Minas sanciona lei que reconhece cordão para pessoas com doenças raras
Símbolo garante visibilidade, dignidade e prioridade no atendimento. Para famílias, representa reconhecimento e proteção
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Siga noAnthony Daniel, de 10 anos, é autista e tem narcolepsia (distúrbio do sono caracterizado por sonolência excessiva durante o dia). Até pouco tempo atrás, sua mãe, Daniela dos Santos Pereira, não conseguia explicar às pessoas - nem mesmo aos profissionais de saúde e da escola - o que o filho tinha. As crises eram constantes e as internações, frequentes. Mas o diagnóstico demorou anos para ser fechado. E, com ele, veio também o sentimento de invisibilidade.
Foi por isso que Anthony recebeu o cordão com o símbolo das doenças raras, uma fita com o desenho de mãos coloridas sobrepostas por uma silhueta humana.
Agora, o símbolo passa a ter força de lei. O Projeto de Lei 2.332/2024, proposto pelo deputado estadual Zé Guilherme (PP), foi sancionado e publicado pelo Governo de Minas no Diário Oficial nesse sábado (19/7).
A norma reconhece o cordão como símbolo estadual de identificação de pessoas com doenças raras, com o objetivo de garantir atendimento adequado, prioridade em situações de emergência e mais visibilidade para essa parcela da população.
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Para Daniela, mãe de Anthony - que mora em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e faz parte da Casa de Maria, entidade de apoio a famílias com doenças raras -, a sanção da lei representa um marco.
“Ainda falta muita gente conhecer o cordão, principalmente na saúde pública. Já me disseram que ‘todos aqui são prioritários’ quando pedi atendimento urgente. Mas nem todos ali têm uma síndrome rara. Falta divulgação, falta preparo, falta política que olhe para nossos filhos com seriedade”, afirma.
Daniela passou a não sair de casa sem ele. “Desde que chegou, o Anthony nunca deixou de usar. O cordão faz toda a diferença. Dá visibilidade. Identifica. Evita explicações humilhantes”, diz. “É um reconhecimento de que nossos filhos existem. E de que precisam ser tratados com respeito.”
Gesto de empatia e cidadania
O símbolo, inspirado em uma iniciativa da Organização Europeia para Doenças Raras (Eurordis), representa a humanidade, a solidariedade e a diversidade das condições raras. A fita não substitui laudo médico, mas serve como alerta visual sobre possíveis necessidades específicas, como restrições médicas, alergias ou riscos clínicos que nem sempre são visíveis.
O deputado Zé Guilherme, autor do projeto, conhece o tema de perto. “Sou avô da Maria, uma criança rara com Cornélia de Lange. Essa luta não é política, é pessoal. No Brasil, mais de 30% das crianças com doenças raras morrem antes dos cinco anos por falta de diagnóstico. O cordão ajuda essas pessoas a exercerem sua cidadania, terem atendimento digno, prioridade nos serviços, respeito nos espaços públicos.”
Ele também destaca o impacto social da medida. “Há um dado impactante: 25% da população brasileira têm algum tipo de deficiência. Mas muitos estão excluídos, invisibilizados, escondidos dentro de casa por medo, bullying ou despreparo das instituições. O cordão traz visibilidade. Traz debate. E, acima de tudo, traz dignidade.”
Educação, saúde e mobilização
A nova lei determina que o Poder Executivo deverá promover ações de conscientização sobre o símbolo e divulgar as necessidades específicas das pessoas com doenças raras. O uso do cordão será opcional, e sua ausência não comprometerá direitos garantidos por lei.
Para o secretário de Estado de Governo, Marcelo Aro, que também é pai de uma criança com doença rara, a sanção representa mais do que um ato administrativo. É uma declaração de empatia. “Esse cordão transforma olhares de estranhamento em gestos de cuidado. Vai mudar vidas. Vai salvar crianças em crises, emergências, situações que não podem esperar. Como pai, sei o que ele representa.”
Marcelo afirma que o governo irá se articular com a Secretaria de Saúde para levar a informação a todos os 853 municípios mineiros. “Vamos trabalhar em campanhas educativas, em ações com servidores públicos, escolas, hospitais e também com a sociedade civil.”
Mais de 5 mil tipos
As doenças raras englobam um conjunto amplo e heterogêneo de condições de saúde que afetam um número pequeno de pessoas em relação às doenças mais comuns, mas que, somadas, atingem milhões em todo o mundo.
Embora não haja um número exato, estima-se a existência de mais de 5 mil tipos diferentes, com causas variadas muitas vezes genéticas, mas também podendo estar relacionadas a fatores ambientais, infecciosos ou imunológicos.
Entre essas doenças, estão as anomalias congênitas, os erros inatos do metabolismo e da imunidade, as deficiências intelectuais, entre outras. A maioria possui algum componente genético e, em muitos casos, a ocorrência é restrita a determinados grupos familiares.
Embora muitas doenças raras se manifestem ainda na infância, elas também podem surgir na adolescência ou na vida adulta, afetando diferentes sistemas do corpo humano e provocando deficiências físicas, cognitivas ou alterações no desenvolvimento.
Da capital para todo o estado
Em Belo Horizonte, o cordão das doenças raras já era reconhecido desde o ano passado, graças à iniciativa da vereadora Professora Marli. A proposta nasceu de sua vivência em sala de aula, lidando com crianças que exigem atenção especial.
A ideia era simples e poderosa: criar um símbolo visível, facilmente reconhecível pela sociedade, para sinalizar que aquela criança ou pessoa vive com uma condição rara e precisa de acolhimento diferenciado.
O projeto municipal serviu de inspiração para a proposta estadual. Com a sanção da nova lei, a identificação com o cordão agora se estende a todos os 853 municípios de Minas Gerais.
A capital também já reconhece oficialmente outros dois símbolos: o cordão de quebra-cabeça, destinado a pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), e o cordão com girassóis, voltado para deficiências invisíveis como TDAH, demência e limitações cognitivas.
Segundo Marcelo Aro, o objetivo principal do cordão é chamar a atenção. “Quando alguém bater o olho nesse símbolo, tem que entender: essa pessoa tem uma doença rara e precisa de prioridade. É sobre respeito, humanidade e resposta imediata. Se tem doença rara, tem que passar na frente.”
Estima-se que cerca de 15 milhões de brasileiros vivam com alguma doença rara o que corresponderia, proporcionalmente, a 1,5 milhão de mineiros.
“Mais do que um símbolo”
Para muitas famílias, o cordão com o símbolo das doenças raras é mais do que um acessório de identificação. É um instrumento de proteção, respeito e visibilidade. É assim que define Ineide Aparecida Pereira, confeiteira inclusiva e mãe de Felipe, um jovem de 24 anos diagnosticado com síndrome de Prader-Willi ainda na primeira infância.
“Para quem não conhece a realidade, o cordão pode parecer só um enfeite. Mas para nós, ele evita explicações humilhantes, garante prioridade e, principalmente, empatia”, afirma.
Felipe teve um diagnóstico precoce, aos 11 meses de idade algo ainda raro no país. A mãe conta que, já na gestação, houve sinais: ele permaneceu sentado no útero durante toda a gestação, posição conhecida como pélvica, o que levantou suspeitas de hipotonia muscular, uma característica comum da síndrome.
Os primeiros exames deram negativo, mas o diagnóstico foi confirmado após um estudo genético do cromossomo 15, onde ocorre a deleção responsável pela condição. A síndrome de Prader-Willi é uma doença rara que causa, entre outros sintomas, hipotonia muscular severa, atraso no desenvolvimento e tendência à obesidade mórbida.
Por isso, o diagnóstico precoce foi fundamental para garantir a qualidade de vida de Felipe. “Com o acompanhamento desde cedo, conseguimos controlar a alimentação e prevenir várias outras complicações”, conta a mãe. “É difícil, mas é possível. E isso fez toda a diferença para o Felipe.”
Além da luta pelo diagnóstico, há também a luta diária pelo respeito. A mãe relata episódios difíceis vividos com o filho em espaços públicos. “O Felipe já teve crises de agressividade na rua. Eu, como mãe, tentando conter, acabo apanhando e ainda tenho que acalmar as pessoas ao redor, que não entendem o que está acontecendo.
O cordão pode evitar isso, pode sinalizar que aquela pessoa precisa de atenção, não de julgamento. É mais do que um símbolo, é um gesto de empatia. Um reconhecimento de que existimos e precisamos ser vistos”, diz.
Desafios que ainda persistem
Segundo o Ministério da Saúde, existem mais de 5 mil tipos diferentes de doenças raras, muitas com origem genética. Elas afetam principalmente crianças e podem impactar diferentes sistemas do corpo humano, resultando em deficiências físicas, intelectuais ou cognitivas.
Estudos internacionais estimam que entre 3,5% e 5,9% da população mundial será afetada por alguma doença rara em algum momento da vida. No Brasil, o subdiagnóstico e a exclusão social ainda são os principais obstáculos.
A presidente da Associação Brasileira de Esclerose Tuberosa, Márcia da Silva, ressalta que agora o foco deve estar na aplicação da lei. “A sociedade precisa reconhecer o símbolo e o governo precisa esclarecer como as famílias terão acesso ao cordão. Vai ser distribuído? Vai ser vendido? É importante que esse acesso seja facilitado.”
Um passo a mais: diagnóstico e tratamento
Outro avanço recente para pessoas com doenças raras foi o anúncio feito pelo deputado Zé Guilherme de que o exame para Neuromielite Óptica (NMO) passará a ser oferecido pelo SUS em até 180 dias. A medida responde a uma solicitação feita em audiência pública realizada em março e marca o início da elaboração do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para a NMO.
O protocolo definirá quais exames realizar, como diagnosticar a doença, quais medicamentos ofertar e os melhores tratamentos baseados em evidências científicas.
Para as famílias, é mais uma esperança de diagnóstico precoce, ponto considerado crucial por todos os envolvidos. “Se eu tivesse tido o diagnóstico do Anthony mais cedo, ele teria tomado outros medicamentos, recebido outros cuidados. Ele teria tido mais oportunidades”, diz Daniela.
Teste do pezinho ampliado
O teste do pezinho ampliado é uma das versões do exame criado na década de 1960 para investigar a fenilcetonúria, doença genética capaz de causar deficiência intelectual. O objetivo era detectar essa condição antes mesmo de os primeiros sintomas se manifestarem. Assim, seria possível iniciar rapidamente o tratamento e evitar complicações.
Além do cordão de identificação, Minas Gerais também tem avançado na triagem precoce de doenças raras. Segundo o secretário de Estado de Governo, Marcelo Aro, o estado é o único do país que já realiza o teste do pezinho ampliado pelo SUS, permitindo o rastreio de mais de 60 doenças raras em recém-nascidos.
“Não é projeto, é realidade. A criança nasce no Norte de Minas, em Manga, ou no Sul, em Extrema, e já faz o teste. A amostra é enviada via Sedex para a UFMG, onde o Núcleo de Pesquisa e Triagem Neonatal (NUPAD) faz a análise”, explica.
O investimento ultrapassa R$ 60 milhões por ano e permite, não apenas o diagnóstico precoce, mas o início imediato do tratamento, o que pode impedir sequelas graves e até salvar vidas.
“Se uma criança nasce com atrofia muscular espinhal, por exemplo, ela é triada e, a partir daí, o Estado já fornece o tratamento adequado, que pode ir desde medicamentos simples até terapias de alto custo. O mais importante é garantir o direito das famílias de saberem, o quanto antes, que seus filhos têm uma condição rara e terem a chance de cuidar disso desde o início”, afirma o secretário.
Inclusão com respaldo jurídico
A sanção da nova lei estadual não cria um direito inédito, mas reforça garantias já previstas na Constituição e em legislações como a Lei Brasileira de Inclusão (LBI).
Para a presidente da Comissão Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB-MG, a advogada Carla Rodrigues, o reconhecimento do cordão como símbolo oficial tem efeito prático: amplia a visibilidade, promove acessibilidade e fortalece instrumentos já existentes de proteção.
“Trata-se de um reforço importante aos direitos fundamentais das pessoas com doenças raras e deficiências não aparentes. É uma norma que consolida um instrumento de inclusão e complementa a legislação federal. Além disso, fortalece a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, instituída pelo Ministério da Saúde”, explica.
Segundo Carla, o cordão pode, sim, ser considerado um instrumento legal de comprovação para atendimento prioritário, principalmente em situações de emergência, como atendimentos hospitalares, acesso a escolas e espaços públicos. Ela ressalta que o cordão não substitui o laudo médico, mas funciona como um alerta visual e pode ajudar na quebra de barreiras atitudinais, que são tão graves quanto as físicas.
Carla reforça que não é mais permitido que nenhuma instituição, pública ou privada, negue o acesso a direitos quando a pessoa tem sua condição identificada.
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“Caso haja recusa de atendimento, negligência ou resistência por parte de estabelecimentos e profissionais, a pessoa pode acionar os canais competentes, como o Ministério Público, a Defensoria Pública ou até mesmo a OAB. A recusa pode configurar infração à legislação de proteção à pessoa com deficiência, sobretudo quando a doença rara impacta de forma significativa na vida da pessoa”, encerra Carla.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino