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Estado de Minas CORA��O DE M�E

A �ltima viagem

'Pe�o com clamor para fechar os olhos e viajarmos juntas, de m�os dadas, para molhar os p�s no mar e ver o p�r do sol como t�nhamos planejado'


postado em 29/03/2020 04:00 / atualizado em 25/03/2020 21:20

(foto: lelis)
(foto: lelis)

 

 Escrevo diretamente do front de uma guerra viral. De quarentena, eu poderia dizer como estou passando os meus dias no apartamento do Bairro Gutierrez; que at� que, enfim, consegui virar dona de casa, lavar banheiro, varrer os c�modos, colocar as vasilhas do almo�o em ordem e colocar as roupas sujas na m�quina sem postergar.

 

Dizer, por exemplo, que a COVID-19 ou o coronav�rus est� mudando o mundo, que a vida nesse planeta nunca mais ser� a mesma. Poderia falar que eu e o meu amigo Carlos Ferrer, o Baiano das Camisetas, um comunista e ateu ferrenho, ficamos trocando mensagens e escrevendo sobre essa pandemia. Ele tem certeza de que o v�rus � vermelho, fez a revolu��o que daria inveja a Luiz Carlos Prestes, Fidel Castro, Ho Chi Min, Olga Ben�rio e Rosa de Luxemburgo. O mundo nunca foi t�o vermelho, constata o meu amigo. E a China – como tudo indica – ser� o ma- estro que vai reger a orquestra com a foice e o martelo no lugar da batuta. Finalmente, o Sistema �nico de Sa�de (SUS) tem o reconhecimento merecido. Um lixeiro hoje � t�o valorizado quanto um desembargador. O servidor p�- blico neste momento � de uma im- port�ncia sem precedentes –, eu e Carlos Ferrer vamos conversando.

 

Mas n�o foi o coronav�rus que caiu como uma bomba na minha cabe�a. A vida tem seus mist�rios e d� uma trombada em voc�. No domingo passado, 22 de mar�o, a not�cia da morte da amiga Bety ou Maria Beatriz de Souza Neto, arrombou a porta da minha casa. Com um c�ncer de p�ncreas avassalador, ela estava na Santa Casa de Belo Horizone, por sinal, muito bem atendida. Eu e Bety �ramos amigas desde a adolesc�ncia. Sem computador, celular e WhatsApp, a gente se comunicava por meio de um di�rio. N�s duas mor�vamos na Rua do Ouro, nos sombrios anos de 1970. Filha do m�dico Langlebert de Souza Neto, j� falecido, e de dona Neuza, hoje com 94 anos, Bety cuidava da m�e, junto com a filha B�rbara Mejias e o neto Daniel.

 

O sobrenome veio do Chile, de um dia de ver�o, no qual Bety foi passar f�rias em Arraial do Cabo, no Rio, e acabou por se apaixonar e se casar com um hippie chileno pelas bandas do litoral carioca. Tiveram B�rbara, sua �nica filha. O relacionamento n�o deu certo. Bety voltou para BH com B�rbara e continuou sua miss�o de m�e sozi- nha. Nunca nos separamos. Participei dos momentos mais tristes de sua vida, como a pris�o de Vera Lygia e Neuza, que lutaram contra a ditadura, como integrantes do movimento revolucion�rio Var-Palmares.

 

Vera e Neuza est�o bem, mas cho- cadas tamb�m com a morte da irm� mais nova. Langlebert filho e Fernando, os outros dois irm�os, tamb�m conti-nuam aqui, na quarentena do coro- nav�rus. Mas Bety foi embora no domingo cedinho. Sem permiss�o de ningu�m para ir ao vel�rio, eu e os irm�os de Bety nem conseguimos nos despedir dela.

 

(foto: lelis)
(foto: lelis)

 

A filha B�rbara e o neto Daniel, en- tretanto, n�o sa�ram do lado da cama de Bety durante todo o tempo. Um de cada lado, segurando as m�os da m�e e da av�. Bety foi enterrada num caix�o branco, coberta de flores vermelhas, com um v�u e a roupa nova que ainda nem tinha usado. B�rbara fez quest�o do batom vermelho que a m�e amava. Est� segurando a barra com toda a compet�ncia, na companhia de Daniel, um jovem de 19 anos, que mostrou seguran�a, integridade, f�, coragem e for�a de um guerreiro. B�rbara me mandou uma carta depois de tudo, que pe�o permiss�o aos leitores para compartilhar. Ah, n�o posso esquecer. B�rbara � m�e tamb�m de Gabriel.

 

“Estou h� cinco dias internada na Santa Casa, ao lado de minha m�e. Vivi ou sobrevivi a todas as ang�stias e afli��es que se encontram dentro de mim, mas de cabe�a erguida e sozinha, com a ajuda de meu filho Daniel. Estou dentro deste corredor de mais ou menos 500 metros quadrados com portas imensas, g�lido. O mundo se tranca em quarentena com medo do novo v�rus, o que afastou todos da minha realidade. Realidade que estou dominando como uma rocha, realidade chamada oncologia. O c�ncer veio de mansinho, com dores que se resolviam com analg�sicos, um emagrecimento elogiado por todos, chegou sem pedir licen�a e destruiu minha fam�lia, meus sonhos de um 2020 melhor – e ela, a mulher da minha vida, minha m�e: Beatriz, Bety.

 

Desde o diagn�stico ao verdadeiro progn�stico em menos de tr�s meses, ele devastou Beatriz e vem invasivamente devastar meu cora��o, minha alma e tudo aquilo que � de melhor em mim, minha m�e. Est�o sendo dias de guerra – guerra entre eu e minha luci- dez, guerra para a qual n�o tive treinamento e que precisei de me reinventar, junto com o clamor das dores, a face inquieta. E o meu maior medo sendo vivido por voc�, e a decis�o de escolher entre a invas�o e o conforto. N�o foi dif�cil, pois em 40 dias de interna��o ouvi de voc� in�meras vezes: ‘N�o me deixe ficar assim.’

 

Entre uma doutora, uma psic�loga e o seu neto, optamos pelo conforto. Seu rim parou e a todo minuto me encontro a observar a sonda querendo um volume de esperan�a, e nada, nada...

 

Estou no dia dois de tr�s do seu conforto, eu e Daniel sempre unidos, e agora ainda mais. Voc� � t�o maravi- lhosa que mesmo em seu leito in-      consciente voc� est� jorrando o seu amor e nos unindo ainda mais. S�o momentos terr�veis, dispineias, espasmos, mas voc� est� sendo uma guerreira, chego em seu ouvido e pe�o que descanse, mas voc� luta. Hoje me peguei cantando Roberto Carlos em seu ouvido, como � grande o meu amor por voc�!

 

Pe�o com clamor para fechar os olhos e viajarmos juntas, de m�os dadas, para molhar os p�s no mar e ver o p�r do sol como t�nhamos planejado.

 

Seda��o paliativa come�ou, estou aqui ao seu lado com Daniel. Sentimentos estranhos tomam conta de n�s. A vontade de te ver voar como a linda borboleta que �, e o ego�smo de quer�-la aqui. Dezenove horas depois come�a sua linda partida. Acordamos �s seis da manh� de domingo, coloquei minha m�o pelo seu corpo, voc� estava suando e cansada. Acordei Daniel e disse: ‘Sua v� est� partindo.’

 

Fomos um para cada lado da cama, entrela�amos nossas m�os e ouvimos baixinho o seu hino de vida Maluco Beleza. Choramos muito, mas tranquilos, vendo voc� partindo sem dores, sem gemidos.

 

O sol estava nascendo, acompa-nhamos cada cent�metro de suas pupilas dilatarem, cada respira��o, senti seu �ltimo suspiro em meu rosto. Com a m�o no seu cora��o te senti voar. As- sim, voc� nos deixou, tranquila, linda e unidos.

 

Acabou minha mam�e, te encontro em outras vidas. Amo voc�.” B�rbara Mejias.


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