
Ele estava l�, esparramado no ch�o como lixo junto a um dos in�meros postes de ilumina��o p�blica. A um quarteir�o do meu pr�dio – e como lixo mal-acondicionado, as pessoas se desviavam dele, viravam o rosto em sinal de reprova��o, como se aquele corpo estivesse atrapalhando a passagem. Parei para perguntar se ele estava bem, se precisava de algo.
Assustado, ele abriu os olhos com espanto e medo – e respondeu que estava bem e n�o precisava de nada. A apar�ncia dele era de um homem velho, de cabelos e barbas brancas por fazer. Com certeza deveria ser mais novo, mas maltratado pela vida ganhara muitos anos a mais. Sem saber o que fazer, voltei para casa. Assim que coloquei os p�s dentro de casa, uma tempestade desabou.
Pensei no que poderia fazer, enquanto os trov�es e rel�mpagos rasgavam a minha alma. O meu cora��o do�a e eu pedia para que ele encontrasse uma marquise, um pouso, um abrigo para se proteger da chuva impi- edosa.
Ele � apenas um dos 9.066 moradores de rua de BH registrados at� fevereiro de 2020 pelo Cadastro �nico para Programas Sociais do Minist�rio da Cidadania, menos de um m�s antes da pandemia que assola o mundo, exigindo isolamento social, medidas de higiene r�gidas e prote��o.
N�o consegui fazer nada por aquele senhor envelhecido e maltratado pela exclus�o social, aquele senhor mais velho do que o tempo de vida dele, jogado nas ruas. Mas aquele senhor me levou at� uma mulher de 74 anos, nascida em Montevid�u, Uruguai, mas que est� no Brasil h� 45 lutando por mais dignidade para essas pessoas.
Irm� Maria Cristina Bove � essa mulher, que homenageio hoje no Dia das M�es. Sem filhos biol�gicos, irm� Maria Cristina desde muito nova batalhou por justi�a social. Tanto que, por vontade pr�pria e inquieta��o da juventude, saiu de Montevid�u aos 19 anos para cumprir um chamado de Deus, com op��o preferencial pelos pobres e perplexidade diante da mis�ria de grande parte da popula��o.
Da Fraternidade das Oblatas de S�o Bento, irm� Maria Cristina fez uma doa��o de vida. Era uma convoca��o para estar mais perto do sagrado, com uma trajet�ria sempre inserida nos centros urbanos. Morou em Recife, S�o Paulo e em 1975, em plena ditadura militar, chegou a BH. Ela � assessora da Pastoral Nacional do Povo de Rua, ligada � Confer�ncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Respons�vel pela concretiza��o de uma pol�tica p�blica que d� espa�o para esse segmento, irm� Maria Cristina ainda n�o se cansou de desfraldar a bandeira da fraternidade, do amor aos mais pobres, de entrega � espiritualidade. Est� presente em pessoa nas ruas, nos lix�es, junto aos catadores de recicl�veis. S� no ano passado, a Pastoral do Povo da Rua fez 12 mil atendimentos. Ao mesmo tempo, o sonho dela � buscar a transforma��o social. Ela v� o pessoal da rua como protagonista, sujeito de direitos, pois ningu�m mora na rua porque quer.
Com a chegada do coronav�rus, a situa��o ficou mais alarmante ainda, pois falta vontade pol�tica para ajudar essas pessoas. Elas n�o t�m como se proteger, pois h� apenas abrigos para 1.200 moradores de rua. Sempre firme e segura como as m�es que lutam por um futuro melhor para os filhos, irm� Maria Cristina n�o gosta dessa “maternagem”, apesar de sua luta por justi�a social do povo da rua ser incondicional. Ela prefere falar em irmandade. Mas reconhece que hoje, j� considerada velha aos 74 anos e um v�nculo afetivo sem tamanho, eles a comparam e chamam de m�e.
O mais assustador dessa situa��o � que a assist�ncia social nas grandes cidades, n�o apresenta uma solu��o para a sa�da da rua. Consideram essas pessoas como “inserv�veis” (nunca soube da exist�ncia dessa palavra, mas � essa mesma que eles usam). Traduzindo: pessoas que n�o servem para nada, que n�o t�m utilidade alguma. O recolhimento desse povo de rua, ent�o, � intraduz�vel. Os servidores chegam �s pra�as, ruas, avenidas, esquinas e viadutos da cidade onde o povo est� e v�o retirando cobertores, documentos, tudo o que eles n�o podem carregar nas costas – e jogam dentro do caminh�o de lixo os �nicos pertences deles. O que n�o � uma sa�da para a supera��o da situa��o de rua.
Outra preocupa��o de irm� Maria Cristina � com as mulheres moradoras de rua, apesar de 75% serem homens. Neste Dia das M�es, � preciso se lembrar delas, que s�o mais expostas � viol�ncia, ainda mais quando ficam gr�vidas. Assim que nascem, os filhos rec�m-nascidos s�o arrancados dos bra�os das m�es. A justificativa � que t�m de proteger as crian�as. N�o h� lei para a prote��o das m�es e da fam�lia de rua. Eles se protegem entre si. Se t�m dois cobertores, compartilham um com o outro. Se ganham um prato de comida, guardam parte para o que n�o est� presente no momento. Eles s�o irm�os na dor e na pobreza. Se algum passa mal, o outro leva ao hospital ou chama o Samu. � uma corrente de ajuda. As mulheres s�s na rua buscam a prote��o masculina para n�o ficar expostas � viol�ncia cotidiana. Assim v�o sobrevivendo, mas irm� Maria Cristina sabe que s� uma casa d� direito � organiza��o da vida.
Ainda mais nesses tempos sombrios de um governo federal indescrit�vel, n�o sobra nada para os pobres. Eles s�o considerados descart�veis. Se n�o h� nenhuma pol�tica p�blica, o que resta � a solidariedade da popula��o em geral. A Pastoral do Povo da Rua tem 30 grupos que se revezam para levar conforto a essas pessoas, o que acontece nos fins de semana e � noite. Pelo menos, eles conseguiram �gua da Copasa, e pagar o aluguel de quartos numa hospedaria para 10 desses moradores de rua. A pastoral conseguiu abrigo tamb�m no Sesc Venda Nova – e agora a PBH liberou a Serraria Souza Pinto, que ser� um Centro de Orienta��o e Higieniza��o para o povo da rua.
Em BH, ainda n�o h� not�cia de morte por coronav�rus dessa popula��o de rua, o que ocorre em outros estados. Mas irm� Maria Cristina tem f� e esperan�a de que nesse novo mundo que se acena p�s-pandemia haja lugar para todos, mais compaix�o e fraternidade.