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Estado de Minas

� sempre bom reviver peda�os da hist�ria

Aprendi que educar � sempre uma aposta no outro, que educador tamb�m precisa aprender


postado em 13/10/2019 04:00 / atualizado em 11/10/2019 17:46


 
 
A morte de dom Serafim Fernandes de Ara�jo, aos 95 anos, me levou em pensamento para a porta da Igreja da Boa Viagem, onde o corpo do ex-arcebispo metropolitano e bispo em�rito de BH foi velado por tr�s dias e seguido por um cortejo de fi�is. Com o tapete voador da mem�ria veio tudo de novo � lembran�a. Foi exatamente na Boa Viagem que, em plena ditadura militar, procurei dom Serafim para me indicar uma fonte na Igreja que estivesse comprometida com a causa dos meninos de rua. Ele, ent�o, apresentou-me ao irm�o Raimundo Rabelo Mesquita.
 
A rep�rter e o salesiano se olharam com estranheza. O primeiro contato foi de desconfian�a. Afinal, viv�amos sob os grilh�es do C�digo de Menores, um tempo duro para as crian�as e adolescentes, que eram levadas para a Funda��o Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem). Uma institui��o de castigo para os degredados filhos de Eva. Era um tempo de dor.
 
Como confessou � rep�rter anos depois, irm�o Mesquita n�o simpatizou com aquela jovem que dom Serafim acabava de lhe apresentar. Mas obedeceu � ordem do arcebispo. Come�ava ali uma amizade que dura at� hoje, em nome das crian�as e adolescentes em conflito com a lei. Juntos, a rep�rter e o irm�o Mesquita percorreram os labirintos das ruas de Belo Horizonte, onde os meninos falavam a l�ngua do p� na frente de estranhos. Mas todos respeitavam o irm�o Mesquita ao primeiro cumprimento. Irm�o Mesquita falava alto e com afeto: “Oi, boca suja”, e os meninos abriam a guarda.

Irm�o Mesquita era a voz rebelde da Igreja, o contraponto. Juntos, fizemos reportagens profundas, reflexivas, que contavam a hist�ria daqueles meninos que sa�am de suas comunidades para viver nas ruas da cidade. Irm�o Mesquita sentenciava. “Tem que fechar a torneira antes que eles saiam para as ruas, para que a �gua n�o escorra como cachoeira pelos becos da marginalidade.”
 
Irm�o Mesquita dizia coisas assim. Juntos, Mesquita, a rep�rter e os meninos de rua fizeram passeatas pela Avenida Afonso Pena, sob as b�n��os de dom Serafim Fernandes de Ara�jo. Ele chamava irm�o Mesquita para todos os assuntos relacionados ao menor. Confiava naquele irm�o que nunca quis ser padre. Irm�o Mesquita e a rep�rter fizeram um raio-x da situa��o, que culminou com a cria��o do Estatuto da Crian�a e do Adolescente (ECA) e da Casa Dom Bosco, na Cidade Ozanam.

L�, as crian�as e adolescentes de rua ganharam um espa�o de dignidade e respeito, com comida, piscina e quadras de futebol. As portas da casa ficavam abertas. Eles podiam entrar e sair quando quisessem. Alguns setores da sociedade queriam jogar pedras na casa, mas irm�o Mesquita proporcionou um lar para os meninos de rua.
 
Foi com a b�ssola de dom Serafim Fernandes de Ara�jo e de irm�o Mesquita que conheci o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa. Como rep�rter, n�o imaginava que dentro de uma estrutura sombria e cruel estava um educador sens�vel, com uma voz suave que lembrava uma can��o. Guerreiro incans�vel das injusti�as sociais, Antonio tinha o poder do pensamento e da palavra, para dizer em pleno regime militar: “A Febem � o Ato Institucional N�mero 5 (AI-5) do menor”. Sobre as fugas que ocorriam naquela institui��o, ele conclu�a com sabedoria: “Os meninos que fogem ainda t�m chance de sair desse pesadelo. Ainda t�m dignidade e querem viver. Os que n�o tentam est�o perdidos, para sempre institucionalizados”.
 
Quem podia imaginar que nos duros anos 1970, algu�m como Antonio Carlos era o presidente da Febem de BH? Sob a reg�ncia de dom Serafim e na companhia de irm�o Mesquita, aprendi muito com esse educador de nome Antonio Carlos Gomes da Costa, principalmente a ficar em sil�ncio para beber cada palavra e pensamento dele. Antonio me nutria como rep�rter iniciante, como mulher em busca de um lugar no mundo e de uma profissional jovem, indignada com o regime autorit�rio e uma pol�tica da crian�a e do adolescente regida pelo nefasto C�digo de Menores.
 
Com o poder de mudar a realidade, Antonio ouvia aquela indignada rep�rter e pedia paci�ncia, palavra que os jovens n�o adotam no dicion�rio da vida. Aprendi que educar � sempre uma aposta no outro, que educador tamb�m precisa aprender. De Antonio, ouvi pela primeira vez a express�o protagonismo juvenil, uma express�o que criou para tirar os jovens dos bastidores e transform�-los em atores principais da pr�pria hist�ria de vida.
 
Era esse o cen�rio em que a rep�rter crescia nos anos 1970 e 1980. Dom Serafim, irm�o Mesquita e Antonio Carlos faziam a rep�rter acreditar em um mundo melhor. Eles n�o queriam jovens obedientes, mas independentes e respons�veis. Perto deles, ela acreditava que o mundo tinha jeito, que a mesmice podia ser expulsa desse pa�s. Perto de Mesquita e Antonio Carlos n�o havia amargura nem desencanto. Antonio n�o tinha filhos, mas proclamava. “N�o vou deixar herdeiros biol�gicos, mas pedag�gicos.”
 
A rep�rter � uma dessas herdeiras. Mas Antonio partiu, agora foi a vez de dom Serafim, e hoje ela se preocupa com irm�o Mesquita, que vai completar 87 anos em 11 de novembro.

Ele vive na Inspetoria Dom Bosco, no Bairro Dom Cabral. N�o viaja mais por recomenda��o m�dica. �s vezes o visito, quando a gente ativa a mem�ria daqueles momentos hist�ricos. Com o irm�o Mesquita viajei para a It�lia para conhecer as crian�as mineiras abandonadas, que foram adotadas por italianos e que resultou numa s�rie de reportagens. Na It�lia, al�m da visitar pais e filhos, irm�o Mesquita e a rep�rter se divertiram nos canais de Veneza – e ele disse: ‘A �nica coisa que voc� n�o me pe�a � andar de g�ndola’. Proibi��o cumprida. Nem precisava. Com tantos encantos para viver, com tanto vinho italiano e massas divinas, com as paisagens da regi�o da Toscana, com a hist�ria de Roma escancarada sob nossos olhos, com a visita ao Vaticano, com a constata��o de que as crian�as rejeitadas no Brasil estavam sendo criadas por pais respons�veis, as g�ndolas podiam ficar com os casais de turistas.
 
Irm�o Mesquita hoje est� mais triste do que antes. Ela n�o sabe se pelo pr�prio envelhecer ou se pelo retrocesso de todas as lutas travadas. Antes, a rep�rter e ele sempre achavam um jeito de almo�ar juntos. Ou ele ia � casa dela fazer uma comida saborosa. Ele acordava bem cedo, passava no Mercado Central para comprar os ingredientes e chegava para referendar a amizade carimbada por dom Serafim Fernandes de Ara�jo.
 
S� para falar mais um detalhe sobre dom Serafim. Certo dia, ele contou � rep�rter por que era atleticano. Quando veio para BH de sua cidade, Minas Nova, no Vale do Jequitinhonha, parou nas imedia��es do antigo Est�dio Ant�nio Carlos, onde � hoje o Shopping Diamond. Entrou para assistir ao jogo do Atl�tico e se apaixonou por um time que tinha em sua equipe um jogador de nome Guar�, um goleador insuper�vel. Fiquei orgulhosa, porque Guar� era meu pai. Firmamos, a partir da�, um pacto de afeto. Foi dom Serafim, inclusive, quem celebrou a missa de morte do meu pai, em 1978, no Cemit�rio Parque da Colina.
 
S� para lembrar que, muitas vezes, a rep�rter e irm�o Mesquita combinaram de visitar dom Serafim Fernandes Ara�jo em sua resid�ncia oficial, onde viveu os �ltimos anos de vida em reclus�o. Ela nunca achou um tempo, mas Mesquita ia s�, pois admirava e respeitava aquele que fez parte de sua trajet�ria como religioso e defensor das crian�as e adolescentes em conflito com a lei.
 
Irm�o Mesquita est� inquieto com a partida de dom Serafim e com o cen�rio sombrio do retrocesso no pa�s, mas ele e a rep�rter firmaram o compromisso de lembrar sempre. Ela n�o pode deixar de citar o padre salesiano Cleto Caliman, doutor em teologia. Todas as vezes que a rep�rter vai ao Instituto Dom Bosco, ela e irm�o Mesquita relembram tudo. De passagem pela sala, padre Cleto ri e observa. “N�o sabia que voc� tinha mudado de profiss�o, D�a, virado arque�loga, que fica desenterrando peda�os da hist�ria!”

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