante a ditadura a amea�a era f�sica, e isso � abordado nos dois romances. Hoje, o corte de verbas destinadas � educa��o, as acusa��es descabidas e acintosas, e as amea�as nem sempre veladas t�m como objetivo provocar uma morte lenta das institui��es de ensino e pesquisa. Mas a universidade p�blica ser� sempre um centro irradiador de conhecimento, de reflex�o, de produ��o de pesquisa e saber. Os estudos e pesquisas cient�ficos, as artes e a literatura s�o formas de resist�ncia � barb�rie, e n�o apenas no Brasil.

(foto: Quinho)
(foto: Quinho)


Em passagens diferentes, h� reflex�es e afirma��es sobre o poder da mem�ria: “Tua mem�ria sabe esconder certas coisas”. “Talvez o esquecimento seja mesmo uma das formas de mem�ria.” “A mem�ria � uma voz submersa, um jogo perverso entre lembran�a e esquecimento.” A mem�ria � mat�ria-prima para a cria��o? A literatura tamb�m pode ser vista como um jogo, ainda que n�o perverso, entre lembran�a e esquecimento?
Sim, um jogo de que participam narradores e personagens, pe�as que se movem num espa�o-tempo de conflitos, ou num ardiloso tabuleiro de xadrez, como aparece num grande poema de Jorge Luis Borges: “Que deus detr�s de Deus o ardil come�a/de p� e tempo e sonho e agonias?”. Ali�s, uma das frases citadas na pergunta � um verso de um poema desse escritor argentino, cuja obra � glosada em outras passagens do romance. Certos epis�dios e cenas do passado s�o parcialmente esquecidos, mas s�o justamente os lapsos ou lacunas que d�o for�a � imagina��o. O passado n�o deve ser esquecido. Ele renasce na literatura e em outras linguagens, mas sempre em sintonia com o nosso tempo.

“Por que os brasileiros prometem tanto?”, pergunta um estrangeiro. Somos um pa�s de promessas? Frustradas ou cumpridas?
As promessas de quase todos os pol�ticos s�o armas eficazes do populismo, essa praga t�o recorrente na pol�tica, e n�o apenas na Am�rica Latina. Bras�lia foi uma promessa que se cumpriu, ou uma utopia realizada, como diz o personagem Sergio San. Mas foi tamb�m em Bras�lia que aconteceu “o toque militar de recolher”, como afirma o mesmo personagem. A ditadura destruiu o projeto educacional de Darcy Ribeiro e An�sio Teixeira, frustrou todas as promessas de um futuro mais civilizado.

“O ex�lio � uma aprendizagem, uma prova dif�cil de adapta��o, mas qualquer pessoa pode se sentir no ex�lio em seu pr�prio pa�s.” Voc� j� se sentiu exilado no Brasil? Quem s�o os exilados em nosso pa�s?
Milh�es de brasileiros que vivem precariamente sonham em viver em outro pa�s. Em 1905, quando Euclides da Cunha fez uma longa viagem � Amaz�nia, escreveu que os seringueiros eram “expatriados em sua pr�pria p�tria”. No romance, h� personagens que partem, sem desejar ir embora. E h� tamb�m os que, mesmo constrangidos, preferem permanecer em seu lugar. S�o temas do Pontos de fuga. A pr�pria literatura � uma forma de ex�lio.

“Algu�m se livra do medo?”, pergunta um dos personagens. Qual o seu maior medo, como escritor? E o que voc� faz para tentar se livrar dele?
O desejo e o prazer de escrever prevalecem sobre o medo. Sinto inseguran�a, mas me esfor�o para que a narrativa me agrade. Somos o primeiro leitor do que escrevemos. 

“A cada 20 ou 30 anos, Moloch troca de cara”, diz um dos personagens, o Nortista, em carta datada de 1980. “Ser�o novos tempos de err�ncia, pesadelos em plena vig�lia, desonra do corpo e da mente. Ainda assim, h� esperan�a, amargura e euforia, tudo misturado. O eterno ditirambo do Brasil. Viol�ncia, sofrimento, risadas. Promessas, imposturas...” A profecia do Nortista se concretizou?
O Nortista escreve em 1980, mas ele intu�a, ou sabia que na hist�ria da nossa Rep�blica a democracia � amea�ada a cada 20, 30 anos. N�o houve no Brasil uma verdadeira revolu��o burguesa. A Revolu��o de 1930 foi uma reforma de setores da elite. N�o houve mudan�as profundas. As quest�es estruturais do Brasil n�o foram resolvidas em nenhum governo. Houve algumas conquistas na �rea social, na educa��o, mas os v�cios e iniquidades permanecem vivos: o patrimonialismo, a viol�ncia, o mandonismo, o conluio vergonhoso entre os tr�s poderes, o descaso por uma educa��o p�blica de qualidade, a falta de saneamento b�sico e de um projeto digno de habita��o social.

“Como viver num tempo tr�gico e numa terra tr�gica?”, pergunta o Nortista. Voc� tem a resposta?
N�o. Suponho que o Nortista tampouco tenha. Mas a aus�ncia de uma resposta pode ser preenchida pela fic��o, que n�o responde a nada, mas sempre indaga, com a perplexidade de quem entra num labirinto e n�o v� sa�da.

Pontos de fuga termina com a chegada dos anos 1980. Quais caracter�sticas da d�cada de 1970 acredita que foram representadas nos dois primeiros volumes de O lugar mais sombrio? E como a d�cada de 1980 ser� enfocada na terceira e �ltima parte da trilogia?
Os dois romances aludem a uma busca pelo sentido de vida de uma parte da minha gera��o. Uma parte pequena, porque a maioria dos jovens daquela �poca n�o participava do movimento estudantil nem estava ligada na pol�tica. O desafio para os personagens era lidar com a opress�o do Estado e da fam�lia, e como enfrentar ou driblar essa opress�o, sem nunca renunciar ao amor, que ocupa um lugar central nos dois romances. Como sempre, era a liberdade que estava em jogo, e isso serve para todo sistema autorit�rio, de qualquer matiz ideol�gico. Tentei encontrar uma forma que desse sentido � vida e � experi�ncia hist�rica. As artes e a literatura sempre traduzem um anseio libert�rio, s�o movidas pelo devaneio e pela imagina��o solta. A tribo de Bras�lia era formada por atores e atrizes, como se o teatro fosse a met�fora de um desastre inevit�vel.  Na verdade, a personagem Dinah � a �nica verdadeira atriz, no palco e na vida. O �ltimo volume � narrado por uma personagem feminina, que aparece no Pontos de fuga. Na hist�ria que ela conta, est�o latentes o consumismo e o individualismo exacerbados dos anos 1980. � a �poca da ideologia triunfante de Thatcher e Reagan, cuja vers�o mais cruel e violenta na Am�rica do Sul foi o neoliberalismo do ditador Pinochet. N�o por acaso o Chile est� em chamas.

PONTOS DE FUGA
de Milton Hatoum
Companhia das Letras
240 p�ginas
R$ 49,90 

Tr�s perguntas para...

Stefania Chiarelli

Pesquisadora de literatura brasileira contempor�nea, professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense e autora do livro Vidas em  tr�nsito: as fic��es de Samuel Rawet e Milton Hatoum (Annablume,2007)

Como a anunciada trilogia O lugar mais sombrio, iniciada com A noite da espera (2017) e que chega ao segundo volume, Pontos de fuga, se insere na obra de Milton Hatoum?
Hatoum nunca escondeu ser a mem�ria o motor de sua escrita. Sondar o passado, dar a ele novos sentidos, sempre foi a t�nica de sua produ��o ficcional. Leitor atento de Machado de Assis e Graciliano Ramos, o autor exercita essa tradi��o memorial�stica em sua prosa. A noite da espera, que discute diretamente a ditadura militar, n�o se afasta disso, mas deslocou o eixo amaz�nico presente em Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irm�os (2000) para Bras�lia e Paris – cen�rios explorados no romance. Al�m do mais, a anunciada trilogia, como projeto liter�rio, causa curiosidade e merece aten��o por propor uma esp�cie de tr�ptico em que se far�o presentes quest�es diretamente relacionadas ao cen�rio pol�tico brasileiro e dialogar diretamente com a atualidade. O momento pede uma literatura participante.

Relato de um certo Oriente completou 30 anos em 2019. O que o romance de estreia, por voc� estudado em Vidas em tr�nsito, representa para a obra do escritor manauara?
No final dos anos 1980, Hatoum faz sua estreia no cen�rio liter�rio brasileiro com uma obra que de cara recebeu a chancela da cr�tica, sendo bem recebida no meio acad�mico. Para o chamado leitor comum, o romance deslocou o interesse do previs�vel eixo Rio/S�o Paulo para outras geografias, j� que a narrativa transita em uma certa Amaz�nia, onde vivem personagens oriundos de um certo Oriente, profundamente marcados pelo conv�vio com a popula��o local. Ou seja, n�o se encontra ali uma generaliza��o do �ndio, ou do imigrante liban�s, ou mesmo do brasileiro, mas uma mistura muito particular de todos esses elementos, o que confere a essa narrativa um lugar �mpar em nossa literatura. Falando em lugar, esta � outra quest�o relevante: a dic��o, o tom encontrado pelo escritor dialoga com uma linhagem da prosa liter�ria brasileira, que o coloca pr�ximo de autores como Raduan Nassar e L�cio Cardoso. N�o � toa, criadores que mergulharam fundo nos abismos familiares e nas tramas de um patriarcado em ru�nas. Nada mal: s�o grandes autores.

Como a literatura de Milton Hatoum ajuda a compreender os impasses brasileiros?
Creio que Hatoum traz em sua prosa a busca por dizer algo sobre a sociedade brasileira, suas origens e autoritarismo. Fugindo da doutrina��o, essa literatura nos diz muito sobre nosso pa�s e nosso tempo. S�o crian�as ind�genas criadas "como se" fossem de casa, mulheres silenciadas pelo machismo dos maridos, imigrantes a nos mostrar que a ideia de na��o homog�nea � uma fic��o, filhos cujos pais transmitem heran�as danosas, entre outras imagens. E Hatoum apresenta essas tramas protagonizadas por narradores que sobrevivem para contar uma hist�ria, personagens cuja liga��o com a palavra lhes permite lidar com o sofrimento e a exclus�o.  Em um mundo cada vez mais marcado pela ret�rica vazia da toler�ncia, em que na pr�tica se assiste ao crescimento vertiginoso de cercas e muros, creio ser fundamental uma literatura que traga esses elementos � baila, n�o como mero assunto ou pauta atual, mas como drama encenado na linguagem. Como a matriarca libanesa que, na proximidade da morte, volta a falar �rabe, ou a ind�gena que “traduz errado” de sua l�ngua para preservar uma crian�a do sofrimento. Em um tempo de enorme descr�dito � educa��o no Brasil e tamanho desrespeito aos professores, � comovente lembrar que Nael, o narrador de Dois irm�os, � o curumim que cresce como agregado de uma fam�lia de imigrantes e se torna professor, resgatando a mem�ria familiar a partir desse lugar. Somos seres da linguagem, e nela se encontram muitas formas de resistir.

TRADU��O DE FLAUBERT

Al�m de Pontos de fuga, o nome de Milton Hatoum volta � evid�ncia nas livrarias este ano com o lan�amento de Tr�s contos (Cole��o F�bula, Editora 34, 144 p�ginas), de Gustave Flaubert (1821-1880). Hatoum traduziu as hist�rias do autor de Madame Bovary, publicadas pela primeira vez em 1877, com o editor e tradutor paraense Samuel Titan Jr.. O resultado do trabalho a quatro m�os resultou em edi��o primorosa dos contos Um cora��o simples, A legenda de S�o Juli�o Hospitaleiro e Herod�ade. “� uma esp�cie de testamento liter�rio, hist�rias exemplares, n�o tanto pelo tom c�ndido e piedoso que os jornais da �poca quiseram ver, mas por recolherem todos os temas e preocupa��es do autor em sua prosa mais madura”, explica Titan Jr. na apresenta��o. “A precis�o e o ritmo mel�dico da frase, sempre lapidar, o esfor�o de estilo, a escolha de cada palavra, a elimina��o de qualquer descri��o gratuita, tudo isso cria dificuldades para o tradutor”, conta Hatoum. “A linguagem de Flaubert suprimiu todos os excessos de seus antecessores ilustres: Stendhal, Balzac, Zola, embora tenha dependido deles. Numa carta, Flaubert afirmou, com sua habitual crueldade: 'Se Balzac soubesse escrever, que homem ele teria sido!'. Mas sem Ilus�es perdidas, Flaubert n�o teria escrito A educa��o sentimental”, acredita o tradutor, citando outras duas obras-primas da literatura. (CM) 


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