Apesar de contar com uma das legislações mais avançadas do mundo nesse campo, o país ainda enfrenta desafios significativos para assegurar que o teste do pezinho ampliado seja uma realidade para todos os recém-nascidos, de maneira equitativa e eficaz. A Lei nº 14.154/2021, sancionada em 2021, autorizou a ampliação do número de doenças rastreadas de seis para mais de 50, incluindo condições graves como a Atrofia Muscular Espinhal (AME).

No entanto, a implementação nacional da triagem ampliada tem esbarrado em obstáculos de ordem operacional e orçamentária, comprometendo o acesso integral e igualitário ao diagnóstico precoce que a legislação propõe garantir. Segundo o neurologista canadense Hugh McMillan, médico que atua em doenças neuromusculares e na formulação de políticas de triagem neonatal, “o Brasil possui um marco legal robusto e promissor, mas precisa transformar essa política em prática concreta”.

Hugh destaca que “a experiência do Canadá, país que também enfrenta desafios logísticos e desigualdades em suas províncias, mostra que a legislação é apenas o primeiro passo”. Para o especialista, "o verdadeiro desafio está em implementar o programa de forma integrada, com investimento em infraestrutura, planejamento logístico e atenção às realidades locais”.

“No Canadá, a implementação da triagem neonatal para AME tem se mostrado não apenas clinicamente eficaz, mas também uma medida comprovada de relação custo-benefício, especialmente quando o tratamento é iniciado em fase pré-sintomática. A intervenção precoce permite que muitas crianças atinjam marcos motores compatíveis com o desenvolvimento típico, reduzindo significativamente a necessidade de hospitalizações recorrentes, procedimentos cirúrgicos complexos e suporte ventilatório ou ortopédico contínuo. Esses desfechos contribuem diretamente para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes e suas famílias, além de aliviar a pressão sobre os recursos do sistema de saúde”, afirma.

Modelagens econômicas realizadas indicam que o tratamento da AME em fase pré-sintomática é custo-efetivo em comparação ao tratamento em estágios avançados da doença. Outro artigo mostrou que a triagem precoce pode gerar economia de até US$ 4 para cada US$ 1 investido. Segundo Hugh, “a triagem neonatal não é um ato isolado, mas parte de uma política de cuidado”. “Se executado como previsto, o programa brasileiro pode se tornar referência mundial, superando em abrangência e impacto países como Canadá, Reino Unido e Japão”, opina.

No Brasil, Edmar Zanoteli, professor de neurologia na Universidade de São Paulo (USP) e especialista em doenças neuromusculares, ressalta que “o país já possui os instrumentos normativos e científicos necessários para avançar, mas é preciso garantir a implementação efetiva do teste do pezinho ampliado em todas as regiões”.

Para Edmar, “não basta testar, é preciso tratar precocemente, orientar as famílias e garantir que todo o percurso assistencial esteja estruturado, desde o diagnóstico confirmatório até o acesso ao tratamento e o acompanhamento longitudinal”. “O envolvimento de profissionais da saúde, gestores públicos e familiares é fundamental para consolidar um modelo de cuidado integral. Só assim conseguimos, de fato, mudar o curso da doença e oferecer um futuro com qualidade de vida para essas crianças”, destaca.

A AME, que afeta cerca de 1 a cada 10 mil nascidos vivos, poderia ser diagnosticada precocemente em aproximadamente 250 bebês por ano com a implementação da triagem ampliada no Brasil. Atualmente, 33 países já adotaram a triagem neonatal para AME, total ou parcialmente, comprovando seu custo-benefício e impacto em saúde pública. “A ampliação efetiva da triagem neonatal no Brasil representa um passo decisivo para salvar vidas, reduzir desigualdades e garantir um futuro mais saudável para milhares de crianças”, comenta Hugh.

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