'Monteiro Lobato n�o faz o leitor se tornar racista'
Conversamos com a autora a rec�m-lan�ada edi��o de luxo de 'O s�tio do picapau amarelo', Luciana Sandroni e com o ilustrador da obra, Marcelo Lelis
postado em 11/10/2019 04:00 / atualizado em 19/12/2019 14:37
No ano em que acabou o dom�nio p�blico sobre a obra de Monteiro Lobato, chega ao mercado a edi��o de luxo de As aventuras do S�tio do Picapau Amarelo, colet�nea com oito hist�rias organizada e apresentada pela escritora Luciana Sandroni, com ilustra��es em aquarela de Lelis, do Estado de Minas – que na p�gina ao lado faz uma brincadeira com os personagens do s�tio sobre o seu trabalho.
O volume 1 cont�m Reina��es de Narizinho, O Saci e Viagem ao c�u e o 2, Ca�adas de Pedrinho, Mem�rias da Em�lia, A reforma da natureza, Os 12 trabalhos de H�rcules e Hist�rias diversas. Na apresenta��o, Luciana mostra como o escritor revolucionou a literatura brasileira. “Antes do Lobato, os livros nacionais priorizavam quest�es morais e patri�ticas, acreditando que a �nfase na fantasia prejudicaria o desenvolvimento da crian�a. O sonho e a imagina��o surgiram em 1921, com A menina do narizinho arrebitado”, conta Luciana.
Mas a pol�mica veio mesmo com o politicamente correto de hoje em dia, em que Lobato � acusado de racismo por passagens como essa: “Tia Nast�cia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carv�o, pelo mastro de S�o Pedro acima...”. Na entrevista abaixo, Luciana fala da pol�mica e da import�ncia da obra de Lobato.
ENTREVISTA LUCIANA SANDRONI
“Lobato n�o faz o leitor se tornar racista”
Diante do politicamente correto, como ler Monteiro Lobato hoje?
O melhor seria falar com as crian�as sobre a �poca do Monteiro Lobato, quando ele nasceu, em 1882, no interior de S�o Paulo. Ele � filho e neto de fazendeiros. Ele viu esse processo lento da aboli��o, conviveu com escravos e vai refletir isso na obra dele. A Em�lia ficou com essa quest�o do politicamente incorreto. � a personagem que trata mal a Tia Nast�cia, que fala com ela de uma maneira agressiva, � mandona, autorit�ria. Ela ficou com esses aspectos ruins, e Narizinho e Pedrinho n�o. S�o crian�as bacanas, carinhosas, que ouvem Tia Nast�cia, ouvem Tio Barnab�, conversam com Dona Benta, que querem discutir os assuntos. S�o eles que s�o sempre contra a Em�lia, porque a Em�lia � ego�sta. O Lobato aproveita esse espa�o do s�tio para mostrar a opini�o de v�rios personagens. Cada um tem seu jeito, tem sua voz. Ele reflete essa diversidade de opini�es. � importante ler o S�tio porque traz riqueza de temas, astronomia, petr�leo, Gr�cia. Traz personagens de outros escritores, de contos de fada, da pr�pria mitologia para participar das hist�rias. Enriquece a crian�a culturalmente, al�m de estar sempre incentivando a fantasia, o sonho. O S�tio � um lugar da criatividade. Isso � superimportante para a gente falar. Ele tem todo um projeto de criar uma crian�a curiosa, que pensa.
Com o fim do dom�nio p�blico de sua obra, come�am a aparecer adapta��es que distorcem ou mutilam as hist�rias de Monteiro Lobato, como o corte do racismo. Voc� concorda com as mudan�as?
N�o concordo. A obra do Lobato n�o faz o leitor se tornar preconceituoso ou racista. Muito pelo contr�rio, reflete a �poca dele, o contexto hist�rico. A crian�a tem que saber que �poca foi essa. Houve escravid�o no Brasil. Foi uma escravid�o cruel, que demorou s�culos. Havia pessoas que acreditavam que os negros eram menos inteligentes, havia essa ignor�ncia. As crian�as t�m que saber dessa �poca. � importante manter o texto na �ntegra porque a crian�a tem a possibilidade de dialogar com o passado, de refletir. Ela pode pensar melhor em entender o presente porque o Brasil � um pa�s racista, e ela tem que saber dessa hist�ria. E se voc� cortar os trechos em que a Em�lia � agressiva com a Tia Nast�cia, em que o narrador � agressivo com a Tia Nast�cia, tamb�m vai eliminar a discuss�o. A gente s� fala dessa quest�o da Em�lia, mas n�o fala que Narizinho defende a Tia Nast�cia e a pr�pria Tia Nast�cia se defende. O Lobato traz a discuss�o � tona, Narizinho querendo justi�a, que a Em�lia respeite Tia Nast�cia. Colocar notas (explicativas no livro) � a melhor maneira de trazer � tona essa discuss�o do racismo, falar abertamente. As notas ampliam essa discuss�o, trazendo pontos bons para os professores discutirem com as crian�as. Cortar trechos vai na contram�o de tudo o que o Lobato diz. Subestima-se muito a crian�a quando voc� corta esses trechos e mutila textos do Lobato.
Nacionalista e patriota convicto, Monteiro Lobato chegou a ser chamado de comunista e ter livros queimados em escolas. Como explicar essa intoler�ncia hist�rica?
Minha m�e me contou que as freiras da escola em que ela estudava pediram para as crian�as levarem os livros, mas meus av�s disseram para ela n�o levar. Impressionante essa queima de livros, essa intoler�ncia. Lobato mexia em muitos pontos da religi�o cat�lica. Ele fala muito do Darwin, ele era a favor da teoria da evolu��o. Fala muito de uma crian�a que pensa, que � curiosa, que l�, que tira suas pr�prias conclus�es. Se a gente pensar que a intoler�ncia ainda existe, essa ideia de escola sem partido. Como assim n�o discutir pol�tica? N�o discutir racismo? O Lobato era vision�rio, discutia nos textos dele do S�tio a guerra, a viol�ncia do homem. Pedrinho e Saci discutem muito sobre o homem. Saci critica o homem que mata, que desmata a floresta. Lobato levantava muitas pol�micas e � criticado por isso, por todas essas ideias que defendia nos livros. O triste � saber que hoje talvez ele tamb�m seria queimado.
Ele ainda � um brasileiro a ser desvendado?
Sim. Ele tem muitas facetas. Era muito ativo, muito pol�mico. N�o foi s� escritor maravilhoso, tinha interesses variados, foi fazendeiro, jornalista pol�mico, editor superarrojado, empres�rio, lutou pelo petr�leo. A gente tem uma biografia maravilhosa do Lobato, Furac�o da Botoc�ndia, do Vladimir Sacchetta, da Carmen Lucia, da M�rcia Camargo, que est� saindo pela Companhia das Letras. Quanto mais estudar Lobato, melhor para a gente tentar entender a cabe�a dele. E adapta��es para o cinema. A obra caiu em dom�nio p�blico. Eu vi O Saci (1951), do Rodolfo Nanni. � uma obra maravilhosa esse filme. N�o tem mais nada no cinema, ent�o agora � hora de adaptar Lobato, divulgar a obra dele. Seria maravilhoso para as crian�as conhecerem mais a obra do Lobato.