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Estado de Minas ARTIGO

As cinzas

"Os amigos v�o raleando na velocidade que a careca aumenta e o pente fica cabeludo. S� essa semana perdi dois"


08/04/2023 06:00 - atualizado 08/04/2023 08:37
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Fumaça
(foto: Freepik)

Com os janeiros passando, a percep��o de finitude se torna cada vez mais real e presente em nossas vidas.

Quanto mais janeiros, mais comprimidos nas gavetas e pomadas no banheiro. Inevit�vel!

Uma losartana aqui, uma metformina  ali, uma pomada para hemorroida acol� e aos poucos  voc� vai percebendo o motivo da ind�stria farmac�utica ser uma das mais poderosas do mundo.

Araujos, Raias, Pachecos etc. disputam cent�metro a cent�metro as esquinas do mundo, suas gavetas, os arm�rios do seu banheiro e uma fatia consider�vel de sua aposentadoria.

Os amigos v�o raleando na velocidade que a careca aumenta e o pente fica cabeludo. S� essa semana perdi dois. Dois amigos e v�rios pentes, os quais faziam figura��o no meu bolso. 

Os amigos, n�o! Esses foram extremamente do�dos. O Du Lobato, jovem de 41 anos, meu companheiro de pelot�o de ciclismo, foi brutalmente atropelado por um motorista embriagado. Cad� a Lei S�ca??

O Ricardo M�mia foi c�ncer. Depois de longo calv�rio, descansou. Pelo menos � o que dizemos para tentar amenizar o sofrimento familiar. 
A gente perde o amigo mas n�o perde a piada. Quem me deu a not�cia foi o Guri: 

- O Ave, c� saiu dos grupos todos de WhatsApp, o M�mia morreu!
- O M�mia morreu?! Como assim?!

Me lembrei do Treco, tratorista da fazenda do meu av�, sanfoneiro e animador de vel�rios. 

Certa vez, no vel�rio de uma amigo, quando o frio da madrugada ia invadindo a casa, a vi�va se prontificou a pegar a carteira para comprar um esquenta peito para os poucos que lhe faziam companhia. Ele veementemente se contrap�s:
- A senhora n�o! A senhora j� entrou com o defunto.
 
E assim, brota na sua cabe�a, ou na conversa de cantina de cemit�rio a inevit�vel pergunta: enterrar ou cremar?!

O que fazer da sua pr�pria carca�a ap�s o �ltimo suspiro e o relaxamento dos esf�ncteres? Tamb�m, inevit�vel.

Com o tradicional vi�s cient�fico, fui para o Medline e procurei estudos observacionais e meta-analiticos sobre as vantagens e desvantagens de ambas as interven��es com o desfecho funesto. Para os interessados, tentei a seguinte estrat�gia de busca PICOTT(popula��o, interven��o, controle, outcome, tipo de estudo e tempo:

P-falecidos
I-cremar
C-enterrar
O-satisfa��o do cliente
T-estudos observacionais(caso-controle e radomizados n�o dispon�veis)
T-a eternidade

Nada! S� sobrou o nada e a solit�ria decis�o de definir o destino a ser dado a nossa pr�pria carca�a.

Mas � nessas horas que vale a experiencia  do expert e a opini�o do especialista. Nesse caso, a minha pr�pria opini�o.

Como filho mais novo e tempor�o, escolher caix�o e arrumar enterros  virou uma rotina na minha vida. De tempos em tempos, l� vou eu negociar com os “papa defuntos”. 

Se voc� tamb�m for um ca�ulinha, saiba que os mimos do passado ser�o duramente cobrados no futuro, caso tudo d� certo e voc� tenha essa felicidade.

No passado a discuss�o girava em torno do caix�o: luxo, standard ou simples? As perguntas seguintes sempre giram em torno do tamanho e peso do falecido, seguido de ornamenta��o e outros penduricalhos. Funciona mais ou menos como companhia a�rea. Quanto maior o volume e conforto, maior o pre�o da passagem para o al�m.

Na sequ�ncia vem a pergunta capital: crema��o ou sepultamento?
Claro, os adere�os sempre presentes em ambas as op��es (vel�rio, caix�o, coroas, lanche etc).

H� um ano vivi a minha primeira experi�ncia com a crema��o. Minha irm� que sempre gostou de estar na moda, manifestou seu desejo de ser cremada. Desejo de moribundo � ordem. 

Fato consumado e reunidos com o agente funer�rio, meu sobrinho esculachou de cara: "Hoje vamos queimar uma carninha e escutar um chorinho!"

Bem humorada que ela era, deve estar rindo eternidade a dentro.

Quase morri de susto com o pre�o da crema��o. O dobro do que paguei pelo defunto anterior no enterro convencional. Mas, quem consegue contrariar desejo expresso de parente morto?! Ainda mais irm�. Paga e n�o bufa, como ela pr�pria dizia.

A surpresa maior veio depois, no p�s vel�rio e cinzas em m�os. Ali�s, cinzas devidamente armazenadas em outra urna funer�ria de luxo, quase t�o cara quanto a primeira, cujo destino ecologicamente correto deveria ser a reciclagem e reuso pelo fregu�s seguinte.

Claro, ap�s devida desinfec��o para evitar infec��o cruzada entre cad�veres. 

Problema pol�mico e de complexidade trigonom�trica:- onde jogar as cinzas?! Para uns, mais um momento de sofrimento e dor. Para outros,  motivo para beber novamente o morto.

As sugest�es e os contras surgem na mesma velocidade.

-Vamos jog�-la na Serra do Curral de helic�ptero! 
-Na Serra n�o!  Vai misturar com min�rio e virar ma�aneta de banheiro de boteco l� na China. Coitada! Al�m disso, helic�ptero � caro e perigoso. Vai que cai! S� de enterro quebra a fam�lia inteira.

Algu�m sugere jog�-la na Lagoa da Pampulha, o que foi imediatamente contestado: 
- Claro que n�o! Lagoa polu�da e fedorenta. Ela era t�o elegante e perfumada, n�o combina. Al�m disso, morria de medo de jacar�.

A pra�a da Liberdade foi a sugest�o seguinte, a princ�pio, visto com simpatia.
- Ela era t�o t�o livre e independente. Combina com ela.
 Mas, a contesta��o foi contundente:
-L� n�o pode, � proibido! J� pensou se a cidade inteira resolve jogar as cinzas dos seus mortos l�?!  A pra�a viraria uma carvoaria!  Na primeira ventania que desse poluiria a cidade inteira. Al�m disso, a quantidade de gente que passeia com cachorro por l� � um problema. Cada poste e tronco de �rvore � territ�rio definido. Ela n�o merece descansar levando xixi e coc� de cachorro na cara todo dia.

Pronto, morreu a pra�a da Liberdade!

Perceberam o tamanho do problema?! O mundo ficou um lugar in�spito at� para os mortos.

Resultado, por falta de consenso familiar, ela veio morar comigo! Ocupa um cantinho no arm�rio do nosso closet. 

Justo?! mais do que justo! Morei com ela na Alemanha, dei despesa, trabalho e preocupa��o.
Ela, pelo contr�rio, fica quietinha e n�o me preocupa em nada. 

Em conclus�o, depois dessa pol�mica experi�ncia, siga o tradicional. Opini�o de expert! Caso optem pela vari�vel alternativa, se poss�vel evi�vel, perguntem antes ao interessado sobre o destino a ser dado as suas cinzas.

Nesse Domingo de P�scoa, tenho certeza que todos que enterramos ao longo da vida, com muita saudade, l�grimas e humor, seguem mais do que vivos, morrendo de rir das trapalhadas de nossos rituais absurdos, caros e sem qualquer sentido pr�tico.

Am�m!

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