RESPEITO AOS INDÍGENAS

Onde fica a única capital que inseriu os povos originários em suas vias?

Desde sua fundação em 1897, a cidade planejada do Brasil fez um gesto pioneiro que, mais de um século depois, segue como símbolo de memória e resistência

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No alto de um edifício em estilo art deco, na esquina da Avenida Afonso Pena com Rua Espírito Santo, a carranca de pedra do cacique Acaiaca vigia a cidade há quase 80 anos. Olhos fundos, traços firmes, cocar altivo: o rosto indígena entalhado em granito é o primeiro e último a ver o Sol nascer e morrer sobre Belo Horizonte. Desde 1947, data da fundação, lá de cima, ele assistiu os bondes rangendo, as multidões de 1950, aos protestos durante o período militar às manifestações de 2013. Assistiu desde o concreto engolir o horizonte, às luzes de Natal, aos enterros da pandemia e às chuvas que arrastaram lembranças. Acaiaca não pisca. Acaiaca não esquece.

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Enquanto seu olhar de pedra atravessa o tempo, lá embaixo a cidade caminha sobre nomes que não se apagaram: Aimorés, Tupinambá, Caetés, Goitacazes, Timbiras, Carijós, Xavante, Guarani. Ruas que carregam, em cada placa, o eco de povos que estiveram aqui antes do primeiro tijolo, antes da primeira enxada cravar a terra em 1894.

Em meio ao concreto e ao ritmo acelerado de uma metrópole com mais de 2,4 milhões de habitantes, Belo Horizonte guarda uma característica única entre as grandes capitais brasileiras: dezenas de suas ruas, avenidas e bairros levam nomes de povos indígenas. Não é coincidência. É uma escolha. É memória gravada em ferro e concreto, resistindo ao esquecimento. E enquanto o cacique de pedra segue imóvel no alto do edifício que leva seu nome, a cidade segue falando, mesmo sem perceber, a língua dos que aqui estavam primeiro.

Memória respeitada

Belo Horizonte foi planejada de forma racional pelo engenheiro Aarão Reis, inspirado no modelo haussmanniano de Paris e nas ideias urbanísticas do final do século 19. Quando chegou a hora de nomear as vias do Plano Original (a área central, também chamada de “arruamento em xadrez”), optou-se por temas específicos para cada zona:

- Avenidas do Contorno e do Centro: nomes de estados brasileiros e datas históricas  

- Ruas e avenidas da área central: nomes de tribos indígenas  

- Bairro dos Funcionários: nomes de engenheiros e profissionais liberais  

- Outras regiões: nomes de minerais, pássaros, flores, etc.

A decisão de homenagear as ruas com momes de tribos indígenas não se trata de uma coincidência ou de um modismo passageiro, mas de uma decisão consciente tomada ainda no final do século 19, quando a nova capital de Minas Gerais era apenas um vasto terreno vazio na região da antiga Curral del Rei.

A escolha dos nomes indígenas foi proposta pela Comissão de Nominação de Logradouros, criada em 1895, e aprovada pelo então governador Crispim Jacques Bias Fortes. O critério era homenagear “as principais nações indígenas do Brasil”, reconhecendo simbolicamente os primeiros habitantes do território nacional no momento em que se construía a nova capital do estado.

Algumas das principais tribos homenageadas em BH

Na área Central e em bairros próximos, é comum encontrar:

Rua dos Aimorés – povo que habitava o Espírito Santo e Leste de Minas Gerais  

Rua dos Timbiras – grupo do Norte de Minas e Sul da Bahia  

Rua dos Tupinambás – povo da costa brasileira, do Rio Grande do Norte ao litoral de São Paulo  

Rua dos Caetés – habitavam o litoral de Pernambuco até o Espírito Santo  

Rua dos Goitacazes – povo do Norte fluminense e Sul capixaba  

Rua dos Xavantes – povo do Mato Grosso  

Rua dos Guarani – presente no Paraguai, Argentina, sul e sudeste do Brasil  

Rua dos Carijós – grupo do Sul do Brasil, especialmente Santa Catarina

A lista é longa e inclui ainda ruas como Araguari, Tamoios, Guaranis, Tupis, entre outras

  

Pampulha (bairro) – termo tupi que significa “baía grande”  



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Onde essas nações estão hoje

Muitas das nações homenageadas sofreram processos violentos de deslocamento, aculturação ou genocídio ao longo dos séculos, mas várias ainda existem:

Xavante – cerca de 20 mil pessoas no Mato Grosso 

Guarani (Mbya, Nhandeva e Kaiowá) – presentes no litoral de SP, RJ, ES, PR, SC, RS e especialmente no Mato Grosso do Sul  

Krenak (antigos “Botocudos”) – cerca de 400 pessoas às margens do Rio Doce, em Resplendor (MG)

Maxakali – também no vale do rio Doce (MG)  

Pataxó – Sul da Bahia  

Tupinambá – ainda existem comunidades em Olivença e Norte do Espírito Santo  

Puri – oficialmente extintos no século 20, mas há descendentes que buscam reconhecimento  

Um gesto simbólico que ressoa até hoje

Embora na época a escolha tenha sido feita por intelectuais brancos, muitas vezes com visão romântica ou até evolucionista sobre os indígenas, o fato é que Belo Horizonte acabou se tornando a única capital planejada do Brasil que, desde sua fundação, reservou um espaço permanente na toponímia urbana para lembrar quem estava aqui antes da chegada dos colonizadores.

Hoje, movimentos indígenas e coletivos de Belo Horizonte têm usado exatamente essas placas de rua como ponto de partida para discutir memória, reparação histórica e visibilidade dos povos originários. Caminhadas, intervenções artísticas e projetos educativos partem de ruas como Tupinambás, Caetés e Aimorés para contar histórias que os livros didáticos muitas vezes silenciaram.

Em um país que ainda debate o reconhecimento pleno dos direitos territoriais indígenas, Belo Horizonte carrega, nas suas esquinas, um lembrete diário: antes de ser mineira, essa terra foi – e ainda é – indígena.

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